sábado, dezembro 30, 2006

Ocaso

Veio uma palavra, veio
veio pela noite,
queria brilhar, queria brilhar
Cinzas
Cinzas, cinzas
Paul Celan
Engravidei
de uma palavra.
Mas abortei(amos).

Foi para o céu,
escarrapachada no chão.

Engravidei
de uma idéia.
Mas a matei(amos).

Foi para o céu,
apunhalada no chão.

Engravidei,
Mas era um ruído.
Evaporou sozinho.

Foi para o céu
desaparecido do chão.

A última vez que engravidei
Foi de um homem mudo.

sexta-feira, dezembro 22, 2006

Desonra

Texto meu escrito para o antigo blog Realismo Superfantástico.

Fato é: houve duelo. Conto-te como foi, e não te importes com o motivo, que motivos de duelos são coisas às quais nem duelistas dão importância. Já houve caso contado, e não raro deve ser, em que se duelaram dois dos mais nobres espadachins da França por questão de onde apor a cerca. Vê bem: querelavam por cinco palmos de terra, nada mais, talvez menos. E achas que tal motivo lhes valeu a luta e o sangue esvaído? Óbvio que não. Razão por razão, a luta por si só já é suficiente, o resto estopim é.

O fato é: houve duelo, e nada mais pode interessar.

As horas eram altas, os duelos já eram proibidos na época. Mas a honra, que em lei da natureza o decreto do homem não se mete, ainda é a honra, e defendê-la é ainda defendê-la. O Espadachim vê o Espadachim e fica certo da vitória. O Espadachim, o outro, devolve a certeza ao Espadachim e o grito de en gard. Ambos, espadas em riste, pelejam então. Sabres cortam o ar refletindo as duas tochas que fracamente alumiam a cancha da batalha, os metais tilintam, os homens gemem e a noite, calada, só assiste à cena. Os inimigos são bons à mesma altura, mas não são precisos mais que segundos.

Touché!

No fim, talvez meio minuto seja pouco para horas, dias e semanas de aflição. Tanto preparo e tudo tão rápido se completa. Decepciona. O Espadachim vivo vê o Espadachim morto e não mais fica certo da vitória. A certeza que nele se dissipa, no morto se cristaliza, já que morreu com o que viveu no último momento. Um fio de sangue escorre pelos veios da terra e a rega com a exuberância da ruína, levando consigo tudo quanto na vida se construiu, talvez aos céus, talvez aos infernos. E se a espada não leva, leva a fé para que se arme no purgatório, se para lá foi.

Algo então de extraordinário ocorre: o vivo vê a si mesmo morto. Toma o lugar do outro, e põe em si vivo o outro morto, desesperando aos arrepios toda a sua alma. E percebe que perdeu tanto quanto o outro venceu; e que o que perdeu, perdeu tanto quanto o que ele mesmo, o vivo, perdia quando o sabre se enterrava por entre as costelas do inimigo. Eram iguais no nome - Espadachins -, eram iguais nas artes de lutar, eram iguais na certeza de vencer, e apenas por terem corpos separados não eram a mesma pessoa. Por tal e qual, eram iguais também na derrota. O Espadachim no qual pulsa ainda o pulso, vê o sangue do morto fazendo-se de si mesmo um com o planeta, e vê que não por honra vive, mas por sorte. Entende, enfim, que o duelo foi inútil, como todos o são. Podes alegar tu que o duelo ao menos lhe ensinou lições, mas inútil o Espadachim continua o tendo, porque, para aprendê-las, não era necessária, por pura fortuna que quiçá algum deus lhe concedeu, a morte do Espadachim outro.

