sexta-feira, dezembro 26, 2008
Alteridade
somo-los todos que nos são
e nos vivem quando foram
e nos morrem quando vão
és tu sendo de mim a parte
em que inteiro sendo sou
havendo és-me contra além
em que inteiro te anti-vou
oposto são do que nós somos
e exato o contra somos nós
somos eles que não nos são
sendo-nos eles o que sois vós
chamo-os de vós o nós de ti
é tanto ser que nos confundo
morrer-te-ão e viver-vos-emos
sendo-me todo em parte mundo
quarta-feira, dezembro 24, 2008
Meme Literário?
Aqui, entretanto, tento evitar minhas memórias. Há, sempre há, mas é preciso literalizar. Deus me livre das minhas biografias, a menos que sejam mentirosas! A quem poderá interessar meu fascínio infantil por enciclopédias e atlas? Pra que dizer que o que me marcou a infância foram o volume 14 da Barsa de 1976 da casa da minha avó, um Atlas do Corpo Humano e o Guia dos Curiosos? Seria bem melhor dizer, qual um Stuart Mill, que li aos oito Esopo e Xenofonte no grego antigo, cujo alfabeto aprendera aos três. Porque, a ficar na verdade, além daqueles, meu primeiro hábito real foi com Agatha Christie - traduzida - e os seus homicidas do Assassinato no Expresso do Oriente. Talvez interessasse um pouco mais minha adolescência, e minha paixão pela Capitu, cuja fidelidade defendi ardentemente num júri em que a acusavam de trair Bentinho. E meu encanto pela poesia que veio de um poeta... parnasiano! Sim, era Raimundo Correa e o seu soneto Mal Secreto: Quanta gente que ri, talvez, consigo, guarda um atroz, recôndito inimigo como invisível chaga cancerosa! É, rio pelo que andei lendo esses anos todos, mas escondendo que todo o edifício da literatura me é inimiga oculta por ser intransponível. Hei de viver na interminável - e por tal sempre frustrante - Biblioteca de Babel, qual imaginada por Jorge Luis Borges, nome que está - e isso não é segredo a ninguém - no topo dos meus tops qualquer número. Todos os livros por ler são espinhos n'alma, e alguns lidos não se desencravaram: entranharam-se mais nas minhas dores. Seja porque me impõem o dever de serem relidos - os de sempre: Homero, Shakespeare, Joyce, Proust, Kafka... -, seja porque me dão a impressão da maior perda de tempo. Isso porque também não é segredo da minha desconfiança com a literatura urbana contemporânea, que queima um maço de cigarros por página. Se Caio Fernando Abreu desce corroendo as vísceras, os beatniks meio que entalam na garganta. Mas os que estão em atividade no Brasil..., livrai-me, senhor! Não posso agüentar três linhas do Marçal Aquino, Mirisola ou Mutarelli. Dos contemporâneos, então, fico com o Tezza, e com Oswaldo Martins, que, alardeado na sua desgraça, revelou-se agradável surpresa. Não. Melhor não falar das minhas memórias, que mal as tenho. E por ser sempre nisso falho, nas matérias da memória, tenho a terrível mania de querer retê-la sempre, como que cerrando os pulsos para segurar a água que escorre. Fico sempre tentando desenvolver algum jeito de salvá-la, e o mais recente foram os post-it's em tudo quanto é página. Como sempre, inútil.
Perdoarás, Daniel, mas não responderei o Meme Literário que me propuseste.
domingo, dezembro 14, 2008
O terceiro homicídio
Nada mais convinha, portanto, à discrição necessária ao meu trabalho e aos que me contratam que a Biblioteca Nacional. Levei meu pince-nez e minha barba intelectual. Uma tradução espanhola de Schopenhauer sob o braço. Schopenhauer é bom: se o vêem com ele sob o braço, terão medo de você, porque parecerá que realmente leu o filósofo, além de meramente o citar. Sentei-me a um canto, fingindo deleitar-me com a leitura. Pouco tempo depois o ministro chegava, ostentando um sorriso nervoso e um livro de Julián Martel. Tentou ser natural, cumprimentando-me como quem encontra do nada um amigo há muito perdido, e manteve esse sorriso o tempo todo, até que a esperança dos radicais parecesse mais verossímil que os dentes prodigalizados por aquela boca.
- Preciso dos seus serviços.
Sou assassino por encomenda, e tenho fama nas altas rodas. Não é segredo que estes tipos de sociedade trabalham de uma forma a segregar-se o máximo dos indesejáveis. As ruas da Recoleta são tão públicas quanto às da Boca, mas não se há de ver com freqüência o morador daquelas andando nestas, e os que vivem próximos ao Riachuelo sempre se sentem mais pobres e mais reles quando pisam nos bairros nobres. Dar conta dessa classe de indesejáveis não é meu trabalho, o sistema já funciona para isso. O meu trabalho é necessário quando os indesejáveis estão nas próprias altas rodas, ou ainda quando são das parcelas contíguas da pequena-burguesia portenha que se alimenta dos restos dos protagonistas sociais. Eu livro o mundo dos impertinentes aos planos privados de ascensão pública. Não sou mau, nem carrego a culpa nos meus ombros. Não passo de uma demanda, de uma necessidade do poder: sou apenas uma das rodas da engrenagem política. Tanto é verdade que não devo ser desconhecido das autoridades policiais. Mas minha prisão não interessa a muita gente; e minha morte exigiria outro igual a mim, mas não tenho notícia de concorrência em Buenos Aires.
- Bernardo Brenman é um empreiteiro de Tucumán. Há algum tempo me procurou oferecendo-me dinheiro. Entregou-me trezentos mil pesos semana passada. Em troca, devo direcionar os gastos da minha pasta para a sua empresa. Mas eu não posso fazer isso, compreende?
- Se ele pagou, você deve fazê-lo.
- O senhor não me compreende, ah ah. – riu alto para dar ares de conversa entre amigos. Ri também para sustentar o jogo – Eu aceitei o dinheiro porque tive medo. Naturalmente que aceitei porque gosto e preciso de dinheiro, ah ah, mas tive medo também. Parece que ele já tinha o mesmo esquema no tempo do Sáenz Peña. Ele já está muito bem familiarizado com os grandes nomes do país, não lhe seria difícil acabar com minha carreira, compreende?
- E o senhor quer que eu o mate, ah ah?
- Ah ah. O senhor é muito direto, ah ah.
- O senhor é quem disse que precisa dos meus serviços.
- O que é isso? Schopenhauer? Bem, seria isso sim.
- Matá-lo?
- O senhor fica com metade do que recebi. Eu preciso que não haja testemunhas da origem deste dinheiro. Então seriam três mortes.
- Mas ainda não compreendi por que o senhor simplesmente não cumpre o acordo.
- O senhor não vê que caso isso venha à tona seria o fim para Yrigoyen? Nosso presidente se elegeu depois de tanta luta popular, depois das greves, e de todo o acordão para a Lei Sáenz Peña. Não posso eu, pelas minhas necessidades monetárias, subtrair-lhe a legitimidade democrática. É preciso não dar poder de fogo aos liberais, o senhor me compreende?
- Perfeitamente. Quem deverei matar?
- Ah ah. O senhor me assusta. Pois bem: deverá matar o senhor Brenman; o senhor Ricardo Castillo Pérez, diretor da repartição responsável pelas concorrências nos gastos ministeriais, que também estava nas tratativas; e um funcionário de Brenman, cujo nome não sei, mas posso lhe indicar o lugar onde encontrá-lo.
- E como o senhor sabe que ninguém mais sabe do negócio?
- Porque todos precisam de discrição nestas horas. Brenman negocia pessoalmente nestes assuntos, não abre o jogo com ninguém nem delega essa função. Somente ele e aquele funcionário, de sua total confiança, estão inteirados no assunto. E é isso que me faz procurar o senhor, preciso da sua experiência e sua discrição. O senhor não pode me faltar.
Aceitei o trabalho. Deveria matar os três. Começaria, por óbvio, no funcionário público, pessoa menos notória, cuja morte não deixaria de sobreaviso os outros dois. Conheço esse tipo de gente: arrivista típico do serviço público, que prefere não dar as caras e assumir responsabilidades para ser sempre mera peça do fisiologismo estatal. Corporativista, carreirista, o que lhe importava era o salário e os meios de incrementá-lo, sem jamais ocupar o topo da hierarquia funcional para isentar-se de dedos apontando-lhe a cara. O homem estava no negócio por promessa de parte daquele dinheiro recebido pelo ministro, o que tornava fácil me aproximar. Fiz-me empregado da empreiteira de Tucumán, entrei em contato com sua repartição. Nem precisei insinuar, ele já me dizia que não era conveniente nos encontrarmos em seu trabalho. Sugeri – sabendo da sua recusa – o hotel onde eu estaria hospedado. Ele me convidou para seu apartamento em San Telmo.
Numa manhã de domingo, sob a névoa de uma Buenos Aires fria, era julho, fui visitá-lo. Morava com a mulher e um filho. Serviu-me café, medialunas e bolo com cremes. Fechamo-nos em seu living e comecei a perguntar sobre as perspectivas de contratos públicos, estradas novas, aumento da rede do metrô, portos por construir. Eu andava pela sala enquanto ele me expunha os projetos do Partido Radical para a Argentina. Parei para olhar um quadro de natureza morta, daqueles artistas que vendem na Plaza de Mayo, iguais a todos as outras telas de folhas e frutas e flores em vasos. Castillo Pérez não parava de me apontar as boas perspectivas para minha suposta empresa. Ele estava era entorpecido nas suas próprias perspectivas de dinheiro sujo, mal dava por mim atrás de seu sofá, puxando o garrote da manga para envolver-lhe o pescoço até o último sufoco. Caiu do sofá sobre a mesa de centro, xícaras se quebraram no chão. No que sua mulher entrou na sala, o mesmo arame impediu-lhe o grito, e a vida. A criança estava na cozinha, entretida em sua comida, que salguei com sonífero. Morreu na própria cama, por causa do travesseiro que pressionei contra seu rosto. A névoa da cidade dissipava e o sol vencia.
Uma semana depois, o ministro deu-me a notícia de que Brenman e seu funcionário estariam em Buenos Aires. Forneceu-me o endereço do apartamento do empresário na capital, na Rua Rivadavia, e disse-me que o funcionário ficaria em um apartamento dois pisos abaixo. Para encontrar Brenman, utilizei o expediente inverso do de Castillo Pérez. Fingi ser funcionário do ministério; aliás, o próprio Castillo Pérez. Fui diretamente à portaria de seu prédio, tarde da noite, anunciei meu nome e que precisava tratar de assuntos de seu interesse junto ao governo. Enquanto o porteiro subia para avisar o empreiteiro, envenenei seu mate. Pessoas que devem são fáceis de matar, pois Brenman de pronto aceitou me receber também em seu próprio apartamento. Quando abriu a porta, assustou-se com minha insígnia da Polícia Federal e minha arma. Avisei-o de que sabia de todo o esquema junto ao ministro, mas que estava disposto a negociar. Rapidamente me convidou a entrar. Quando se virou para me conduzir para dentro, encostei o cano em seus rins gordos e puxei o gatilho. Dei outro tiro à queima-roupa, Brenman já estava no chão, na altura de seu peito. Tomei-lhe as chaves e o tranquei ali dentro.
