sexta-feira, maio 27, 2016

Geometria

que não entre aqui quem não souber
ignorar-se quem mergulhando na terra
não fugir à própria medida que aqui não bote
os pés vegetais da anciã genealogia quem
no jogo das esferas sabe a terra redonda, e vazia

os minutos mais importantes da história do cinema



a dança contente dos dedos
em pas de deux no fio atroz
da última técnica de depilação facial
a canga verde que desenha
brisa e silhueta
do sexo adivinhado na praia
a mão contraparte do cigarro
a incendiar o cenário inútil
da cidade que entra pela janela
o minuto ou menos que levou
o olho para encharcar-se
na tristeza glauca de um pedido
a história que se passou
entre o sutiã que prometia
e o seio que cumpriu
duas ou três palavras sopradas
como o único mandamento
de uma madrugada:

nenhum minuto mais importante da história do cinema pôde ser filmado

segunda-feira, novembro 26, 2012

aqui onde me embrenho ................................ ruivouro teu cabelo pássaro
promessa de vento....................................................... teu cabelo éolo
histórias da chuva ...................................................   teu cabelo sáfaro

segunda-feira, novembro 12, 2012

o país
proíbe
o espanto


tudo deve
seguir
sendo

o seu próprio tanto


terça-feira, setembro 18, 2012

Esfinge

como tinha
aqueles olhos
me adiantei ao enigma

- devora-me

come
minha boca
remédio império
de festim doutrina
para que não exploda
a Ideia manjar
num porre de estrofe
alegre e mísera
come!

(digo-o
mas quieto:
lábio mastigado
em teu dente
de concreto
refeito
lábio ou Corpo ou coisa ou
beijo de doce úlcera
em tua víscera cemitério)

sábado, agosto 25, 2012

Notas sobre o Desejo em Barthes


o livro faz o sentido, o sentido faz a vida
Roland Barthes

I
Na metafísica da República platônica, o caminho do saber se faz para o alto, em direção ao conhecimento mais importante, o do bem, cuja figura é o sol que projeta as sombras nas paredes da caverna. Há, porém, um momento em que o filósofo deverá sair dessas alturas para voltar ao solo, à partilha da vida comum na cidade com a experiência de seu saber. Esse retorno não seria também o retorno do leitor de seu espaço confinado – o gabinete do narrador da Recherche proustiana - à vida dos afazeres mundanos? Mas, tendo experimentado a partir de uma abolição do mundo todos os prazeres da leitura, o que disso resta ao leitor que se revê no meio dos turbilhões da vida?

De outro modo, o que há além do livro? Ou, é Barthes que o pergunta: “por que não continuamos um livro?”. Giorgio Agamben, apoiado sobre a poesia medieval e sobre Valéry, já se colocou a questão do fim do poema e do fim do verso. Segundo ele, o que marca a especificidade da poesia é o enjambement, definido como uma cisão entre o som e o sentido, uma não-coincidência fundamental entre o fim de um conjunto sonoro e semiótico – o verso – e de um conjunto semântico – a frase. Disso ele conclui que o fim do poema, no momento em que o enjambement não é mais possível, faz o leitor se abismar sobre o silêncio, sobre uma queda infinita.

Essa precipitação do leitor, devemos limitá-la ao fim do poema? Ora, é também pelo infinito (e pelo retorno à história) que Barthes define o gozo para além do livro: “de parte a outra, a escritura-leitura se expande ao infinito, compromete todo o homem, seu corpo e sua história; é um ato de pânico, cuja única definição segura é que ele não se detém em lugar nenhum”. Saindo da verticalidade das alturas e dos abismos, é dessa expansão infinita e horizontal que nos ocuparemos agora.

II
Uma inundação das rotas que conduzem à cidade isola um jovem estudante de medicina na fazenda de seu primo. Para poder trocar algumas palavras com a família do peão, o estudante se põe a ler-lhes o Evangelho segundo Marcos, com o que ele ganha o interesse deles. Tendo curado uma pequena cabra com comprimidos, ele ganha também o seu respeito. As chuvas continuam, e a família lhe pede novamente a leitura do mesmo Evangelho. No fim, chegando o bom tempo e o dia de partir dali, o jovem é arrancado de sua cama e maldito pela família. Fora da casa, vê uma cruz que foi levantada para si.