quinta-feira, dezembro 21, 2006

Da traição e da passividade

Trecho de Uilisses, de James Joyce.
(Blazes Boylan se inclina acima do vão interno do carro, com seu chapéu de palha de abas largas de lado, uma flor vermelha na boca. Lenehan de boné de iatista e sapatos brancos intrometidamente destaca um fio longo de cabelo da ombreira do paletó de Blazes Boylan.)
LENEHAN
Oh! O que é que eu estou vendo aqui? Você andou escovando as teiasdearanha de algumas bocetas?
BOYLAN
(satisfeito, sorri) Trepando.
LENEHAN
Uma boa tarefa noturna.
BOYLAN
(erguendo alto quatro dedos largos grossosungulados, pisca o olho) Inflama Kate! Pra cima para mostrar para que veio ou seu dinheiro de volta. (ele estende um dedo indicador) Cheire isso.
LENEHAN
(cheira alegremente) Ah! Lagosta e maionese. Ah!
ZOE E FLORRY
(riem juntas) Ha ha ha ha.
BOYLAN
(salta com segurança do carro e grita bem alto para todos ouvirem) Olá, Bloom! A Sra. Bloom já esta vestida?
BLOOM
(num paletó de lacaio de pelúcia cor de ameixa e calções, meias compridas cor de camurça e peruca empoada) Receio que não, senhor. Os últimos acessórios...
BOYLAN
(atira seis pence para ele) Tome, para comprar gim com soda para você. (ele pendura rapidamente seu chapéu num prendedor da cabeça cornuda de Bloom) Faça-me entrar. Eu tenho um pequeno negócio particular com sua mulher, entende?
BLOOM
Obrigado, senhor. Sim, senhor. Madame Tweedy está no banho, senhor.
MARION (A sra. Bloom)
Ele devia se sentir profundamente honrado. (ela faz barulho ao sair espadanando da água) Raoul querido, venha e me enxugue. Estou na minha pele. Só de chapéu novo e uma esponja pra carro.
BOYLAN
(com um brilho alegre nos olhos) Ótimo!
BELLA
O quê? O que foi?
(Zoe segreda para ela.)
MARION
Que ele olhe, o enfeitiçado! Alcoviteiro! E se flagele! Eu vou escrever a uma poderosa prostituta ou Bartholomona, a mulher barbada, para que ela produza vergões nele de uma polegada de espessura e faça com que ele me traga um recibo assinado e selado.
BOYLAN
(aperta suas mãos) Vamos, eu não posso segurar esta coisinha por muito mais tempo. (ele sai com passadas largas de pernas rijas de cavalaria)
BELLA
(rindo) Ho ho ho ho.
BOYLAN
(falando para Bloom por cima do ombro) Você pode colocar seu olho no buraco da fechadura e se masturbar enquanto eu simplesmente penetro nela algumas vezes.
BLOOM
Obrigado, senhor. Vou fazer isso, senhor. Posso trazer dois camaradas para testemunhar o feito e bater um instantâneo? (ele segura uma jarra de ungüento) Vaselina, senhor? Flor de laranjeira...? Água morna...?
KITTY
(do sofá) Conte pra nós, Florry. Conte pra nós. O que...
(Florry sussurra para ela. Sussurrando murmúrios de palavrasdeamor, lábiolambendo ruidosamente, flopplop.)
MINA KENNEDY
(com os olhos revirados) Ó, deve ser como o perfume de gerânios e pêssegos deliciosos! Ó, ele simplesmente idolatra cada pedacinho dela! Grudados um no outro! Coberta de beijos.
LYDIA DOUCE
(abrindo a boca) Iumium. Ó! Ele a está carregando pelo quarto afora fazendo isso! Cavalgar um cavalo-de-pau. Podiam ser ouvidos em Paris e Nova York. Como bocas cheias de morango com creme.
KITTY
(rindo) Hi, hi, hi.
A VOZ DE BOYLAN
(docemente, roucamente, na boca do estômago) Oh! Fogocelestialgurkbrkarcrast!
A VOZ DE MARION
(roucamente, docemente, se elevando até a garganta) Oh! Uinaskissinapuisbuapuhue?
BLOOM
(com os olhos ultra-arregalados aperta as mãos contra o corpo) Mostre! Esconda! Mostre! Penetre nela! Mais! Se atire!
*************
Outro exemplo da genialidade, exatamente oposto do post (boa aliteração) anterior. Enquanto Proust disseca o homem com um lirismo incomensurável e um rigor estilístico baseado em frases longas e truncadas, perfeitamente encadeadas, Joyce explora o agir e o sentir humano com a linguagem inspirada na própria situação, permitindo-se subverter a realidade - confundido objetividades e subjetividades, que formam uma unidade indissociável - a ponto de descrever cada hora do dia 16 de junho de 1904 sem descrevê-la, isto é, por impressões que a própria sintaxe, que varia durante toda a obra, e a miríade de gêneros literários que encaixou no romance nos deixam. No trecho transcrito, a realidade é alucinada e absurda, própria para um homem de alma atormentada em tarde da noite, embriagado num bordel de Dublin; e, entretanto, temos uma medida ainda mais exata do que é real.