Desci dois andares para então dar conta da última parte do meu trabalho. Ninguém respondeu às minhas batidas na porta. Forcei a fechadura, a porta, aberta, cedeu. O apartamento estava vazio, nada mais havia que um espelho enorme na parede ao fundo do hall de entrada. Vasculhei todas as salas e quartos, e o que encontrei foi apenas um jornal com um anúncio marcado. O anúncio dizia que aquele mesmo apartamento estava disponível para alugar.
Precisava, no entanto, terminar meu trabalho. Não poderia manchar meu nome deixando-o por realizar. Certo de que nova audiência com o ministro seria tarde demais, pois logo descobririam Brenman, resolvi empreender algumas diligências para me informar rapidamente. Desci à portaria, o porteiro suava frio, respirava com dificuldades. Perguntei-lhe o que tinha, disse-me que estava mal do estômago. Nada soube dizer sobre eventual funcionário de Brenman naquele prédio. Sobre o apartamento do anúncio, falou-me que o imóvel já havia sido alugado por um senhor chamado Alfredo Ugarte, e que as chaves estavam na portaria aguardando sua chegada.
Algo não estava correto. Por um momento, temi que me enredassem numa caçada. Eu deveria matar alguém sem nome, cujo endereço era aquele apartamento. E aquele apartamento estava alugado a Alfredo Ugarte. Mas eu conhecia Ugarte, que certamente não era funcionário de nenhuma empreiteira. Ugarte tem nome e rosto, e bem familiares, ao contrário da vítima contra a qual fui contratado. De volta ao apartamento, olhei novamente ao espelho. O ministro precisava da morte de todas as testemunhas da sua corrupção e eu era o seu instrumento. Eu, com toda a minha fama, com meu nome, com meu prestígio no serviço sujo da política. Não houve falhas na minha trajetória, tudo fiz de modo que sempre os favores me fossem devidos, por mais dinheiro que me pagassem. Eu era protegido por meus feitos, que poderiam derrubar metade desta capital. Não era agora que eu falharia. Todas as testemunhas seriam mortas, bem como quis o ministro, que me pediu que eu não lhe faltasse. Havia, então, uma coisa a ser feita. Em frente ao grande espelho, toquei o cano da arma no meu coração. E agora puxarei o gatilho. Porque eu, Alfredo Ugarte, testemunha das corrupções portenhas, não posso pretender ser maior e mais longevo que a minha própria reputação.
sexta-feira, dezembro 12, 2008
No cárcere de Argel (revisado)
A notícia chegou aos meus ouvidos antes que as mãos do carrasco alcançassem meu pescoço, e minha pele corada pelo sol do deserto me deu a vantagem de ser um dissimulado mouro que empreendeu fuga pelas areias rumo a Argel, onde meu irmão comercializava linho e azeite. Já havia passado mais tempo no deserto que em minha própria casa, e, sem entretanto perder o fio da identidade que ainda era a minha, sabia as direções a tomar em meio as dunas eternamente cambiantes da eternamente desigual e injusta paisagem do Sahara.
Meti-me, na quarta noite, numa caravana de cameleiros mercadores que nada sabiam da minha sentença de morte. Sei que não deram falta por mim em Fez, tão banais eram as forcas, e sempre havia um novo cristão a perseguir em meu lugar na forma sangrenta que os mouros tinham de brincar. Assim, não havia ninguém em meu encalço, e, caso houvesse, vender-se-ia facilmente pelo ouro que carrego.
No vigésimo dia, já próximos ao litoral, fomos assaltados por bandidos com insígnias terrivelmente famosas. Os mercenários que nos acompanhavam deles deram conta, mas quando descobriram que dentre os mortos encontrava-se o filho dum emir não houve dúvidas em atribuir a culpa ao estrangeiro. Mal despontou no horizonte a guarda real fui amarrado. Tudo foi tão rápido que cheguei a Argel e antes que pudesse dizer palavra tive minha sentença de prisão perpétua decretada.
De todas as cidades da África, diz-se que nenhuma pena é mais cruel que a de Argel. Qualquer um que seja submetido à sua justiça preferirá o cadafalso de Fez, as fogueiras de Castela ou a antiga crucificação dos romanos. Mas eu ainda tinha a esperança de que a prisão perpétua, chegasse ao conhecimento do meu irmão, fá-lo-ia prontamente pagar meu resgate, e logo eu estaria na Lusitânia com os pés lá cravados para nunca mais sair. Ou então, enquanto vivo, sempre há a chance de fuga, eis que a prisão é inevitavelmente menos inexorável que a morte. Levaram-me à jaula num porão fedorento, onde passei a noite com um prato de comida que jamais pude identificar o que é. Dormi encolhido a um canto mais por cansaço que por oportunidade. Acordei com o sol batendo quente em meu rosto, a porta da minha cela aberta diretamente para uma rua repleta de azevinhos. Sonoras águas correm por aquedutos na sarjeta das ruas, larguíssimas e desoladas, embora incrivelmente belas. As pedras escuras que as pavimentam tem fina sintonia com o verde-escuro dos arbustos. Pontos vermelhos cá e ali das drupas pontilham as veredas pelas quais caminhava, de um cruzamento a outro, todos eles perfeitamente retos e amplos, cujos centros mantêm uma praça circular com fontes e coretos.
Ladeiam as ruas altos prédios com cúpulas de vidro e ouro, e minaretes com escadas externas em caracol. Todas as quadras tem um palácio assim no meio, rodeado de incontáveis casas: de uma esquina a outra se contam uns quinhentos metros de logradouro. O barulho da água a correr pelos aquedutos começou como um som agradável naquela época. Homens, sim, havia. Mas somente homens, não vi mulheres. O primeiro que cruzou por mim ao me ver baixou os olhos, com uma expressão que misturava comiseração e solidariedade em relação a mim. Todos andavam assim, e ainda andam, como que atordoados pela imponente cidade que a todos apequena.
Não é difícil descobrir por quê. Cada quadra tem suas casas e seu palácio ao centro, cada cruzamento sua praça, todas as ruas seus azevinhos e suas negras pedras polidas que ao fim da tarde refletem o sol diretamente em nossos olhos. E o céu acima é um invariável céu sem nuvens cujos astros descrevem rigorosamente a mesma trajetória todos os dias. Não há ventos, dilúvios ou tempestades de areia. Nem brisas, chuviscos e poeira. Não há mudança nenhuma na cidade, a não ser nos homens que perambulam por seu labirinto de ruas perfeitamente perpendiculares. Os dias aqui são demasiadamente homogêneos, de modo que perscrutar a memória de todos os anos vividos nesta cidade é ver nada além do mesmo imperioso dia. Como se eu, na velhice em que relato, desde meu derradeiro dia de fuga para Argel, tivesse vivido apenas este dia, ou um dia estendido em que a única mudança perceptível ocorreu em mim. E por pouco tempo até a resignação absoluta.
Mas não era só o tédio do tempo que arrasa os cidadãos desta cidade. Quando cheguei, os homens – um aqui e outro já lá longe, e depois de um tempo outro aparecia – andavam e andavam, todos aparentemente agindo por uma causa comum mas não partilhada, e todos tão centrados nesta causa que a máxima empatia era aquele mesmo olhar de comiseração, que logo aprendi a devolver na mesma medida. As casas das quadras não diziam nada, não pareciam oferecer nada, e aquele palácio ao centro tinha um ínfimo acesso por entre elas e era tão quieto e tão impassível que sua beleza passou a significar somente um desespero pela falta do viço que meus estereótipos me fizeram esperar de um palácio como aquele. Mas andava, como todos, à próxima quadra e ao próximo palácio e a próxima quadra e o próximo palácio eram ponto por ponto, sem pôr nem tirar, iguais ao que havia na quadra anterior. E assim a próxima e a outra e até hoje todas pelas quais percorri. Que podem ter sido a mesma: as ruas retas esconderiam um círculo disfarçado por – imaginei – um jogo de espelhos favorecido pelo sol que abrasa a nossa nuca.
A incrível composição da cidade e o absurdo que ela representa me fizeram desrespeitar a introspecção dos meus concidadãos. Instei um deles, com um chacoalho um tanto violento, a me dizer o que era aquilo. O homem foi de uma solicitude inesperada – e depois aprendi que todos deverão ser assim aqui, como eu próprio, e todos mais dia ou menos dia também serão interpelados com a mesma violência por algum neófito, e darão a mesma resposta que recebi. Perguntado onde estou, o que era aquilo, aquelas quadras, aquelas praças, aquelas ruas, aqueles palácios, o nome – a coisa mais inútil de se saber – daquela cidade, tudo ao mesmo tempo, respondeu-me placidamente:
- É novo aqui, bem-vindo. Ninguém deu nome a esta cidade, mas não se preocupe, tudo de que necessita nela você acha, em quaisquer destas casas. Elas são a nossa necessidade. Da cidade, há quem dela já saiu, ninguém sabe como. O que dizem é que se deve querer muito, e então se descortinará a saída. É isso que procuro agora. É isso que todos procuram, e é isso o que você provavelmente vai fazer.
Ali compreendi a prisão perpétua de Argel.
- Você é também um condenado? – perguntei.
- E também injustamente, por mais crimes que tenha feito ou que nenhum deles tenha algum dia perpetrado.
Pediu-me licença e continuou naquela efeméride do seu automatismo adquirido sem que o cego desejo de sair daquele lugar suspeitasse.
E o que pensei – agora o cego desejo era o meu – foi que bastava caminhar sem descanso. Se todos os cruzamentos fossem verdadeiramente iguais, teríamos que postular um espaço infinito na superfície da terra, o que é impossível. Este detalhe me engendrou o plano de centrar minha atenção peregrina justamente nos cruzamentos: o primeiro cuja distância do anterior fosse maior que a distância padrão do intervalo entre as esquinas seria o indicativo que a cidade não era a mesma, que não haveria próximo cruzamento, mas uma estrada, talvez especialmente curta, até a Lusitânia.
Por outro lado, o primeiro obstáculo para o meu plano não era a cidade, mas eu mesmo. O trabalho exigia que eu sobrevivesse, precisava de casa, banhos e comida. O meu interlocutor, porém, estava certo: cada casa tinha tudo que precisava. O banho com água quente, o carneiro assado (as coisas eram assim, não havia fogo), sucos e doces. Havia cama de penas e cachimbos e narguilés com fumos de vários aromas e ópio, que queimavam com as baforadas, sem que os fogueasse. Havia linho, tecidos das Índias, sal, pimenta, almofadas e até cítaras e flautas. Tinha em minhas mãos ungüentos de qualquer cheiro, óleo para os banhos, jóias de ouro e incensos calmantes, e pastas de ervas pra calos e feridas.
No entanto, a primeira coisa de que dei por falta foi o vinho, injúria dos mouros e sangue dos cristãos. Logo notei ausência de outras coisas. Quando quis entalhar madeira para ter uma bengala que me servisse de apoio nas andanças, não havia madeira nem ferramentas; quando quis marcar as esquinas por que já havia passado, não havia estiletes ou tintas; não havia palha ou papel para fazer fogo por fricção. A cidade estava a julgar que minhas necessidades eram só as que ela podia prover, nenhuma outra. Ou o meu amigo mencionara as necessidades em que pensamos quando esquecemos, na pressa de fugir, que temos outras.