Eis, grosso modo, a trama do conto O Evangelho segundo Marcos, de Jorge Luís Borges. Pode-se ver que o escritor desenvolve aqui, numa escala menor, porém mais intensa, a experiência da leitura que já conhecemos com Dom Quixote ou com Emma Bovary. Longe de abandonar o texto à esfera do separado, esses leitores se deixam marcar por ele, atravessar seus corpos por sua letra, a fim de se expandir do fim do livro à história do qual eles fazem parte.

Se com a leitura clandestina, separada, do narrador proustiano de que fala Barthes, a gente o identifica com o sujeito amoroso ou com o sujeito místico que abole o mundo, com a leitura transbordada de nossos peões, a gente os identifica com o sujeito esquizofrênico que não abole, mas retoma o mundo, o mundo, porém, sob o modo de sua abolição. Esse leitor lunático se vê tomado a um só tempo pelas “três vias pelas quais a Imagem da leitura pode capturar o sujeito que lê” - a saber, a leitura metafórica ou poética, a leitura metonímica e a leitura condutora do Desejo de escrever.

De início, o texto libera uma máquina de leitura metonímica que avança ao longo do livro, gozando o seu suspense, mas que não pode se deter no fim. Essa máquina se precipita, assim, além do livro, em direção ao infinito da história, com seu corpo novo – porque o gozo lhe é constituinte. Retomando o mundo e mantendo o suspense, nosso leitor sentirá na sequência a necessidade de o metaforizar, para ultrapassar as categorias enrijecidas da realidade e da língua comuns. Digamos: contra o fetichismo que conserva as coisas tais como elas são, essa máquina opõe um fetichismo violento que procura se substituir ao primeiro, dando uma nova roupagem ao – ou despindo o - mundo. E eis aí Dom Quixote fazendo de moinhos gigantes; Emma Bovary fazendo seus amores sucederem-se e substituírem-se um ao outro; o jovem médico, após a cura da cabra, visto como o novo Jesus Cristo. Após ter sido atravessado pelo texto, o próprio leitor perfura o mundo, fazendo deste o espaço privilegiado de sua aventura pessoal.

Perfurar o mundo: a experiência ocidental da escritura é justamente aquela da inscrição - “para o escriba ou o copista ocidental, preparar-se para escrever é talhar sua pluma (gesto agressivo, predator, despedaçante)”, segundo Barthes. Se a terceira via que caputra o sujeito que lê é aquela do Desejo de escrever, e se, no fim do livro, não encontramos mais o limite entre o livro e o mundo (relembremos a máxima mallarmaica: “tudo no mundo existe para chegar ao livro”, e vice-versa), podemos então dizer que desejar a escritura/inscritura do mundo, como fizeram esses leitores esquizofrênicos, é também uma forma de ser capturado pelas Imagens da leitura.

III
Ironia assustadora: um texto cujo pacto ficcional demanda do leitor o reconhecimento de sua verdade, como o do Evangelho segundo Marcos, pode aguentar essa verdade? Ou nos incumbe proteger o texto de si mesmo, criando espaços separados, gozos vigiados, interpretações autorizadas? É claro que a experiência dos nossos leitores esquizofrênicos é uma experiência limite, mas o perigo que toda escritura oculta em si nunca passou despercebido pelas diferentes forças da censura, desde a expulsão dos poetas da República platônica até os meios de controle do mercado, do direito de autor e das instituições legitimantes do discurso crítico. Ou seja, o leitor esquizofrênico é a figura hiperbólica de uma possibilidade fundamental da leitura, aquela da letra constituinte do sujeito.


Barthes nos diz, no fim de suas observações sobre o Desejo: “para mim, minha convicção profunda e constante é que nunca será possível liberar a leitura se, no mesmo golpe, não liberamos a escritura”. Ele se preocupa aqui da produtividade do texto, ao constatar que em nossa sociedade, de consumo, não de produção, “tudo está feito para bloquear a resposta”. Do que se trata esse bloqueio? Poderíamos aproximá-lo à “separação consolidada” de que nos fala Guy Debord? Isola-se o texto literário por sua ficcionalidade, separando-o da vida, para evitar o perigo de sua produtividade no Desejo do sujeito que lê. Relega-se a literatura, e a arte em geral, a uma estética pura, um prazer anódino ligado ao esquecimento da vida real, aquilo que se aprecia nos momentos de descanso, para que se possa voltar ao batente como se nada tivesse acontecido – a “prática confortável da leitura”1.