quarta-feira, dezembro 20, 2006

Do sadismo

Trecho de No Caminho de Swann, de Marcel Proust

"A Srta. Vinteuil estava de luto fechado, pois o pai morrera há pouco. Não tínhamos ido visitá-la, minha mãe não quis fazê-lo devido a uma virtude que nela ainda limitava os efeitos da bondade: o pudor. Mas lastimava-a profundamente. Lembrava-se do triste fim de vida do Sr. Vinteuil, absorvido primeiro pelos cuidados de mãe e de babá que prestava à filha, depois pelos sofrimentos que esta lhe causara; ela revia o rosto torturado que, velho, apresentava nos últimos tempos; sabia que ele renunciara para sempre a terminar de passar a limpo sua obra dos últimos anos, pobres esboços de um velho professor de piano, de um antigo organista de aldeia, que imaginávamos de quase nenhum valor, mas que não desprezávamos porque valiam muito para ele e tinham sido a razão de ser de sua vida antes de sacrificá-la pela filha e que, na maioria, nem sequer eram transcritos, sendo conservados apenas de memória, alguns rabiscados em folhas avulsas, ilegíveis, e assim permaneceriam desconhecidos; minha mãe pensava nessa outra renúincia, mais cruel ainda, que o Sr. Vinteuil se vira obrigado: a renúncia a um futuro de felicidade honesta e respeitada para a sua filha; quando relembrava toda essa desgraça suprema do antigo professor de piano da minhas tias, sentia um verdadeiro desgosto e pensava horrizada nessa outra aflição que a Srta. Vinteuil deveria experimentar, bem mais amarga, a de viver cheia de remorsos por ter aos poucos matado o pai. "Pobre Sr. Vinteuil" - dizia minha mãe - "viveu e morreu pela filha, sem ter recebido sua paga. Será que a recebe, depois de morto? E de que forma? Só poderá vir dela."

No fundo do salão da Srta. Vinteuil, sobre a lareira, havia um pequeno retrato do seu pai, que ela foi buscar às pressas no momento em que ressoou o rodar de um carro na estrada. Depois, atirou-se sobre um canapé e puxou para junto de si uma mesinha sobre a qual pôs o retrato, como outrora o Sr. Vinteuil pusera a seu lado o trecho que gostaria de tocar para meus pais. Logo entrou a sua amiga. A Srta. Vinteuil recebeu-a sem se levantar, com as duas mãos enlaçadas na nuca e recuou para o lado oposto do canapé como para lhe dar lugar. Mas logo sentiu que assim parecia lhe impor uma atitude que talvez lhe fosse inoportuna. Pensou que talvez a amiga gostaria mais de ficar longe dela, numa cadeira, achou-se indiscreta, e com isso a delicadeza de seu coração se alarmou; retomando todo o espaço do sofá, fechou os olhos e pôs-se a bocejar para indicar que o desejo de dormir era o motivo único de estar assim estendida. Apesar da familiaridade rude e dominadora que tinha para com a amiga, eu reconhecia os gestos reticentes e obsequiosos, os súbitos escrúpulos de seu pai. Em breve se levantou, fingiu querer fechar os postigos e que não conseguia.

- Deixa tudo aberto, tenho calor - disse a amiga.
-Mas é um perigo, podem nos ver - replicou a Srta. Vinteuil.