Depois pensei que tanto quanto a comida e o banho, a mulher era uma necessidade ao homem. E não havia como tê-las: mulheres sofriam lapidações e não prisões perpétuas. Pensei assim, mas por ainda estar preso à minha realidade anterior. Naquela cidade, a mulher seria um estorvo à incessante busca pela saída. Busca que logo transformou esta palavra, outrora fonte de desvarios juvenis, numa vazia evocação que assemelhava todas as palavras: não as usava mais, se não para responder ao fortuito chacoalho de um novo cidadão, que, pela mesma vontade de não me desviar da busca, era rigorosamente a mesma que recebi nos meus primeiros dias. De modo que, já no hábito das quadras iguais, as palavras – mulher, deserto, Lisboa, Homero – significavam todas a mesma coisa: que tive uma vida fora dali. E se você lê estas linhas, não é porque as escrevo, mas porque alguém me resgatou nas lembranças do mundo e me traduziu numa forma em que ainda os significados existem.
E se compartilha dos significados, também imagina o tédio imenso do tempo aqui. O silêncio lá de fora aqui se tornaria ruído, e o meu silêncio seria chamado de barulho de água correndo nos aquedutos. Os dias só mudavam nas escolhas dos perfumes a usar, dos fumos a fumar e das comidas a comer. E também dos rostos com que se cruzar. Os rostos, mas não os olhares: sempre os mesmos olhares de quem partilha aquela mesma situação que era a minha, aquela solidariedade impotente que também se espelhava em meus olhos. Alguém poderia aventar que uma resignação far-nos-ia reunir, ser convivas de mesas, trocar histórias e fazer histórias naquela cidade. Enfim, mudá-la por nossa própria força e convivência. Mas ninguém era capaz disso: cada interação seria um passo a menos rumo à saída.
O que fiz por alguns dias, para tornar um diferente do outro, era imaginar coisas de que precisasse e que a cidade não poderia me dar. Imaginei espadas e cimitarras: mas ninguém precisa disso. Imaginei governos e regras: inúteis. Imaginei bibliotecas, o Pentateuco e o Livro de Jó, o Corão, as Mil e Uma Noites e a Odisséia: deleites frívolos ou inspiração para um fanatismo estúpido. Imaginei carros e camelos: mas eles encurtam o mundo e fazem perder sua dimensão. A cidade vencia ao me mostrar que nada além dela me servia. Mas quando pensei em minha família e em meus amigos, não consegui ver a inutilidade, e isso a cidade não tinha. Percebi que a cidade me dominava: me fazia viver, e só viver, para aceitar sua força sobre mim, sua imutabilidade indiferente a toda angústia que eu pudesse ter. Era claro: se não havia fogo e estiletes, tintas e ferramentas, era justamente para que ela se mantivesse sempre da mesma forma, e que eu não pudesse jamais mudá-la. E isso se confirmou quando vi que as plantas não eram vivas, mas uma imagem sólida e resistente aos meus golpes. O movimento era contra a cidade, que só se permitia o correr das águas e a sucessão da noite ao dia e deste àquela.
Mudei então minha estratégia. Primeiro resolvi entrar em um dos palácios, o que eu nunca pensara para não me desviar das ruas. A única coisa que havia em suas naves e seus vãos eram os ecos de meus passos. Passei tempos que julgo ser vários anos investigando cada sala (eram quinhentas, pelas minhas contas, provavelmente erradas) de dois palácios. E eram iguais, e eram vazios, e não escondiam a saída. Então atentei para a água dos aquedutos, cujo correr destoava da imobilidade da cidade. Pensei que se eu seguisse sua corrente, que era como ratos fugindo das embarcações naufragantes, alcançaria os muros e os pórticos da cidade. E foi incrível como não havia notado isso antes: as águas corriam ao redor das quadras. Os aquedutos jamais se comunicavam. E era inexplicável sua corrente: a cidade era perfeitamente plana, que força impelia as águas?
Não me restou senão voltar ao primitivo plano das andanças sem fim. As quais andei até hoje, vendo a cidade infinita parada na mesma hora em que cheguei. Eu é que não parei, envelheci. E hoje sinto - como os mouros sentiram os crimes que fiquei por cometer - que descobri a saída, e a quero muito. Mas sinto também que é meu último dia. O que no fim das contas é a mesma coisa.
quinta-feira, dezembro 04, 2008
Divulgación
Alguém me pede uma explicação sobra a teoria de Einstein. Com muito entusiasmo, falo de tensores e geodésias tetradimensionais.
- Não entendi uma só palavra - me diz, estupefato.
Reflito uns instantes e logo, com menos entusiasmo, dou-lhe uma explicação menos técnica, conservando algumas geodésias, mas fazendo intervir aviadores e tiros de revólver.
- Já entendo quase tudo - diz meu amigo, com bastante alegria -. Mas há uma coisa que ainda não entendo: essas geodésias, essas coordenadas...
Deprimido, mergulho numa enorme concentração mental e acabo abandonando para sempre as geodésias e as coordenadas; com verdadeira ira, me dedico exclusivamente aos aviadores que fumam enquanto viajam na velocidade da luz, chefes de estação que disparam um revólver com a mão direita e verificam tempos depois com um cronômetro que têm na mão esquerda, trens e sinos.
- Agora sim, entendo a relatividade! - exclama meu amigo com alegria.
- Sim - respondo amargamente -, mas agora não é mais a relatividade.
sábado, novembro 29, 2008
Carta a uma senhorita de Paris
Andrée, eu não queria acabar morando em seu apartamento na rua Suipacha. Não tanto pelos coelhinhos, antes porque me dói ingressar em uma ordem fechada, já construída até nas mais finas malhas do ar, essas que em sua casa preservam a música da lavanda, o bater de asas de um cisne com poeira, o jogo do violino e da viola no quarteto de Rará. Me é amargo entrar em um âmbito onde alguém que vive belamente o dispôs inteiro como uma reiteração visível de sua alma, aqui os livros (de um lado em espanhol, do outro em francês e inglês), ali os almofadões verdes, neste lugar preciso da mesinha o cinzeiro de cristal que parece o corte de uma de uma bolha de sabão, e sempre um perfume, um som, um crescer de plantas, uma fotografia do amigo morto, ritual de bandejas com chá e as colherzinhas do açúcar... Ah, querida Andrée, como é difícil se opor, ainda aceitando-a com inteira submissão do próprio ser, à ordem minuciosa que uma mulher instaura em sua lânguida residência. Quão culpável é pegar uma tacinha de metal o colocá-la no outro extremo da mesa, colocá-la ali simplesmente porque alguém trouxe seus dicionários ingleses e é deste lado, ao alcance da mão, onde deverão estar. Mover essa tacinha vale por um horrível vermelho inesperado no meio de uma modulação de Ozenfant, como se de um golpe as cordas de todos os contrabaixos se rompessem ao mesmo tempo com a mesma espantosa chicotada no instante mais calado de uma sinfonia de Mozart. Mover essa tacinha altera o jogo de relações de toda a casa, de cada objeto com outro, de cada momento de sua alma com a alma inteira da casa e sua habitante distante. E eu não posso aproximar de um livro os dedos, cingir apenas o cone de luz de um abajur, destampar a caixa de música, sem que um sentimento de ultraje e desafio me passe pelos olhos como um bando de pardais.
Você sabe por que vim a sua casa, ao seu quieto salão solicitado ao meio-dia. Tudo parece tão natural, como sempre que não se sabe a verdade. Você se foi a Paris, eu fiquei com o apartamento da rua Suipacha, elaboramos um simples e satisfatório plano de mútua conveniência até que setembro lhe traga de novo a Buenos Aires e me lance a alguma outra casa onde talvez... Mas não lhe escrevo por isso, esta carta a envio por causa dos coelhinhos, parece-me justo deixá-la a par, e porque gosto de escrever cartas, e talvez porque chove.
Mudei-me na sexta-feira passada, às cinco da tarde, entre névoa e tédio. Fechei tantas malas em minha vida, passei tantas horas fazendo a bagagem que não levava a lugar nenhum, que a sexta foi um dia cheio de sombras e correias, porque quando eu vejo as correias das malas é como se visse sombras, elementos de um chicote que me açoita indiretamente, da maneira mais sutil e mais horrível. Mas fiz as malas, avisei a sua mucama que viria me instalar, e subi no elevador. Justo entre o primeiro e o segundo andar sentia que ia vomitar um coelhinho. Nunca o havia explicado antes, não creia que por deslealdade, mas é natural que alguém não se ponha a explicar às pessoas que de vez em quando vomita um coelhinho. Como sempre me sucedeu estando sozinho, guardava o fato como se guardam tantas vezes o que acontece (ou alguém faz acontecer) na privacidade total. Não me reprove, Andrée, não me reprove. De vez em quando me ocorre de vomitar um coelhinho. Não é razão para não viver em qualquer casa, não é razão para que alguém tenha que se envergonhar e estar ilhado e andar calando-se.
Quando sinto que vou vomitar um coelhinho, ponho dois dedos na boca como uma pinça aberta, e espero sentir na garganta a pelugem morna que sobe como uma efervescência de sal de frutas. Tudo é veloz e higiênico, transcorre num brevíssimo instante. Tiro os dedos da boca, e neles trago segurado pelas orelhas um coelhinho branco. O coelhinho parece contente, é um coelhinho normal e perfeito, só que muito pequeno, pequeno como um coelhinho de chocolate, mas branco, e inteiramente um coelhinho. Coloco-o na palma da mão, levanto-lhe a pelugem com um carinho dos dedos, o coelhinho parece satisfeito de ter nascido e se agita e gruda seu focinho contra minha pele, movendo-o com essa trituração silenciosa e que faz cócegas de um focinho contra a pele de uma mão. Procura comer e então eu (falo de quando isso ocorria no quintal da minha casa) eu o retiro comigo à sacada e o coloco no grande vaso onde cresce o trevo que a propósito plantei. O coelhinho levanta totalmente suas orelhas, envolve o trevo tenro com um veloz molinete do focinho, e eu sei que posso deixá-lo e ir, continuar por um tempo uma vida que não é diferente da de tantos que compram seus coelhos nas granjas.