Porém, se o postulado de que a leitura esquizofrênica guarda em si uma das possibilidades fundamentais da leitura, a da constituição do sujeito pela inscrição, é correto, em qual medida podemos considerar que essa leitura confinada (enfermé), confirmante da cultura tal como é, sem reviravoltas e crises, é, ela mesma, parte da constituição do sujeito? Debord pode nos dar um caminho: “a realidade considerada parcialmente se desdobra na sua própria unidade geral enquanto pseudo-mundo à parte, objeto unicamente da contemplação. A especialização das imagens do mundo se vê, cumprida, no mundo da imagem autonomizada, em que o mentiroso mentiu-se a si mesmo”. Ou seja, é a separação (ou a autonomização) das imagens da literatura ou da arte que o leitor guarda e traz ao mundo. Assim, o mundo é percebido como separado de si, a quem só resta a contemplação ou a crítica ranzinza do homem honesto. Vê-se aqui de novo o retorno ao mundo sob a forma de sua abolição. Mas uma abolição não-viva, totalizante como realidade dada, independente do sujeito. O sujeito, aqui, se constitui pela assunção da separação; aquilo que Walter Benjamin chama de “estetização da política”.

Embora essa leitura tenha sua produtividade, a da reprodução da cultura corrente, é a aventura pessoal da escritura-inscritura, da precipitação no abismo, a do próprio gozo, que lhe falta. Essa aventura, nós a encontramos no narrador proustiano – cujo enredo é também uma espécie de Bildungsroman de um escritor que se escreve ao se criar pela leitura – e nossos leitores lunáticos. É a aventura da perfuração do mundo.

___
1Essa é também a forma da recepção da literatura que Barthes atribui a uma tal Sociedade dos Amigos do Texto“chatos-boys [casse-pieds] de todo tipo, que decretam a forclusão do texto e de seu prazer, seja por conformismo cultural, seja por racionalismo intransigente (que suspeita de uma “mística” da literatura), seja por moralismo político, seja pela crítica do significante, seja por pragmatismo imbecil, seja por parvoíce burlesca, seja pela destruição do discurso, perda do desejo verbal”.

quinta-feira, maio 17, 2012

O que é a arte, Jean-Luc Godard?

Por Louis Aragon. Tradução minha.

O que é a arte? Ando às voltas com essa pergunta desde que vi Pierrot le Fou [O demônio das onze horas, no Brasil] de Jean-Luc Godard, em que o Esfinge Belmondo coloca a um produtor americano a questão: O que é o cinema? De uma coisa estou seguro, e assim posso começar a atacar minhas perturbações com pelo menos uma certeza, como um pilotis sólido no meio do pântano: é a de que a arte hoje é Jean-Luc Godard. É talvez por isso que seus filmes, e particularmente esse filme, provocam injúria e desprezo; há quem se permite com eles o que jamais ousaria dizer sobre uma produção comercial comum, e permite-se, diante do autor, certas palavras que extrapolam a crítica e atacam o homem.

O que o americano, em Pierrot, diz sobre o cinema poderia dizer sobre a guerra do Vietnã, ou sobre a guerra de modo geral. O que soa engraçado no contexto - o extraordinário momento do filme em que Belmondo e Anna Karina, para conseguir dinheiro, improvisam diante de um casal de americanos e seus marinheiros, em algum lugar da Côte, uma peça em que ele é o sobrinho do Tio Sam, e ela, a sobrinha de Tio Ho... But it's damn good, damn good! exclama o marinheiro de barba ruiva... porque é um filme em cores, imaginem vocês. Não vou, como todo mundo, contar-lhes o enredo, que isso aqui não é uma resenha. E além do quê, o filme desafia a resenha. Que contem centavo por centavo os milhões!