Mas, sem dúvida, ela adivinhou que a amiga pensaria que ela dissera estas palavras só para provocá-la, para que respondesse com outras que ela, de fato, desejaria ouvir, ma que, por discrição, queria deixar-lhe a iniciativa de pronunciá-las. Portanto, seu olhar, queeu não podia discernir, deve ter assumido a expressão que tanto agradava à minha avó quando acrescetou com vivacidade:

- Quando digo "nos ver", quero dizer nos ver lendo, é perigoso, pois qualquer coisa insignificante que se faça, é desagradável pensar que olhos estranhos nos possam estar vendo.

Por uma generosidade instintiva e uma involuntária polidez, ela calava as palavras premeditadas que julgara indispensáveis à realização completa de seu desejo. E em todos os instantes, no fundo de si mesma, uma virgem tímida e suplicante implorava e fazia recuar um velho soldado áspero e vencedor.

- Sim, é provável que nos olhem a esta hora, nesse campo tão freqüentado - disse a amiga ironicamente. - E depois, que importa? - acrescentou (achando dever juntar um piscar de olhos malicioso e terno a essas palavras que recitou por bondade, como um texteo que sentia ser agradável à Srta. Vinteuil, com um tom que ela se esforçava em tornar cínico). - Se nos virem, melhor.

A Srta. Vinteuil estremeceu e levantou-se. Seu coração, escrupuloso e sensível, ignorava quais palavras deviam vir espontaneamente se adaptar à cena que seus sentidos exigiam. Buscava, o mais longe possível de sua verdadeira natureza moral, encontrar a linguagem própria à moça viçosa que desejava ser, mas as palavras que esta última pronunciara com sinceridade pareciam-lhe falsas em seus lábios. E o pouquinho que ela se permitia nesse campo era dito num tom afetado, no qual seus hábitos de timidez paralisavam suas veleidades de audácia, tudo entremeado de "não estás com frio, não tens muito calor, não queres ler sozinha?"

- A senhorita parece ter pensamentos bastante lúbricos esta noite - acabou por dizer, sem dúvida repetindo uma frase que ouvira antes na boca da amiga.

No decote de seu corpinho de crepe, a Srta. Vinteuil sentiu que a amiga lhe dava um beijo, soltou um gritinho, fugiu, e as duas se perseguiram aos saltos, fazendo revoar as largas mangas como asas e gorjeando e chilreando como dois pássaros amorosos. Por fim, a Srta. Vinteuil caiu sobre o sofá, coberta pelo corpo da amiga. Mas esta encontrava-se de costas para a mesinha onde estava o retrato do velho professor de piano. A Srta. Vinteuil compreendeu que a amiga não o veria se não lhe atraísse a atenção, e lhe disse, como se apenas agora tivesse reparado nele:

- Oh, este retrato de meu pai que nos olha, não sei quem o pôs aí, já falei mil vezes que não é este o seu lugar.

Lembrei que estas eram as palavras que o Sr. Vinteuil havia dito a meu pai a propósito de uma partitura musical. Esse retrato lhes servia habitualmente para profanações rituais, pois a amiga lhe respondeu com estas palavras que deviam fazer parte de suas respostas litúrgicas:

- Ora, deixe-o aí mesmo, ele não se acha mais aqui para nos aborrecer. Imagina como não haveria de lamentar-se, o macaco velho, e querer pôr-te um xale, se te visse agora com a janela aberta.

A Srta. Vinteuil retrucou com palavras de suave censura: "O que é isso? O que é isso?", que demonstravam sua boa formação, não que fossem ditadas pela indignação que semelhante modo de falar de seu pai pudesse lhe causar (evidentemente, esse era um sentimento que já se habituara a calar em si mesma, sabe-se lá à custa de quais sofismas?), mas porque eram como que um freio que, para não se mostrar egoísta, ela mesma punha no prazer que a amiga procurava lhe dar. E, além disso, essa moderação risonha em responder a tais blasfêmias, essa censura hipócrita e terna, pareceriam talvez à sua índole franca e generosa uma forma particularmente infame, uma forma adocicada daquela perversidade que ela procurava assimilar. Porém não pôde resistir à atração do prazer que sentiria em ser tratada com doçura por uma pessoa tão implacável em face a um morto indefeso; saltou sobre os joelhos da amiga e lhe estendeu castamente a testa para ser beijada, como o teria feito se fosse sua filha, sentindo deliciada que ambas alcançariam nesse modo o limite da crueldade, roubando o Sr. Vinteuil, até na sepultura, a sua paternidade. Sua amiga lhe pegou a cabeça entre as mãos e lhe deu um beijo na testa com a docilidade que lhe era facilitada pelo grande afeto que lhe votava, e o seu desejo de oferecer um pouco de distração à vida agora tão triste de pobre órfã.