Entre o primeiro e o segundo andar, Andrée, como um anúncio do que seria minha vida em sua casa, soube que ia vomitar um coelhinho. Em seguida tive medo (ou era estranheza? Não, medo da mesma estranheza, por acaso) porque antes de deixar minha casa, somente dois dias antes, havia vomitado um coelhinho e estava seguro por um mês, por cinco semanas, talvez seis com um pouco de sorte. Veja você, eu tinha resolvido perfeitamente o problema dos coelhinhos. Plantava trevo na sacada de minha outra casa, vomitava um coelhinho, colocava-o no trevo e ao cabo de um mês, quando suspeitava que de um momento a outro... então presenteava o coelho já crescido à senhora de Molina, que acreditava em um hobby e se calava. Já no outro vaso onde crescia um trevo jovem e propício, eu aguardava sem preocupação a manhã em que a coceguinha de uma pelugem subindo me fechava a garganta, e o novo coelhinho repetia desde essa hora a vida e os costumes do anterior. Os costumes, Andrée, são formas concretas do ritmo, são a quota de ritmo que nos ajuda a viver. Não era tão terrível vomitar coelhinhos, uma vez que se havia entrado no ciclo invariável, no método. Você desejará saber por que todo esse trabalho, porque todos esses trevos e a senhora de Molina. Seria preferível matar em seguida o coelhinho e... Ah, teria você que vomitar somente um, tomá-lo com os dedos e colocá-lo não mão aberta, aderido a você pelo mesmo ato, pela aura inefável de sua proximidade apenas rota. Um mês isso leva, um mês é o suficiente, pêlos compridos, saltos, olhos selvagens, diferença absoluta. Andrée, em um mês é um coelho, faz-se um coelho de verdade; mas o minuto inicial, quando o tufo morno e agitado encobre uma presença inalienável... Como um poema nos primeiros minutos, o fruto de uma noite de Iduméia: tão de alguém como alguém mesmo... e depois tão diferente, tão ilhado e distante em seu mundo branco plano do tamanho de uma carta.
Me decidi, contudo, a matar o coelho assim que nascesse. Eu viveria quatro meses na sua casa: quatro – talvez, com sorte, três – colheradas de álcool no focinho. (Sabe você que a misericórdia permite matar instantaneamente um coelhinho dando-lhe de beber uma colherada de álcool? Sua carne, logo, fica melhor, ainda que eu... Três ou quatro colheradas, e daí o banheiro ou um pacote somando-se aos resíduos).
Ao cruzar o terceiro andar o coelhinho se movia em minha mão aberta. Sara esperava lá em cima, para ajudar-me a carregar as malas... Como explicar-lhe que um capricho, uma loja de animais? Envolvi o coelhinho com meu lenço, coloquei-o no bolso do sobretudo, deixando o sobretudo aberto para não oprimi-lo. Só se movia. Sua consciência miúda devia estar-lhe resolvendo fatos importantes: que a vida é um movimento para cima com um click final, e que é também um céu baixo, branco, envolvente e cheirando a lavanda, no fundo de um poço morno.
Sara não viu nada, fascinava-a demais o problema árduo de ajustar seu sentido de ordem à minha mala-roupeiro, meus papéis e minha displicência perante suas elaboradas explicações onde abunda a expressão “por exemplo”. Só pude me fechar no banheiro, matá-lo agora. Uma fina zona de calor rodeava o lenço, o coelhinho era branquíssimo e creio que mais lindo que os outros. Não me olhava, somente de agitava e estava contente, o que era mais o mais horrível modo de me olhar. Tranquei-o na gaveta vazia e voltei para desfazer as malas, desorientado mas não infeliz, não culpado, não lavando minhas mãos para livrá-las de uma última convulsão.
Compreendi que não podia matá-lo. Mas nessa mesma noite vomitei um coelhinho preto. E dois dias depois um branco. E na quarta noite um coelhinho cinza.
Você amará o belo armário do seu dormitório, com a grande porta que se abre generosa, as prateleiras vazias à espera de minha roupa. Agora os tenho aqui, aqui dentro. Verdade que parece impossível, nem Sara o creria. Porque Sara não suspeita de nada, e o que não suspeita não procede da minha horrível tarefa, uma tarefa que leva meus dias e minhas noites num só golpe de ancinho e vai me calcinando por dentro e endurecendo como essa estrela de mar que você pôs sobre a banheira e que a cada banho parece encher a alguém o corpo de sal e açoites de sol e grandes rumores da profundidade.
De dia dormem. São dez. De dia dormem. Com a porta fechada, o armário é uma noite diurna somente para eles, ali dormem sua noite com sossegada obediência. Levo comigo as chaves do quarto ao partir para o meu serviço. Sara deve crer que desconfio de sua honradez e me olha com dúvida, vê-se todas as manhãs que está para me dizer algo, mas ao final se cala e eu fico tão feliz. (Quando limpa o quarto, das nove às dez, faço barulho no salão, coloco um disco de Benny Carter que ocupa toda a atmosfera, e como Sara é também amiga de saetas e pasodobles, o armário parece silencioso e, acaso assim esteja, é porque para os coelhinhos transcorre já a noite e o descanso).
Seu dia começa a essa hora que segue ao jantar, quando Sara leva a bandeja com um leve tilintar das colherzinhas do açúcar, me deseja boa noite – sim, me deseja, Andrée, o mais amargo é que me deseja uma boa noite – e se fecha em seu quarto e logo estou eu sozinho, só com o armário condenado, só com meu dever e minha tristeza.
Deixo-os sair, lançarem-se ágeis ao ataque do salão, cheirando vivazes o trevo que meus bolsos ocultavam e agora há no tapete efêmeros pontinhos que eles alteram, removem, acabam em um momento. Comem bem, calados e corretos, até esse instante nada tenho a dizer, olho-os somente desde o sofá, com um livro inútil na mão – eu que queria ler todos seus Giradoux, Andrée, e a história argentina de López, que você tem na prateleira mais baixa -; e comem o trevo.
São dez. Quase todos brancos. Levantam a cabeça leve para os abajures do salão, os três sóis imóveis de seu dia, eles que amam a luz porque sua noite não tem lua nem estrelas nem faróis. Olham seu triplo sol e estão contentes. Assim é que saltam pelo tapete, às cadeiras, dez manchas levianas se trasladam como uma constelação movente de uma parte a outra, enquanto eu queria vê-los quietos, vê-los aos meus pés e quietos – um pouco o sonho de todo deus, Andrée, o sonho nunca cumprido dos deuses -, não assim insinuando-se atrás do retrato de Miguel de Unamuno, em torno do vaso verde claro, pela negra cavidade da escrivaninha, sempre menos de dez, sempre seis ou oito e eu me perguntando onde andarão os dois que faltam, e se Sara se levantasse por qualquer coisa, e a presidência de Rivadavia que eu queria ler na história de López.
Não sei como resisto, Andrée. Você recorda que vim descansar em sua casa. Não é culpa minha se de vez em quando vomito um coelhinho, se esta mudança me alterou também por dentro – não é nominalismo, não é magia, somente que as coisas não se podem variar assim de repente, às vezes as coisas mudam brutalmente e quando você esperava a bofetada pela direita -. Assim, Andrée, ou de outro modo, mas sempre assim.
Escrevo-lhe de noite. São três da tarde, mas lhe escrevo na noite deles. De dia dormem. Que alívio este escritório coberto de gritos, ordens, máquinas Royal, vice-presidente e mimeógrafos! Que alívio, que paz, que horror, Andrée! Agora me chamam pelo telefone, são os amigos que se inquietam pelas minhas noites de retiro, é Luis que me convida para caminhar ou Jorge que me avisa de um concerto. Quase não me atrevo a dizer-lhes que não, invento prolongadas e ineficazes histórias de saúde ruim, de traduções atrasadas, de evasão. E quando volto e subo no elevador – esse trecho, entre o primeiro e o segundo andar – formulo-me noite a noite irremediavelmente a vã esperança de que não seja verdade.
Faço o que posso para que não destruam suas coisas. Roeram um pouco os livros da prateleira mais baixa, você os encontrará dissimulados para que Sara não se dê conta. Você queria muito seu abajur com a base de porcelana cheia de mariposas e cavaleiros antigos? Só se percebe o trinco, toda a noite trabalhei com um cimento especial que me venderam numa casa inglesa – você sabe que as casas inglesas têm os melhores cimentos – e agora me coloco ao lado para que nenhum o alcance outra vez com as patas (é quase bonito ver como gostam de ficar parados, nostalgia do humano distante, talvez imitação de seu deus andando e olhando-os áspero; além disso você terá percebido – em sua infância, quem sabe – que se pode deixar um coelhinho em penitência contra a parede, parado, as patinhas apoiadas e muito quieto por horas e horas).
Às cinco da manhã (dormi um pouco, estendido no sofá verde e acordando a cada corrida felpuda, a cada tilintar) coloco-os no armário e faço a limpeza. Por isso Sara encontra tudo certo ainda que às vezes tenha visto nela algum assombro contido, um ficar-se olhando um objeto, uma leve desbotado do tapete, e de novo o desejo de me perguntar algo, mas eu assoviando as variações sinfônicas de Franck, de maneira que nada acontece. Para que contar-lhe, Andrée, as minúcias desventuradas de esse amanhecer surdo e vegetal, em que caminho sonolento levantando hastes de trevo, folhas soltas, pelugem branca, me batendo contra os móveis, louco de sono, e meu Gide que se atrasa, Troyat que não traduzi, e minhas respostas a uma senhora distante que estará se perguntando já se... para que seguir com tudo isso, para que seguir esta carta que escrevo entre telefones e entrevistas.
Andrée, querida Andrée, meu consolo é que são dez e não mais. Faz quinze dias que retive na palma da mão um último coelhinho, depois nada, somente os dez comigo, sua noite diurna, e crescendo, já feios, e nascendo-lhes o pêlo comprido, já adolescentes e cheios de urgências e caprichos, saltando sobre o busto de Antínoo (é Antínoo, não, esse rapaz que olha cegamente?) ou perdendo-se na sala de estar onde seus movimentos criam ruídos ressoantes, tanto que dali devo tirá-los por medo que Sara os ouça e me apareça horripilada, talvez com camisola – porque Sara tem de ser assim, com camisola – e então... Somente dez, pense você essa pequena alegria que tenho no meio de tudo, a crescente calma com que percorro de volta os rígidos céus do primeiro e do segundo andar.
Interrompi esta carta porque devia assistir a um trabalho de comissões. Continuo-a aqui em sua casa, Andrée, sob uma surda grisaille do amanhecer. É realmente o dia seguinte, Andrée? Um espaço em branco da página será para você o intervalo, apenas a ponte que une minha letra de ontem e minha letra de hoje. Dizer-lhe que nesse intervalo tudo se perdeu, onde você olha a ponte eu fácilmente ouço se quebrar a cintura furiosa da água, para mim este lado do papel, este lado de minha carta não continua a calma com que vinha eu lhe escrevendo quando a deixei para assistir a um trabalho de comissões. Em sua cúbica noite sem tristeza dormem onze coelhinhos; acaso agora mesmo, mas não, não agora. No elevador, logo, ou ao entrar; já não importa onde, se o quando é agora, se pode ser em qualquer agora dos que me restam.
Já basta, escrevi isto porque me importa provar-lhe que não fui tão culpado na ruína inevitável de sua casa. Deixarei esta carta esperando-a, seria sórdido que o correio a entregasse numa manhã clara de Paris. À noite virei os livros da segunda estante; eles já os alcançavam, parando ou saltando, roeram as lombadas para afiar os dentes – não por fome, têm todo o trevo que lhes compro e ameixa nas gavetas da escrivaninha. Romperam as cortinas, o estofado das poltronas, a moldura do auto-retrato de Augusto Torres, encheram de pêlos o tapete e também gritaram, estiveram em círculo sob a luz da lâmpada, em círculo e como que me adorando, e de repente gritavam, gritavam como eu não creio que gritem os coelhos.