A guerra do Vietnã segundo Belmondo-Pierrot-Ferdinand-sobrinho de Tio Sam e Anna Karina-Marianne-sobrinha de Tio Ho

O que é que eu teria respondido caso Belmondo, ou Godard, tivesse me perguntado: O que é o cinema? Eu abordaria o negócio de outra maneira: pelas pessoas. O cinema, para mim, foi antes de tudo Charlot, depois Renoir, Buñuel, e hoje é Godard. É isso. Dirão que esqueço Eisenstein e Antonioni. Vocês se enganam: não os esqueço. Nem alguns outros. Mas minha questão não é de cinema: é de arte. O que me levaria do mesmo modo a dizer: de uma outra arte, de uma arte frente a outra, com uma longa história, a fim de resumi-la ao que ela se tornou para nós, nos tempos modernos: uma arte moderna. A pintura, por exemplo. A fim de resumi-la às pessoas.

A pintura, no sentido moderno, começa com Géricault, Delacroix, Courbet, Manet. Depois, seu nome é multidão. Por causa deles, a partir deles, contra eles e além deles. Um florescimento tal como não se viu desde a Itália da Renascença. Para se resumir completamente em um homem chamado Picasso. O que neste instante me interessa é esse tempo dos pioneiros, pelo qual ainda se pode comparar o jovem cinema à pintura. O jogo de dizer quem é Renoir ou quem é Buñuel não me diverte. Mas Godard é Delacroix.

A começar por como se recepciona Godard. Em Veneza, digamos. Não estive em Veneza, não faço parte dos júris que distribuem as palmas e os oscars. Eu vi, encontrei-me vendo Pierrot le fou, e é tudo. Não falarei dos críticos. Que se desonrem sozinhos! Eu não vou contradizê-los. Há entretanto quem, dentre eles, se deixou conquistar pela grandeza: Yvonne Baby, Chazal, Chapier, Cournot... Ainda assim, não posso deixar passar aqui o extraordinário artigo de Michel Cournot: não tanto pelo que diz, um tanto obcecado pelos reflexos da vida pessoal no filme, pois como todos ele está intoxicado pelo cinema-verdade, enquanto eu me ligo ao cinema-mentira. Mas, pelo menos (e finalmente!) eis aí um homem que se deixa levar quando alguma coisa o toca. E depois, que me desculpem, ele sabe escrever, e se de tudo fica só isso, a mim pelo menos isso importa. Amo a linguagem, a maravilhosa linguagem, o delírio da linguagem: nada é mais raro que a linguagem da paixão, nesse mundo em que vivemos com medo de sermos pegos desprevenidos, medo que remonta, queiram crer, à saída do Éden, quando Adão e Eva se viram nus antes da invenção da folha de vinha.

Mas do que é que falava? Ah! sim, eu amo a linguagem e é por isso que eu amo Godard, que é todo linguagem.

Não, não era disso que eu falava: eu falava que se o recepciona como recepcionaram Delacroix. No salão de 1827, que conta aqui como Veneza, Eugène [Delacroix] pendurou A morte de Sardanápalo, que ele chamava de seu Massacre n. 2, pois ele era também um pintor de massacres, não um pintor de batalhas. Ele teve, diz, várias rusgas com S. Senhorias, os rigorosos membros do júri. Quando o viu na parede (“meu quadreco não podia estar em melhor lugar”), ao lado das telas dos demais, sentiu-se como se todo mundo o vaiasse na estreia. E isso antes de a exposição ter começado. Um mês mais tarde ele escreveria para seu amigo Soulier:

Aborrece-me todo esse Salão. Acabarão me persuadindo de que fiz um verdadeiro fiasco! Do que ainda não estou convencido, no entanto. Uns dizem que A morte de Sardanápalo é um fracasso total, assim como a dos românticos, pois há algo de romântico aí; outros, que estou equivocado, mas que achariam melhor enganarem-se assim que ter razão como mil outros que, se se quer, têm razão e que estão condenados em nome da alma e da imaginação. Já eu digo que são todos uns imbecis, que essa tela tem qualidades e defeitos, e que se há coisas que eu desejaria sim que fossem melhores, há ainda muitas outras por que, de tê-las feito, eu me considero feliz e as quero. Le Globe, ou melhor, o Sr. Vitet, diz que quando um soldado imprudente atira em seus amigos como atira em seus inimigos, deve-se afastá-lo das fileiras. Ele convoca o que ele chama de jovem Escola a renunciar a toda aliança com um pérfido independente. Tanto o faz que os que me roubam e vivem de minha substância não hesitariam em vilipendiar-me um mais alto que o outro. Tudo isso dá pena e não merece atenção nem por um momento, a não ser pelo fato de que isso vai comprometer os interesses materiais, ou seja, the cash...