- Sabe o que eu gostaria de fazer com esse velho pavoroso? - disse ela pegando o retrato.
E murmurou ao ouvido da Srta. Vinteuil algo que não pude perceber.
- Oh, você não se atreveria.
- Não me atreveria a escarrar em cima disso? - disse a amiga com uma brutalidade intencional.

Não ouvi mais nada, pois a Srta. Vinteuil, com um ar abatido, sem jeito, ocupado, honesto e triste, veio a fechar os postigos e a janela, mas sabia agora, por todos os sofrimentos que durante a vida inteira o Sr. Vinteuil suportara por causa da filha, o que, após a morte, recebera dela em paga.

E contudo, desde então pensei que o Sr. Vinteuil tivesse podido assistir a essa cena, mesmo assim nçao teria perdido a fé no bom coração da filha, e talvez não estivesse de todo enganado. Certamente, nos hábitos da Srta. Vinteuil a aparência do mal era tão completa que seria difícil ver sua realização perfeita senão numa natureza sádica; é de preferência à luz da ribalta dos teatros do bulevar, do que sob a lâmpada de uma verdadeira casa de campo, que se pode ver uma moça fazer a amiga cuspir sobre o retrato de um pai que só viveu para ela; e somente o sadismo pode dar um fundamento, na vida, à estética do melodrama. Na realidade, afora os casos de sadismo, talvez uma moça possa cometer faltas tão cruéis como a da Srta. Vinteuil à memória e contra as vontades do pai morto, mas não os resumiria expressamente em um ato de um simbolismo tão rudimentar e tão ingênuo; o que sua conduta teria de criminosa seria mais velado aos olhos dos outros e até a seus próprios olhos, pois ela faria o mal sem confessá-lo. Mas, para além da aparência, no coração da Srta. Vinteuil, o mal, ao menos no começo, sem dúvida não era exclusivo. Uma sádica feito ela é uma artista do mal, o que uma criatura inteiramente má não poderia ser, pois o mal não lhe seria externo, antes lhe pareceria muito natural; não se distinguiria dela, até; e a virtude, a memória dos mortos, a ternura filial, como não as cultuasse, não sentiria nenhum prazer sacrílego em profaná-las. As sádicas do tipo da Srta. Vinteuil são seres tão puramente sentimentais, tão naturalmente virtuosos, que até o prazer sensual lhes parece algo de maldoso, privilégio dos malvados. E, quando permitem a si mesmos se entregarem a eles por um momento, é na pele dos maus que tentam se pôr e de fazer entrar seu cúmplice, de modo a ter um instante de ilusão de estarem se evadindo de suas almas escrupulosas e brandas para o mundo desumano de prazer..."


Isso é o limiar da perfeição do romance que se ocupa dos mais sutis detalhes da complexidade humana. Vale um culto, uma homenagem, e, na tradição das mitologias, e aqui estabeleço o mítico ser do escritor, o sacrifício de um filho.

terça-feira, dezembro 19, 2006

Rosebud

(Versão definitiva)
To Citizen Kane
A rose that shall forever be
under sands of the hourglass;
from the far and unglorious past,
'til the fading eternity.

La lengua de las mariposas

Tendo saído do que se convencionou chamar academia, quando em realidade se trata do ginásio, local onde modelamos nosso corpo para a adequação estética dum padrão consensual – o qual seria hipocrisia criticar, haja vista que dele também partilho, sob o pretexto de buscar saúde, numa valorização excessiva a uma vida sem significados, sofri inicialmente um momento de euforia, natural para quem pratica esportes logo após interrompê-los, para chegar a um estado de moleza total do corpo, uma fatiga que ultrapassa o mero cansaço: trata-se daquele torpor físico que o estarrece por completo simultaneamente à presença de uma certa comichão que o diz para não parar, embora você seja incapaz de continuar. Você cai escarrapachado no colchão, impossibilitado, no entanto, de dormir.