Quis em vão tirar os pêlos que estragam o tapete, alisar a moldura da tela roída, encerrá-los de novo no armário. O dia sobe, talvez Sara se levante logo. É quase estranho que Sara não me importe. É quase estranho que não me importe vê-los saltar na busca de brincadeiras. Não tive tanta culpa, você verá quando chegar que muitos dos destroços estão bem consertados com o cimento que comprei em uma casa inglesa, eu fiz o que pude para evitar-lhe que se zangue... Quanto a mim, do dez ao onze há como um eco insuperável. Você vê: dez estava bem, com um armário, trevo e esperança, quantas coisas se podem construir. Já não com onze, porque dizer onze é seguramente dizer doze, Andrée, doze que será treze. Então está o amanhecer e uma solidão fria na qual cabem a alegria, as lembranças, você e acaso muito mais. Está esta sacada sobre Suipacha cheio de aurora, os primeiros ruídos da cidade. Não creio que lhes seja difícil juntar onze coelhinhos salpicados sobre a calçada, talvez nem se fixem neles, atarefados com o outro corpo que convém levar rapidamente, antes que passem os primeiros estudantes.
sábado, novembro 22, 2008
Inventário
langorosamente
baila na brisa e convida
ao vôo. derradeiro.
Mesa
cúmplice de minhas
vergonhas, como cama e mesa
eu já lhe dei honras
Cadeira
sólida evidência
da existência: dura a nossa
pura realidade
Livro
as coisas estão
na superfície das coisas.
do teu livro não.
Armário
há coisas. e há coisas
que aos homens somente vivem
por viver às coisas
Fruteira
ó fruteira, quantos
de teus frutos são cobranças
e contas e custos?
Tapete
dois são meus pés
mas minhas solas são muitas
e mais tantas, e estas
Lustre
no século décimo
sétimo último jus
fez-se e cruz se foi
sábado, novembro 15, 2008
Ao curso de Letras
DELIN explodiu.
Quem deu por falta?
A quem falta fez?
A ninguém o DELEM;
A mim o DELIN.
sexta-feira, novembro 14, 2008
Vindicação do acadêmico (ou refutação ao fetiche do 'mundo real')
como portasse o justo título
de mais senhor e mais legítimo
da pura e crua, nua e limpa
.............realidade;
de quem desdenha, por altivo,
do amor à luta que se trava
neste domínio oculto e belo
e até humilde do conflito
.............entre as palavras;
do que é néscio e mui estulto,
assim tão certo do que vê,
que diz ser puro no que sabe
porque recusa, na verdade,
.............do outro saber;
de quem acusa a nós vivermos
encastelados nas palavras,
a quem ouvir é ganhar vício
e ser impuro, pois sozinho
.............não logrou ser;
de quem se julga então mais puro
pois com seus olhos, só com eles,
ficou sabendo o que conhece
e o que colheu (minguada messe!)
.............foi sem ajuda;
deste rirei, e rirei muito,
como de mim já muito rio,
porém de mim por ser humano,
por ter vivido e ter ouvido
.............e errado tido,
mas dele rio pelo alto dom
de ser o dono da verdade,
de ser tão puro em preconceitos,
que impuro é todo ser que vive
............com a linguagem.
quinta-feira, novembro 13, 2008
e a rua
gou quando passei pelo prédio
e a rua
............meio que morreu
porque gente nas ruas
..- pode ver –
não parece viva
meus primeiros anos são inevitáveis
essa eterna recorrência que
sou eu
............achando que o mundo é meu
e de meus primeiros anos
vocês todos são robôs
nos meus primeiros enfins
contra mim e a luz
que me deixou só
segunda-feira, novembro 10, 2008
O impossível ensaio sobre as Investigações Filosóficas
O aluno pensou, pensou. Mas esse era o problema. Na vida real ensaios não eram textos, de modo que assim de prima tava difícil saber o que ia ser aceito como ensaio. E quando pensou veio o problema de pensar: mas isso é ensaio? Qual a ensaiedade do ensaio? Falar disso, falar daquilo, citar este e aquele, isso é ensaio? E se eu me exacerbar, e se faço um artigo, uma monografia, ou um verbete de dicionário filosófico? Vai que saia um esquete épico ou um poema cômico...
O aluno pensou tanto que filosofou, e a palavra já no débil uso do cotidiano ficou sem uso. Ou melhor, sem significado. Ou melhor, inexplicável. Ai resolveu sair por aí pra perguntar o que é ensaio, pra ver o que é usar a palavra ensaio. Se perdeu por aí. Como é que ia ensaiar a música, a peça, a entrada no palco pro dia da formatura e entregar isso pro professor? Ah, é, esqueceu do livro: e as investigações, onde ficam nisso? Podia ensaiar escrever o livro, que talvez fosse copiá-lo, copiá-lo, copiá-lo para ter enfim uma cópia definitiva, o não-ensaio. Só que bem mais que a página-e-meia limite.
Reconheceu que viajou demais. Era só - só! - escrever isso e aquilo sobre, sei lá, a falibilidade ou a limitação da ostensão como meio de aquisição e funcionamento da linguagem (!); descer às minúcias na explicação de um certo jogo de linguagem até chegar ao ponto em que a explicação tinha, afinal de contas, que acabar (!!); ou igualar o tal jogo à política: só existem onde há os homens, nunca o homem só (!!!). O aluno foi bem além, achando que tava chegando, mas não. Pensou em explicar a superação do solipsismo com um jogo de sym-pathia (!?). Palavras gregas - e com hífens! - sempre dão bons efeitos. Pros ingênuos. E o professor era um? A ver? Não, desistiu.
Mas por que um ensaio tinha que ser isto? Ah, de novo as perguntas, e o aluno se estrepou de vez. Resolveu que era pós-moderno, que não tinha essa de gênero, de funções discursivas não. É tudo um caldo só. Foi escrever é conto, como um conto-ensaio em que personagens wittgensteinianos - Groucho, Chico, Harpo - jogavam blocos, lajotas e tijolos um para o outro, testavam o martelo para ver se realmente mudava a posição do prego, mediam o metro do metro-padrão de Paris e ensacavam as cores em embalagens a vácuo, olhando pela janela pra ver se era o caso. Ou se iludiam - sem se iludir (jogavam um jogo, o narrador outro) -, pois eram besouros aquilo que tinham em suas caixinhas (dizem os personagens), quando um tinha uma formiga, outro uma borboleta e o terceiro o anel de uma latinha de coca-cola (diz o narrador).
Só que nem sabia - o narrador? os personagens? o aluno! - que jogo jogava quando se chamava de pós-moderno. Viu o que escreveu e entendeu um pouco: uma desculpa pra ser qualquer coisa, pra jogar qualquer jogo, pra entregar qualquer coisa pro professor, menos um ensaio.
Ia amargurar o zero, enfim. Ou, vai que dá?, escreveu um texto em terceira pessoa - arriscou o indireto livre por uma ponta de sofisticação - relatando as dúvidas que apareceram na tentativa de rabiscar qualquer coisa da matéria. A porra é que não lhe veio idéia bem definida nenhuma pra trabalhar a investigacidade das investigações, mas podia se entender, o LW levou sei lá quantos anos pra escrever, eu tive dois meses pra ler, enfim...
O professor leu aquilo (disse que), mas nada de sym-pathia. Ou um pouquinho. O texto lhe voltou com uma letra vermelha algo mais bonita que a sua própria. Um 4,0 suficiente não pra ele passar, mas pro professor não ter que corrigir prova final. E escrito assim: “Aprenda a jogar: ensaio é ensaio. Assim de simples”.
terça-feira, novembro 04, 2008
Tradução de Calímaco
Disse tchau ao sol e jogou-se
Cleômbroto, de Ambrásquio filho,
dum alto muro para o inferno.
Não porque males o impeliram,
dignos de o à morte levar,
mas porque de Platão o livro,
e só este, sobre a alma leu.
OU
Dizendo "Hélio, tchau", Cleômbroto ambrasquieu
......llançou-se dum muro alto rumo ao Hades.
Não por mal digno de morte; mas por de Platão
......um e só o livro da psique ter lido.
segunda-feira, novembro 03, 2008
McCain e Obama
Lasciate ogne speranza, voi che votate.
domingo, novembro 02, 2008
Ao lago
à frente do lago
ao lado de nada.
o lago é imenso
e imensa a vida
mas a gente nada
e tristes os olhos
deitando suas águas
são tristes por nada.
no lago imenso
as duas três gotas
são gotas de nada
e o sonho que dormes
sem lago nem olhos
sem nós e sem nada.
triste é ter lagos
à frente dos olhos
ao lado de nada.
são quantas tristezas
de quantos mil olhos
que tristes por nada
deitaram suas águas
para ter este lago
no meio do nada?
são mil os teu sonhos
que, gotas, se tornam
do lago um nada
e nadas com nadas
a vida se torna
um imenso
sábado, novembro 01, 2008
Foi o Cristovão que disse
Felipe. Um belo nome. Nítido como um cavaleiro recortado contra o horizonte. Um nome com contornos definidos. Uma dignidade simples, auto-evidente, ele vai fantasiando: Felipe. Repete o nome várias vezes, quase em voz alta, para conferir se ele não se desgasta pelo uso, se não se esfarela no próprio som, esvaziado pelo eco - Felipe, Felipe, Felipe, Felipe. Não: mantém-se intacto no horizonte, firme sobre o cavalo, a lança na mão direita. Felipe.
C. Tezza - O Filho Eterno
terça-feira, outubro 28, 2008
Sou ainda pior
contada por outro
e o meu desfecho é ruim
e o mau exemplo é moral
que ensina que
ensina que ensina
que ensina que
ensina o quê?
para ninguém aprender
sou, além de história, inútil
o outro que de mim conta
nem aprende nem aprendem
o que ensinando não ensino
mas mespalha, a minfame
pelo conto, a minfiltrado
nem sou o
que sou sou
monstro se
sou é ficção
...................mas, oras, história sou!
o que sou
é mentira
que sou
a mentira
que sou
se é mentira
que sou sou
o que não
sou aquilo que fica
que fique, é melhor
sou ainda pior
domingo, outubro 26, 2008
sábado, outubro 25, 2008
Perdas
e as palavras outrora ditas não são
as que no fim a memória marcam
se justifica agora teu ódio destilado
nas ficções a que não ouso
opor, inútil, meu inútil palavreado
se perde em ti o que em mim fica,
e compreendo tuas injúrias,
que o amor ao ódio justifica
assim vou, de perdendo tanto
me perco em erros, e nos meus
te perdes, e sou perdas, e és canto
o lutuoso canto das minhas perdas,
da voz de embargo que lamenta tímida
o pra sempre ir-se do teu ventre-seda
do ir-se então o lindo seio que escondias
à meia-luz do perdido quarto
a jogar-me perdido em perdidas vias
assim eu ia, de a boca perdendo,
a que ostentavas, a perder os fios
do cabelo que a ela ia escondendo
e no fim a ti perdi, e enfim a mim inteiro,
em tudo perdido, mas certo que dos erros
tu foste o meu único e absoluto acerto
sexta-feira, outubro 17, 2008
quinta-feira, outubro 16, 2008
Mercado Financeiro
que hoje tento lembrar.