Delacroix, La mort de Sardanapale, 1827. Musée du Louvre.

Nada, nem o franglês [franglais], mudou muito nesses cento e trinta e oito anos. Ocorre que fui rever A morte de Sardanápalo há pouco tempo. Que quadro esse “massacre”! Pessoalmente, prefiro-o de muito a A liberdade sobre as barricadas, sobre que já me encheram a paciência. Mas não é disso que se trata. Trata-se de em que a arte de Delacroix aqui assemelha-se à arte de Godard em Pierrot le fou. Isso não lhes salta aos olhos? Falo para aqueles que viram o filme. Não, isso não lhes salta aos olhos.

Enquanto assistia à projeção de Pierrot, eu havia esquecido o que normalmente se deve, ao que parece, dizer e pensar de Godard. Que ele tem tiques, que cita este e aquele, que nos dá lição, que ele se crê isso ou aquilo... enfim, que ele é insuportável, verborrágico, moralizador (ou imoralizador); eu, no entanto, só via uma coisa, uma única: é a de que o filme era bonito. De uma beleza sobre-humana. Que vai do físico até a alma e a imaginação. O que se vê durante duas horas é essa beleza a que a palavra beleza não basta para definir; seria preciso dizer desse desfile de imagens que ele é, que elas são, simplesmente sublimes. Mas ao leitor de hoje desagrada o superlativo. Tanto pior, o que penso desse filme é que ele é de uma beleza sublime. Palavra essa que não se emprega mais, senão para as atrizes ou nos bastidores. Tanto pior, continua sendo mesmo assim de uma beleza sublime. E olha que eu detesto adjetivos.

É, portanto, como Sardanápalo, um filme em cores. Na grande tela. Que se distingue de todos os filmes em cores pelo fato de que o emprego de um meio em Godard é sempre um fim, o que inclui quase sempre sua crítica. Não se trata apenas do fato de ser bem fotografado, de que as cores são bonitas... É bem fotografado, as cores são muito bonitas. Mas se trata de outra coisa. As cores são as do mundo tal como ele é, como se diz? Seria preciso ter bem em conta: Como a vida é terrível! Mas ainda é bela. Se o é com outras palavras, dá no mesmo. Mas Godard não se basta no mundo tal como ele é: por exemplo, de repente a vida é monocromática, toda vermelha ou toda azul, como durante essa soirée mundana, no começo do filme, que é provavelmente o ponto de partida da irritação de certa crítica (o que me lembra uma soirée nos Champs Elysées, na estreia de um balé de Elsa, com música de Jean Rivier, coreografia de Boris Kochno, cenário de Brassai, o reparador de rádios, com o tumulto da sala, os apitos porque se via gente do mundo dançar numa boate, e, obviamente, toda Paris se sentia atacada!) Nessa soirée, a renúncia à policromia, mas sem o retorno ao preto e branco, significa a reflexão de J.L. Godard ao mesmo tempo sobre o mundo em que introduz Belmondo e a técnica sobre os meios de expressão. Tanto é assim que se segue quase imediatamente outro efeito de cor que se desencadeia a partir de uma espécie de fogo de artifício: explosões de luz que se sucedem uma a outra sem justificação possível na Paris noturna em que se inflama a paixão do herói por Anna Karina, sob a forma arbitrária de pastilhas, de luas coloridas que escorrem como chuva no para-brisa de seu carro, que projetam sobre seu rosto e sua vida o arbitrário como um desmentido do mundo, como a entrada deliberada do arbitrário em sua vida. A cor, para J.L.G., será mais do que mera a possibilidade de nos dar a saber que uma moça tem os olhos azuis ou de informar qual a legião de honra de um homem. Um filme dele que conta com as possibilidades da cor vai obrigatoriamente nos mostrar algo que era impossível ver com o preto e branco, uma espécie de voz que não pode vibrar no mudo das cores.