Mais ou menos era esse o estado em que me encontrava quando mergulhei num filme em minha sala. E julgo agora que minha paradoxal apatia é efeito do filme! Tal é a admiração que me causou, a emoção que descobri viva quando pensava estar já endurecida pela trajetória que o acaso traçou ao longo da vida. Embasbaquei-me.

Não importa se exagero. Encantei-me. O que o faz valer à pena.

sexta-feira, dezembro 15, 2006

Kierkegaard

Os segundos se sucedem e dão ao anterior desde já o teor de passado: tudo fica eqüidistante, a uma distância infinita, na medida do jamais alcançável. Desde o livro que acabo de largar sobre a mesa, cujas letras pequenas me fazem doer os olhos, que tentam apreendê-las sem o costumeiro auxílio do pince-nez deixado não sei onde, até o vergão disciplinador que meu pai fez marcar em minhas nádegas no dia em que ousei em público tocar minha genitália, tudo é terminantemente passado, tudo sou eu e segue à minha frente a determinar meus passos e a dar a medida do meu desespero.

Vivi tempo suficiente para consolidar meu eu e enfrentar esse desespero dando a ele a melhor e mais nobre configuração possível: a de desesperadamente ser eu mesmo, com a fé que em mim é peculiar. Mas mesmo com tantos anos que se contam em meus papéis, creio que não consegui passar ao largo de toda crise, sempre recorrente, o que prova minha tese de que o desespero é a doença mortal – não porque mata, mas porque à nossa morte o levamos - e só na eternidade é que dele podemos nos curar.

De que a Europa vai à bancarrota tenho certeza. Nossos sacerdotes pregam uma fé sem significado, destituída de valor intramundano porque sem sentido aparente, dirigida ao nada e passada de gerações a gerações pela comodidade da tradição, que não costumamos questionar ou sequer dela dar-nos conta. Os jovens de hoje são uns arruaceiros sedutores, estetas signatários de alguma associação metafísica do mais vil hedonismo, tão vazio quanto pode ser uma vida vazia de decisões.

Os ingênuos intelectuais de nossa época insistem no romantismo que nos iguala a nada, e não na fé que atesta o absurdo da existência mas que a ela confere um porto seguro em que posso atracar, aceitando o fato de que existo e por tal é dever meu assumir para mim esta existência. É preciso que nos apropriemos de nós mesmos, sendo nós cada vez eu. Pobres senhores! Sentem-se parte funcional de um todo espacial e temporal, alienando-se ao mundo por não se reconhecerem uma unidade total, um eu. Mal sabem que derrelitos ao mundo e ao tempo, encontram-se seu eu com o dever de sê-lo nestas dimensões, das quais não participam, senão que os têm como constituintes de si mesmos!

Se sou desesperado, é porque as decisões são sempre minhas: ouso escolher.

domingo, dezembro 03, 2006

Não busco um futuro,
essa máquina de desenganos.
Não planto nem planejo.

Se eu me for agora,
Antes que perca meus humanos
direitos
, ainda valerei uma reza.

Soneto antigo

De um lado trevas, d’outra parte luzes,
Tijolos crus, os afrescos suaves,
Combinam-se rosários e cruzes,
Ocultam-se temores nessas naves.

-Tu, padre, que na igreja me conduzes,
Dize-me, pois me medram tais entraves
No meu livre pensar (tu não me induzes):
Por que está Deus entre os temas mais graves?

-Deves temê-Lo, filho! Pensa assim!
Sua onisciência vê teus pecados,
Não queiras penas! Sê dentre almas puras!

-Temê-Lo? Como se incute isso a mim?
Enfrentá-Lo-ei, pois, se vê meus atos!
Como temer quem me espreita às escuras?