Depois me censuro:
já há muito se passou
o terceiro dia após o dia
da morte dos mitos.
Hoje há mitos que o aedo
não cantará. O farão
as prosas secas dos jornais.
Pois onde
a queda dos deuses esteve
a quebra dos bancos está;
na ordem do dia,
no Olimpo do Caos.
Fosse a fome...
Mas fome não é mito.
segunda-feira, outubro 13, 2008
Blow Up
Elegia
Figura-me porém do infortuno o sentido
Igual ao derradeiro que correu afora:
Dos tristes a esperança há tempos tenho sido.
Sou dois, sendo já um, inda outros males tenho,
E serei também guerra, o medo dos povos,
O pranto que ao consolo presta e pronta venho,
Sem que ao meu próprio choro acorram males novos.
Sou vida mais vivida, e me odeia a vida;
Amigos todos faltam; se duvidas, vide-o:
Semi-vivo procura-me, o suicida;
Pelo afeto, obrigada, dou-lhe o suicídio.
Sou com isso mui só, que amigos hei de ter?
Se os quais a mim tocar desejam, e os que não,
Hão de sempre, infelizes, no toque morrer,
De modo a não restar-me senão solidão?
Sou desafortunada, vês que o sou deveras:
A todo mal que falem eu serei pertinente,
Como coisa maldita, reles coisas meras.
Mas poucos saberão: sou também - direi! - gente.
Sou, com efeito, parte da humanidade.
Como se não corresse ali tudo corre
No meio natural: cair um dia há-de
U’a planta, natureza porém nunca morre.
Sou, e sou realmente, dentre os homens uma:
Alguém contradirá: o homem não é uma planta?
Homem o nome tem, não a flor, não o puma,
E eu o tenho também, como tanto se canta:
Sou Tânatos, sou Moiras, sou Parcas, sou Cruz;
Nas palavras mais doces posso ser má sorte;
Mas meus nomes rejeito por tirar-me a luz,
Daqui p’ra frente nego tê-la, alcunha Morte.
quinta-feira, outubro 09, 2008
A Walt Whitman
onde acabará teu verso?
O papel acaba, o livro é pouco, o blog é isso que vês
Mas teu verso enorme vai se quebrando e a página se enchendo e o poema, que é o branco da folha, vira a letra densa, a letra preta, a letra que, no entanto, na tua pena vira pena, folhas de relva plainando em queda descompromissada e conformada, lentamente a tocar o nada e o sem-fim das cantilenas sempre iguais dos trabalhadores livres da tua democracia.
Ó Whitman, pastor da América!
sexta-feira, outubro 03, 2008
terça-feira, setembro 30, 2008
Elogio fúnebre
De indivisos reinos, sentados, mandam,
Em tronos perenes, os imortais,
Nos mortais destinos insuperáveis.
Eles, deuses cujo ânimo em fuga
Não se flagra, imorríveis ditaram
Ser um mal morrer; e dentre os que caem
Não se contarão os que néctar bebem.
Cais tu, ao negar os verdes viçosos
De tipos vários, sob a vária luz
Do sol ou o halo ladino da luz
Da lua, de teus interditos olhos.
Cais tu, pagã ambrosia que hei comido,
Que de mim um deus não houve fazer,
Senão fazer de ti mesma senhora
Cruel de mim, por mim bem querida.
Uma a outra, vós vos buscáveis céleres.
Da morte não digo: quem não te quer?
Mas haver tu a ela desejado
Em noturno pranto, que deus explica?
Uma a outra, das falésias ao choque
Fúnebre, no mar te esperava a amiga,
No mar que pranteava sais amaros,
Cujo marejo era o chorar da morte.
Revoltos, o cimo buscando, os fios
Resistiam negros à rubra queda,
Assim também a amena branca roupa,
Que violenta a vertigem arrastava.
Revoltos, meus corações, os tivessem,
Te os braços estenderiam, mil deles,
Fossem o quanto fossem as medidas
Para do mar evitar a acolhida.
Cruel, eu amava a ti chorando e rindo,
Mas a rir o pontiagudo ruído
- ao ventre meu – dos teus quietos lamentos
Tu, cruel, tu sem porquês preferias.
Cruel, a vida toda pranteada,
Pedira-me lividez pr’esta hora;
Mas chora o mar, e até a morte chora,
Que alívio tenho onde me o pranto toma?
sexta-feira, setembro 26, 2008
The Dandy Warhols
Nietzsche
por The Dandy Warhols
I want a god who stays dead
not plays dead
I, even I, can play dead
(Ainda preciso verificar se isso não é uma tradução de algum poema do Nietzsche, mas a princípio a letra é do Dandy Warhols mesmo).
quinta-feira, setembro 25, 2008
o tempo passa, o tempo voa
Por muito que corra
Passa como quem fica
Não decola, mas voa
Aula de silogismo metautopoiético
Eu não sou nada.
Logo, eu sou Fernando Pessoa.
domingo, setembro 21, 2008
Quero matar o mundo
isso que se chama mundo,
pra morrer, na matança,
e renascer desde criança.
Mas não vir assim jogado
num mundo feito, já criado.
Mas como um deus renascer
no vão do nada, silêncio do ser.
Então criarei tudo de novo:
Lixo, sujeiras, pessoas, povo.
Não teremos, porém, reggae e maçãs
e pra Bukowski não haverá fãs.
Cachorro Grande não poderá gravar,
nem Pollock terá mãos para pintar.
E ninguém há de morrer de tiques
quando eu falar mal dos beatniks...
Sendo um deus modesto feliz serei:
Não quero um mundo de rei,
assim perfeito, todo Rolling Stones,
somente um que não me faça ouvir Ramones.
sábado, setembro 20, 2008
Odisséia, livro vigésimo-terceiro
'Acorda, Penélope, filhinha querida. Confere com
os teus próprios olhos. O que desejavas aconteceu.
Teu marido voltou. Está lá embaixo. Antes tarde
do que nunca. Os safados estão mortos. Os que
saqueavam tua casa, devoravam tudo, ameaçavam
teu filho não existem mais" [...]
Odisséia, XXIII, 5-10, Trad. Donaldo Schüler
Odisea, libro vigésimo tercero
por Jorge Luis Borges
Ya la espada de hierro ha ejecutado
La debida labor de la venganza;
Ya los ásperos dardos y la lanza
La sangre del perverso han prodigado.
A despecho de un dios y de sus mares
A su reino y a su reina ha vuelto Ulises,
A despecho de un dios y de sus grises
Vientos y del estrépito de Ares.
Ya en el amor del compartido lecho
Duerme la clara reina sobre el pecho
De su rey pero ¿dónde está aquel hombre
Que en los días y en las noches del destierro
Erraba por el mundo como un perro
Y decía que Nadie era su nombre?
***
Odisséia, livro vigésimo terceiro
tradução por Leonor Scliar-Cabral
Já as espadas de ferro executaram
O devido trabalho da vingança;
Já os dardos mais ásperos e a lança
O sangue do perverso prodigaram.
A despeito de um deus, dos mares seus,
Volta ao reino e à rainha o intrépido
Ulisses, a despeito do estrépito
De Ares, dos ventos grises e de um deus.
Já no amor do compartilhado leito
Dorme a insigne rainha sobre o peito
De seu rei, onde está o homem, porém,
Que nos dias e noites pelo mundo
Errava proscrito, cão vagabundo,
Dizendo que seu nome era Ninguém?
domingo, setembro 14, 2008
Manchetes que eu ainda verei escritas
quarta-feira, setembro 10, 2008
Circunstâncias
a mim, que fui sempre julgado,
julga-me outra vez, e de novo
julgará, agora me o dedo
apontando, por ter um dia
também, mortal que sou, julgado.
terça-feira, setembro 09, 2008
Declaração da Pobreza
para todos os fins
que já os vivi todos
e o melhor deles
é o fim da picada.
E por ser expressão
fiel da verdade
não situo nem dato.
Sou maior que o tempo,
sou maior que o espaço.
segunda-feira, setembro 08, 2008
Boca
E depois chupa sorvete
e depois fala
do tempo
do amor
do jogo
do dia
em que vai ser rica
em que vai ser livre
em que vai ao médico
em que vai fechar
e começar o regime.
Mas a segunda-feira não chega
o estetoscópio não basta
a loteria acumula
a lei d'ouro não vem
e é ainda uma boca
e é ainda escondida
no dia após dia
e é ainda uma voz
que fala e se cala
e se finge paisagem
e ainda é uma boca
não passa de boca
não passa de nada
não mais - coitada! -
que o mundo invertido
no ilógico espelho
que o velho destroça
e o sentido suspende.
Boca, não boca,
porque todos têm.
Boca, não boca,
porque a tua não têm.
Boca, só boca,
fingindo o só.
Boca, tão boca,
pãozinho de ló.
sexta-feira, setembro 05, 2008
Mundo das cóisas
diz a nova ortografia.
Tropeçou ou desceu dos céus
e ao mundo das coisas se filia.
Platão, que de português
sequer ideia fazia,
do acento fez caso pouco:
-Bah! Isso nem é filosofia!
Em polvorosa, no entanto,
está a elite do Brasil:
o que era pouca o acento perdeu!
Agora o acento é mundano
e a ideia sem destaque;
da esquecida então dirão: morreu!
domingo, agosto 31, 2008
Peço desculpa... o sopro da inspiração...
Não é todo dia que a musa nos visita.
Boris Vian
Poderiam ao menos dar as caras para se darem a conhecer, estas vozes metafísicas da inspiração. Afirmaram existir, não? Pra mim que a Theá e as Mousas de Homero morreram naqueles tempos mágicos em que crucificados ressuscitavam; deram lugar ao Deus de duas caras e de três nomes, que ama e amedronta, com cruz e espada e flancos por demais abertos ao novo deus, a Razão e suas engrenagens de mundo, contra a qual se revoltou um Eros de tempestade e ímpeto, rejuvenescido sob o epíteto de Coração... O Coração morreu de morte cruenta, tal qual a cantava, e nada se pôs no lugar, se não a Realidade, soberba, ciosa e muito de mentirosa - muito de... nada. E nos pomos a poetar vasos gregos, pedras no caminho, a equívoca revolução dos erros dos homens, um cachorro latindo, um mendigo faminto, o cotidiano vulgar outrora insuspeito de esconder versos e versos outrora impossíveis de se prodigalizar nalguma coisa pouco seletiva chamada internet. Em que inspiração se finge e o mais fino trabalho que se pode almejar é uma boa imitação.
quinta-feira, agosto 21, 2008
Circunstâncias
dizer que não és bonita.
Que ouse ele, ou o cego,
o idiota, o inumano.
Eu não. Que de mentiras
só sou dado às pequeninas.
***
Perguntas três, garota,
e três das que te ouço perguntar
melhor proveito fariam
ao surdo.
***
Doutor não sou;
gênio, jamais.
Sequer um nome
que sobreviva
aos séculos.
Mas quem a ti, Miguel,
os ouvidos dedica
e às palavras firmes
apõe o brilho de um 'bravo!'
concorre com feijões
uma vaga à raça
humana.
terça-feira, agosto 19, 2008
Anacreonte
EIS KITHARAN
Thélo légein Atréidas,
Thélo dè Kádmon áidein;
Ha bárbitos dè khordaîs
Érota moûnon ekheî.