As "explosões de luz que se sucedem uma a outra sem justificação possível na Paris noturna".



Na paleta de Delacroix, os vermelhos, o terracota, o vermelho de Veneza, o vermelho esmalte de Roma ou o garance, que jogam com o branco, o cobalto e o cádmio - será isto uma espécie particular de daltonismo de minha parte? - eclipsam para mim os demais tons, como se estes não estivessem lá senão para formar o fundo daqueles. Lembre-se o que o pintor disse a Philarete Chasles sobre Musset: É um poeta que não tem cor... etc. Já eu prefiro as feridas abertas e a cor viva do sangue... Essa frase, que sempre guardei comigo, voltava-me naturalmente à cabeça enquanto via Pierrot le fou. Não somente pelo sangue. O vermelho aí canta como uma obsessão. Como em Renoir, cujo Terraços em Cagnes vem à lembrança graças a uma casa provençal no filme. Como uma dominante do mundo moderno. A tal ponto que na saída eu não vejo nada de Paris além dos vermelhos: placas de sentido único, olhos múltiplos de proibido passar, moças em calças cochonilhas, lojas garance, carros escarlates, o cinábrio multiplicado nos balcões das restaurações, o cártamo tenro dos lábios e das palavras do filme, só me ficava na memória esta frase que Godard colocou na boca de Pierrot: Não posso ver o sangue, mas que, segundo Godard, é de Federico Garcia Lorca, onde?, que importa!, por exemplo n'O pranto pela morte de Ignácio Sanches Mejías, eu não posso ver o sangue, eu não posso ver, eu não posso, eu não. O filme inteiro não passa desse imenso soluço, de não poder, de não suportar ver, e de derramar, de ter de derramar o sangue. Um sangue garance, escarlate, terracota, carmesim, que sei? O sangue dos Massacres de Quíos, o sangue d'A morte de Sardanápalo, o sangue de julho de 1830, o sangue de seus filhos que serão derramados pelas três Medeia furiosa, a de 1838, e as de 1859 e 1862, todo o sangue de que se lambuzam os leões e os tigres em seus combates com os cavalos... Nunca correu tanto sangue na tela, de sangue vermelho, desde o primeiro morto no quarto de Anna-Marianne até o seu próprio, nunca houve na tela sangue tão vistoso quanto o do acidente de carro, do anão morto com a tesoura e não sei mais o quê, eu não posso ver o sangue, Que no quiero verla! E não é Lorca mas o rádio que anuncia friamente cento e quinze maquisares mortos no Vietnã... Aqui é Marianne que ergue a voz: É horrível, hein, que seja assim anônimo... Dizem cento e quinze maquisares, e isso não evoca nada, enquanto cada um era um homem, e a gente não sabe quem é: se eles amam uma mulher, se têm filhos, se preferem ir ao cinema ou ao teatro. A gente não sabe de nada. Dizem apenas cento e quinze mortos. É como a fotografia, isso sempre me fascinou... Esse sangue que não se vê, sua cor. Dir-se-ia que tudo se ordena em torno dessa cor, maravilhosamente.

¡Que no quiero verla!

Dile a la luna que venga,
que no quiero ver la sangre
de Ignacio sobre la arena.

¡Que no quiero verla!

Trecho de LLanto por Ignacio Sanchez Mejía, de Federico García Lorca


Pois ninguém melhor que Godard para pintar a ordem da desordem. Sempre. Em Os carabineiros, Viver a vida, Bande à part, aqui. A desordem de nosso munto é sua matéria, na saída das cidades modernas, iluminadas de neon e feitas de fórmica, nos bairros suburbanos ou fundos de quintal, aquilo que ninguém jamais vê com os olhos da arte, as vigotas tortas, as máquinas enferrujadas, o lixo, as latas de conserva, os cabos de aço, todo esse cortiço de nossa vida sem o que nós não poderíamos viver, mas que nós evitamos ver. E tanto daí como dum acidente e dum assassinato ele tira beleza. A ordem do que não pode ter ordem, por definição. E quando os amantes, abandonados a uma confusa e trágica aventura, fazem desaparecer seu rastro, incendiando seu carro ao lado de um outro acidentado, eles atravessam a França de norte a sul, e parece que para apagar seus passos é preciso ainda, e sempre, caminhar na água, para atravessar esse rio que poderia ser o Loire... E mais tarde nesse lugar perdido do Mediterrâneo onde, enquanto Belmonto se põe a escrever, Anna Karina passeia com uma raiva desesperada de um extremo a outro da tela repetindo essa frase como um canto fúnebre: O que posso fazer? Não posso fazer nada... O que posso fazer? Não posso fazer nada... 