Émeipsa neûra próen,
Kaì tèn lýren ápasan.
Kagó mèn êidon áthlous
Herakléous: lýre dè
Érotas antephónei.
Khároite loipòn hemîn
Héroes; he lýre gár
Mónous érotas áidei.
***
PARA CÍTARA
O Atrida quero cantar,
quero a Cadmo dar a loa;
mas o bárbito* que é teimoso
só amor na corda ecoa.
Há pouco troquei as cordas
e também a lira toda.
Mas se d’Héracles eu canto
as lutas, insiste a lira
e de novo o amor entoa.
Dos heróis, daqui p’ra frente,
me despeço: co’essa lira
só de amor se tira o verso.
*Bárbito é um instrumento semelhante à lira, mas com cordas mais compridas e de som mais grave.
segunda-feira, agosto 18, 2008
A verdade sobre os elevadores da Federal
Entretanto, o que eu tenho para contar sobre os elevadores da Federal é mais espantoso.
Naquele dia em que o desaparecido fui eu, havia esquecido numa sala do décimo-primeiro andar meu guarda-chuva. Lembrei-me dele durante a tarde, e como não fora ainda para casa e estava próximo da universidade, poderia passar lá e verificar se o reaveria. Foi o que fiz. Chegando à Federal, as coisas ocorreram bem inusitadamente: não enfrentei fila alguma para o elevador, entrei nele sozinho e fui diretamente, sem nenhuma parada, do térreo para o último andar do prédio. Com tanta sorte assim, é claro que eu não achei meu guarda-chuva: seria demais para ser verdade. Então voltei ao bendito elevador. De novo – ó, azar! – sozinho.
É que lá estando, e sem censores, animei-me a mexericar naquela alavanca que nunca é usada. Puxei-a para a esquerda, para a direita, para o meio e nada. Puxei-a uma vez mais para a esquerda, para a direita, para o meio e... As luzes se apagaram, com exceção daquela que marca o andar pelo qual se está passando. Fiquei quietinho, de medo que tinha, acompanhando o tal indicador passar do 5 para o 4, do 4 para o 3, do 3 para o 2, do 2 para o 1, do 1 para o T. Térreo, enfim!
Mas qual!, o elevador não parou! Continuou descendo, e agora até com aquela última luzinha apagada. Meu coração palpitou. Meus joelhos dobraram-se. Anuviou-se minha visão. Porém, antes que meu corpo todo se estreitasse contra o chão, a porta finalmente se abriu, o que fez-me regozijar com uma nova esperança de vida quando já me acreditava morto.
Rá! Para quê?! Topei com um porão escuro, qual calabouço de castelo, úmido e frio, porém iluminado com luzes de emergência de túneis subterrâneos. Ao fundo, uma celeuma de vozes multivibrantes anunciava um estranho viço para local tão esmorecido. Caminhei em direção aos brados, dos quais se distinguia ora um “isso é absurdo!”; ora um “à vitória!”; ou ainda um “é culpa dos imperialistas do norte!”.
Ao final do corredor, uma ampla sala se descortinava, e nela estavam dispostas várias mesas circulares, repletas de professores discutindo vivazmente os mais diversos assuntos. Num canto, a mesa dos professores de ciências sociais debatia sobre como cortar a garganta dos burgueses para a libertação das massas. A dos professores de história, doutro lado, pelo que pude ouvir, lidava com o tema do revisionismo: pretendiam desdizer tudo o que foi dito pelos gênios conspiradores dos que venceram no passado. Nada mais assustador, porém, que a mesa dos professores de letras, a mais próxima. Reuniam-se eles num vil complô para assassinar a Língua Portuguesa! Reconheci, por exemplo, enquanto oculto nas sombras, as professoras Teresa e Adelaide, falando de coisas macabras, tais como a relativização da noção de erro. O que fez um terrível frêmito tocar-me a espinha: como aquelas professoras, que sempre ostentaram tão doces ares nas mais chuvosas manhãs de Curitiba, falavam essas palavras duras contra o gracioso monumento da nossa puríssima língua materna?
Não acreditava em meus olhos e em meus ouvidos, que me faziam notar uma professora Teresa de cenho franzido, em postura tão grave a soltar uma irascível voz que clamava a morte do prescritivismo. Ou uma professora Adelaide outrora gentil, agora brincando de fincar uma adaga entre os dedos da mão o mais rapidamente que conseguisse e defendendo que..., que... Por deus, ela defendia que o gerundismo é nada mais que um registro atual do que acontece com a língua!
Não pude evitar uma irresistível interjeição:
- Ó! – exclamei eu.
Pobre de mim. Despertei a atenção. Não deu tempo nem de esboçar um sorrisinho amarelo quando senti um golpe surdo a brincar de beisebol com meu cérebro.
Acordei, sei lá quantas horas depois, enjaulado ao lado de um velho senhor sujo e barbudo, com uma marmita de risoto de frango aos meus pés.
- Bem-vindo, jovem. Meu nome é Napoleão, muito prazer. Napoleão Mendes de Almeida.
- Napoleão Mendes de...? Mas tu não tinha morrido, não?
- Tinhas morrido, por favor! – disse o velhinho. E, meditando, olhando para o alto, ponderou: - Se bem que eu prefiro “tu não morreras?”... Não, não! Como sequer sei seu nome, deveria ser “o senhor não morrera?”!
- Ah, perdão – constrangi-me. Mas antes que eu pudesse ser mais polido, arrematou meu companheiro de cela em resposta à minha pergunta:
- De qualquer modo, meu rapaz, mal o senhor conheceu a verdade sobre os elevadores da Federal e sobre a corja que nos enclausurou. A morte é ainda um tema muito longínquo para o alcance de sua parca experiência.
domingo, agosto 17, 2008
Concorrência
Eu com minha barba feita e minha gravata, perfumado e cabelo bem aparado antevi uma ótima oportunidade de complementação de renda. Se o velho, que da boa postura nada tinha, recebeu uns trocados, eu, com toda minha fineza e com meu berço, inspiraria muito mais confiança. Estendi, porém, a mão a umas senhoras, a uma família, a crianças e jovens, aos homens trabalhadores, e tudo que consegui foi desdém. Creio que alguém até chegou a me alcunhar de insano.
Lembrei da tal transvaloração dos valores que viemos sofrendo pelos anos do nosso tempo. A isso atribuí a falência total da minha empreitada.
pouco resta.
E no restar pouco um lampejo de angústia
se manifesta.
Cataloga, calcula, conhece, compra e vende,
descansa e festa.
Até que o resto que era não é mais
e qual toada de suave seresta
se irmana e harmoniza com tudo,
com cada coisa, entre cada fresta.
E se acomoda nas palavras, nos poemas, nas
canções de gesta.
Dorme como dorme o homem a dormir na
vida em sesta.
Como senhor das coisas e dos nomes, a quem
nada presta.
sábado, agosto 16, 2008
Uma Imagem Divina
A Divine Image
Cruelty has a Human heart
And Jealousy a Human Face,
Terror, the Human Form Divine,
And Secrecy, the Human Dress.
The Human Dress is forgéd Iron,
The Human Form, a fiery Forge,
The Human Face, a Furnace seal'd,
The Human Heart, its hungry Gorge.
***
Uma Imagem Divina
A Crueldade tem o Coração do homem,
O Ciúmes tem o Rosto humano;
O Terror, a Divina Humana Forma,
O Segredo, do homem é o Pano.
Pano da Veste em Ferro forjada
Cuja Forja de fogo é a humana Forma,
Do homem a Face é hermética Fornalha,
E o Coração, sua Fome que devora.
quinta-feira, agosto 14, 2008
quarta-feira, agosto 13, 2008
Chuveiro
Tua chuva, o teu gozo
Teu suor copioso
Me lava a sujeira;
Menor, que maior eu tenha:
Mente, alma, moleira.
segunda-feira, agosto 11, 2008
Safo e Catulo
Ode 31 de Safo
Igual aos deuses me parece aquele
Que defronte de ti se assenta, e te ouve
De perto docemente conversando,
Docemente sorrindo
Inda no peito o coração me assombra,
Que depois que te eu vi, jamais me veio
Voz alguma à garganta, antes quebrada
A língua se entorpece,
Eis já de veia em veia sutil fogo
Lavrando vai: c'os olhos nada vejo;
E sinto contínuo em meus ouvidos
um túrbido zumbido.
Geladas bagas por meu corpo correm,
Um frígido tremor me toma toda;
O rosto amarelece, e quase morta
Nem respirar já posso.
Poema 51 de Catulo
Ele parece-me ser par de um deus,
ele, se é fás dizer, supera os deuses,
esse que todo atento o tempo todo
contempla e ouve-te
doce rir, o que pobre de mim todo
sentido rouba-me, pois uma vez
que te vi, Lésbia, nada em mim sobrou
de voz na boca
mas torpece-me a língua e leve os membros
uma chama percorre e de seu som
os ouvidos tintinam, gêmea noite
cega-me os olhos.
O ócio, Catulo, te faz tanto mal.
No ócio tu exultas, tu vibras demais.
O ócio já reis e já ricas cidades
antes perdeu.
sexta-feira, agosto 08, 2008
Duas laranjas
(no céu das línguas) eterna
laranjeira vige a pender.
Outra é a laranja ao chão
a descansar na agonia
duma natureza entrópica.
O homem é o terceiro, vendo
ambas: acima e abaixo,
qual fotografia imóvel.
O último é o pensamento,
de mil ardis e mil línguas,
que ao homem inventa a queda.
terça-feira, agosto 05, 2008
domingo, agosto 03, 2008
sexta-feira, agosto 01, 2008
quarta-feira, julho 16, 2008
Cachasdiminas
mandei meu estômago pros diabos depois que a pinga derreteu o copo; daí a pinga derreteu os diabos quando mandei o copo pro estômago; então o estômago derreteu a pinga e mandei o copo pros diabos; por fim, os diabos derreteram o estômago e ia mandar a pinga pro copo, mas pinga copo diabos e estômago já estavam todos derretidos
impossersível
nasser para ci
o impossi de ser
o sível de mim
fazendo, desfaço
o crido que fui
o ser que não cri
faço que nasço
nascendo, desnasço:
não creio que fui
o impossível de mim
quarta-feira, julho 09, 2008
Versos a Nina Simone
queria lhe fazer versos
pela versão da Good Bait
do estimado Count Basie.
Mas não sei fazê-los.
E, alem do quê, sua
música não me evoca
lembrança qualquer.
Cada nota só me lembra
a nota seguinte; ou talvez
seus dedos negros a
bailar no teclado branco.
É que com sua música
o mundo é isso:
sua música.
terça-feira, julho 08, 2008
Contemplando
Porque todo homem precisa ter algum lugar para onde ir!
Dostoiévski
uma folha d’outono
nas veredas do Passeio Público
fustigada pelas vassouras:
presumindo ser algo único
entre mil outras folhas
um barco na baía
a velejar até não mais ver-se;
nada há mais que m’angustia
e como voltar na tirania
de grandeza do mar verde?
quinta-feira, julho 03, 2008
Estudo de variações do discurso indireto
Quando o Zé Magrela botou os pés no Bar do Lauro, este mal ergueu os olhos, jogou o pano de prato sobre o ombro e fingiu precisar ir à cozinha, para adiar algo de que não fugiria. Mas Zé o chamava, obrigando-o a ficar e virar-se. Ainda sem erguer a cabeça, Lauro perguntou-lhe o que queria, juntando dois ou três guardanapos de papel amassado sobre um prato cheio de farelos de pastel e pedacinhos de carne. Zé pediu uma cerveja e um pastel de carne, já ordenando, em ato contínuo, que colocasse na conta. Numa frase cheia de reticências, Lauro que enfim olhou aos olhos do Zé disse-lhe que este já lhe devia algum dinheiro, perto dos cinqüenta reais. O devedor abriu um largo sorriso para depois franzir o cenho abrir os braços e dobrar o pescoço na diagonal e anunciar como quem pede favor na camaradagem que já havia dito repetidas vezes que lhe retribuiria logo, pois dentro de alguns dias o Tavares ia lhe quitar a aposta que perdera no bilhar. O dono do bar ainda chegou a dizer, um tanto acanhado, que também Tavares lhe estava devendo. Mas Zé enraiveceu e disse que isso era assunto a ser tratado entre Lauro e Tavares, não com ele. Lauro já ia cedendo quando Martinho, sentado num dos bancos do balcão, retrucou dizendo a Zé que ele folgava-se demais com Lauro, que era alma boa demais para dizer não. Disse ainda para Lauro que só servisse à vista do dinheiro, ao que este, tomado de coragem, disse que era verdade, e cobrou de Zé. Zé, que era folgado mesmo, vitimizou-se alegando que sempre foi freguês do senhor Lauro, que ia sim lhe pagar. Martinho então lhe falou que ninguém pode se fiar na palavra por tanto tempo, e ainda disse que Zé já não tinha crédito em nenhum outro bar do bairro, que era para se conscientizar disso. Zé se acanhou foi embora.
Quando o Zé Magrela botou os pés no Bar do Lauro, este mal ergueu os olhos, jogou o pano de prato sobre o ombro e fingiu precisar ir à cozinha, para adiar algo de que não fugiria. Mas Zé já gritava “ô, seu Lauro!”, obrigando-o a ficar e virar-se. Ainda sem erguer a cabeça, Lauro perguntou-lhe o que queria, juntando dois ou três guardanapos de papel amassado sobre um prato cheio de farelos de pastel e pedacinhos de carne. Zé pediu a loira e o pastel de carne, “nada de vento, hein?”, e ainda disse que era para fazer tudo “naquele nosso esqueminha!”. Lauro, com uns “mas..., mas..., você sabe...”, olhando nos olhos do Zé avisou-lhe que sua dívida já chegava aos cinqüenta reais. O devedor abriu um largo sorriso para depois franzir o cenho, abrir os braços e dobrar o pescoço na diagonal e anunciar como quem pede favor na camaradagem que já havia dito “quantas vezes, hein?” que lhe pagaria logo, “de fé”, pois dentro de alguns dias o Tavares ia lhe quitar “o bagulho da sinuca que eu te falei”. “Ah, o Tavares...”, disse o dono do bar, explicando que este também lhe devia. Mas Zé enraiveceu e disse que isso era assunto deles, que “eu não tenho nada com essa joça”. Lauro já ia cedendo quando Martinho, sentado num dos bancos do balcão, retrucou dizendo que ele era um “desgraçado dum folgado” e que Lauro era alma boa demais para dizer não. Disse ainda para Lauro que só servisse quando Zé “botasse a mão no bolso”, ao que este, tomado de coragem, disse que era verdade, e cobrou de Zé. Zé, que era folgado mesmo, disse “que é isso, seu Lauro?”, e que sempre foi freguês do bar e que ia sim lhe pagar. Martinho então falou que ninguém pode “dar fé só no dizer” por tanto tempo, e ainda disse que Zé não tinha “moral” em nenhum outro bar do bairro, quer era “pra tomar tento logo”. Zé se acanhou e foi embora.
domingo, junho 29, 2008
Ode ao Corpo de Bombeiros da Nunes Machado (revisto)
No exato momento em que posto esta 'homenagem', uma sirene rompe as aparências da madrugada e me justifica.
Ó estridente grito, fúnebre presságio,
claro como o que canta a fanfarra
na alegria rasa das gulas oficiosas,
por que te anuncias, tão límpido,
na confusa hora da madrugada?
negado do nada como se algo fosse.
segundo dos segundos que carregam,
por trás da inocência encantada
dos inocentes versos da Poesia,
a temida Aurora, a atroz Vigília.
O que há para salvar do inevitável?
a pestear o quase infinito tanque
do Sonho, com a manhã da qual és
rubro e grave núncio, e na qual
me precipito com vivos ouvidos.
que meus amores notívagos demais.
se dão da convulsão nas tardias
horas dos dias a um luxo vulgar;
que morram como querem a Morte,
na qual, dizem, o Fim não está.
O Fim está é na morte do meu Sono.
acidentes a ver o ânimo esvaído:
meu coração pelo que não cria
não sente; nem meus olhos marejam
pela vida que lá fora não vê morrer.
Antes eles, que o meu - e teu! - Sono,
que doces mãos ao menos me oferece.
Conquista
Mas me tiras a razão e queres que eu raciocine?
Balzac
o próximo passo
não tem medidas
nem há caminho
para teu regaço
domingo, junho 22, 2008
Quando duas autoridades se amam
- Vossa Excelência, [...]
Ao que esta replicou:
- Vossa Excelência, [...]
E quando se casaram, um ao outro, pedindo vênia para se manifestar:
-Amo a vossa douta e ilustríssima figura.
E o som se reproduzia no tímpano do que ouvia, [...] vossa douta e ilustríssima [...].
Um dia o Excelentíssimo deixou de ser tão excelente assim e teve de se contentar com o Vossa Senhoria. E como homem sem título, ousou dizer um "eu te amo" à Excelentíssima.
Mas ela não conseguia lhe ouvir.
Artigo Primeiro
- Tens razão, o céu é azul.
As-Pessoas riu.
-Não, não, O-Ser. Agora o céu está cinza, não vês que as nuvens o cobrem?
-Aquilo são nuvens?
-Uhum.
[A positividade do direito passou a ser sinônimo de de certeza e segurança...]
E como eu quisesse dormir, As-Pessoas me levou à cama.
-Te cubras, eis que está frio.
E acomodei-me por sobre o cobertor macio.
-Não te cobres?
-Como não?
-Estás sobre a coberta.
-Acaso não estava o céu sobre as nuvens e estas não o cobriam? Não está o cobertor precisamente sob mim?
[Uma árvore cai na Amazônia e disso não se tem notícia. Para o direito, não se trata de um fato, simplesmente não ocorreu.]
As-Pessoas de novo riu.
-Eita, O-Ser! Tu tens idéias absurdas e inúteis. Cobrir é esconder-se. Esconda-te sob o cobertor como o céu se esconde além das nuvens.
-E isso me protegerá do frio?
-A ti sim. Ao céu não, que céu não sente frio.
[Artigo primeiro. O céu é azul
Artigo segundo. Toda rosa é rosa porque assim ela é chamada]
As-Pessoas saiu rindo. As-Pessoas sempre me ridicularizou. Eu tive medo.
-O que você quer ser quando crescer, O-Ser?
-Quero ser como As-Pessoas.
Foi o único momento em que As-Pessoas me deu razão. Senti-me bem com isso.
[Condeno tal com fundamento no artigo tal, parágrafo tal, inciso tal, alínea tal da lei tal.]
Chora agora, homem! Chora também, mulher! Aproveitai, pois, as últimas horas de sentimento estocados em vós, que amanhã ninguém, ninguém há de se alegrar, ninguém há de chorar. Aliás todos seremos ninguém. Estamos condenados a beber dos venenos que levaram a minha linda que com os vermes jaz. E foram tantos, não é, meu bem? Vamos e bebamos, vamos perder nossa condição de homens e mulheres, de crianças e velhos, de casados e solteiros, de amantes e inimigos! Vamos todos sorver o trabalho, a petição, o poder, a posse, o requerimento em três vias com reconhecimento de firma, a produção, a curva de Philips, o superávit primário, o recurso extraordinário, a propaganda, o custo/benefício, o dinheiro, a ginástica laboral, a gonorréia, a medida provisória que reajusta a alíquota do imposto sobre a renda do prestador de serviço para 40%, a fábrica, a circuncisão, o cinto de eletrodos, a cópia autenticada, o reflorestamento, o beijo entre Gisele Bündchen e Leonardo de Caprio, a máquina digital de 456.98 megapixels, a.........
Hoje, eu vos declaro robôs e vos participo: a poesia morreu.
quinta-feira, junho 19, 2008
domingo, junho 15, 2008
protótipo para um soneto do perfume
era uma paixão
de evocações:
sentia o seu perfume
e me vinha sua boca
e sua leve corcunda
depois,
as evocações eram
naturais;
me retinha na sua pele
e era eu os seus olhos
sentindo falta do seu perfume
por fim,
o cheiro me lembrava o perfume
e o perfume me lembrava o cheiro
sem dentes, lábios e garganta
sem você, inexpressiva,
que era só perfume, era só cheiro
comprei o frasco
e não a quero mais.
De sacanagens. Ou meros erros.
Por vaidade, adoraríamos crer que somos maus naturalmente. Mas, na verdade, é bem pior: nós nos tornamos maus sem saber, sem mesmo nos darmos conta disso. É difícil ser herdeiro de alguém sem desejar inconscientemente sua morte por este ou aquele motivo. “Em tais situações, apesar de nos conduzir um sincero amor pela virtude, mais cedo ou mais tarde, sem que se perceba, fraquejamos, e nos tornamos injustos e maus ao agir, sem deixarmos de ser justos e bons na alma” (Rousseau)
Gilles Deleuze
Sou um maldito filhodaputa, ele disse. Esperava ser absolvido falando-o. Mas os outros simplesmente concordaram, e não houve saída. Ele era mesmo um crápula, tendo feito tudo sem querer.
Mas ninguém faz o que ele fez sem querer, pensavam os outros. Que eram filhosdaputa iguais... Só que quando um dedo se levanta para apontar, é só para uma direção que ele aponta.
sábado, junho 14, 2008
Giancarlo Rufatto
Às vezes dá uma inveja!
PS: Não concordo nem um pouquinho com esse lugar-comum.
Sonetos a Orfeu
Sólo quien ya elevó la lira
también entre las sombras,
puede expresar, vislumbrando,
la alabanza infinita.
Sólo quien comió con los muertos
de sua adormidera, la de ellos,
no perderá nuevamente
el más leve sonido.
Puede que el reflejo en el estanque
se nos esfume a menudo, pero
conoce la imagen.
Sólo en un mundo duplicado
se tornan las voces
eternas y suaves.
Rainer Maria Rilke, de Sonetos a Orfeu, traduzido ao espanhol por Otto Dörr Zegers.
quinta-feira, junho 12, 2008
Verdades
Não entendo
Não sirvo e
Não tenho.
Dispenso o conselho,
Despeço o espelho,
Arremesso o processo.
Não penso
Não venço.