Anna Karina: "Qu'est-ce que je peux faire? Je sais pas quoi faire."



Falando do Loire...

Esse rio, com seus ilhéus e suas areias, pensei, ao vê-lo, que é aquele que passa na paisagem ao fundo da Natureza morta com lagostas, que está no Louvre, e que Delacroix pintou, diz-se, em Beffes, em Cher, perto de Charité-sur-Loire. Esse estranho arranjo (ou desordem) de uma lebre e de um faisão com duas lagostas cozidas cor de terracota sobre uma bolsa de caça e um fuzil diante da vasta paisagem com o rio e suas ilhas, dirá algupem que ele o fez para um general que morava em Berry, e mesmo assim ele não deixa de ser uma matança singular, esse Massacre n. 2 bis, que é mais ou menos contemporâneo de A morte de Sardanápalo, e aparecerá perto desta tela no Salão de 1827. Ele tentava uma técnica nova em que a cor é misturada com o verniz copal. Toda a natureza de Pierrot le fou é também envernizada por não sei qual copal de 1965, o que é como se a víssemos pela primeira vez. O certo é que não há precedente a Natureza morta com lagostas, a esse encontro de um guarda-chuva com uma máquina de costura sobre a mesa de dissecação da paisagem, como não há outro precedente que não Lautréamont a Godard. E já não sei o que é desordem, o que é ordem. Talvez a loucura de Pierrot seja isto: que ele está aí para colocar na desordem de nosso tempo a ordem estupefaciente da paixão. Talvez. A ordem desesperada da paixão (o desespero está em Pierrot desde o início, o desespero do seu casamento, e a paixão, o lirismo, é a única chance de ainda escapar).

Nature morte aux homards, Eugène Delacroix, 1827. Musée du Louvre. "Beau comme la rencontre fortuite sur une table de dissection d'une machine à coudre et d'un parapluie!" Lautréamont, chant VI de Les Chants de Maldoror (a associação é de Aragon)


 Durante o ano em que Eugène Delacroix parte bruscamente para o Marrocos atravessando a França pela neve e um frio do cão... uma borrasca de vento e de chuva, 1832, não houve o Salão no Louvre por causa do cólera em Paris. Mas em maio, uma exposição beneficente substitui o Salão, na qual cinco telas em formato pequeno emprestadas por um amigo representam o ausente. Três dentre elas parecem ter sido feitas sucessivamente, e provavelmente em 1826-1827: Estudo de mulher deitada (ou mulher de meias brancas), que está no Louvre, a Moça acariciando um papagaio que está no Museu de Lyon e O duque de Borgonha mostrando o corpo de sua amante ao duque de Orleans, que está não sei onde.

Femme nue couchée sur un divan, dit: la femme aux bas blancs, Eugène Delacroix, 1826. Musée du Louvre

Jeune femme caressant un perroquet, Eugène Delacroix, 1827. Musée de Beaux-Arts de Lyon.



Essa é justamente a época de seu relacionamento com Mme. Dalton, mas é impossível saber quem são na verdade as mulheres nuas dessas três telas, se se trata da mesma. Sem dúvida a Moça com papagaio tem as mesmas pálpebras pesadas que se veem na Adormecida, que é, ao que parece, Mme. Dalton. Mas nem uma nem outra lembram o retrato dela feito por Bonington. No Diário de Eugène, aparecem muitas moças que posam para ele, e a seu respeito o pintor inscreve em seu caderno uma aritmética bastante particular. O que quer que seja, se nos atermos ao Duque de B etc., na sequência desses dois estudos, ninguém duvidará que existe aqui uma coincidência de strip-tease entre o quadro e a vida, podendo Eugène ser o Duque da Borgonha, e seu amigo, Robert Soulier, o Duque de Orleans. Sabe-se como Mme. Dalton passou de um a outro. Mas aqui não está em questão a perversidade do pintor: em Pierrot le Fou, é Belmondo que brinca com um papagaio. Só digo isso tudo para mostrar como, se eu também quisesse, poderia me dedicar ao delírio da interpretação. Além disso, não seria essa a resposta à questão da qual parti? A arte é o delírio da interpretação da vida.


Se eu quisesse também, abordaria J. L. G. pela ótica dos pintores para buscar a origem de uma das características de sua arte, a qual mais se lhe censura. A citação, como dizem os críticos, as colagens, como eu propus que se chamasse; creio ter visto, nas entrevistas, que Godard retomou esse mesmo termo. Os pintores são os primeiros usuários da colagem no sentido em que nós, ele e eu, a entendemos, antes mesmo de 1910 e seu emprego sistemático por Braque e Picasso: temos, por exemplo, Watteau, cuja Tabuleta de Gersaint [L'enseigne de Gersaint] é uma imensa colagem, em que todos os quadros na parede da loja e o retrato de Louis XIV por Hyacinthe Rigaut que colocam na caixa são citados, como se gosta de dizer. Em Delacroix, basta lembrar de um quadro de 1824, Milton e suas filhas, para encontrar “a citação” enquanto técnica de expressão. Havia algo de provocação no fato de tomar por objeto de pintura um homem que não enxerga para mostrar seu pensamento: o cego pálido está sentado numa poltrona apoiando sua mão sobre uma toalha de mesa bordada; seus dedos apalpam as cores diante de um vaso de flores que lhe escapa.

L'enseigne de Gersaint, Jean Antoine Watteau, 1720. Scholssmuseum Charlottenburg, Berlin.

Milton aveugle dictant "Le Paradis Perdu" à ses filles. Eugène Delacroix, 1824.



Acima de suas duas filhas sentadas sobre cadeiras baixas, uma tomando nota do Paraíso Perdido que o poeta dita, a segunda segurando um instrumento de música que se calou, há uma tela não emoldurada na parede, na qual se vê Adão e Eva fugindo do paraíso perdido diante do gesto do Anjo que os caça desprevenidos, nus e envergonhados. É uma colagem destinada a nos ensinar o invisível, o pensamento do homem de olhos vazios. A técnica não se perdeu desde então. Vocês conhecem o quadro de Seurat, As modelos [Les poseuses], em que três mulheres nuas no atelier do pintor, uma à direita tirando as meias pretas, encontram-se ao lado do grande quadro d'A Grande Jatte, “citado” bem a propósito, para que a tela seja outra coisa que não algo como um strip-tease. E Courbet, quando ele faz uma colagem de Baudelaire num canto de seu Atelier, hein? Assim também, em Pierrot, Godard, antes de enviar a carta timbra-a com um Raymond Devos, como havia feito com o filósofo Brice Parain em Viver a vida. Não se trata de personagens de romance, mas de sinais, para mostrar como Adão e Eva foram expulsos do paraíso terrestre.

A magnífica cena de Pierrot le fou com a colagem do humorista Raymond Devos.


De resto, se há nessa questão uma diferença entre Pierrot e os demais filmes de Godard, ela está no que se pode considerar um excesso. Já são muitos os anos em que essa técnica vem sendo censurada ao autor d'O Desprezo e do Petit Soldat, como uma mania de que esperamos que ele se livre. Os críticos procuram desencorajá-lo e estão todos preparados para aplaudir um Godard que simplesmente deixa de ser Godard, que faria filmes como todo o mundo. A julgar por esse filme, eles não tiveram sucesso. Se alguém deveria ser desencorajado, são eles. A ampliação do sistema de colagens em Pierrot le fou é tamanha que existem partes inteiras (capítulos, como diz Godard) que não passam de colagens, como por exemplo, a soirée mundana do início do filme. Mas não. Eles insistem, eles reconheceram (porque Belmondo leva nas mãos o livro de Elie Faure) que o texto com o qual começa a história, sobre Velazquez, é de Elie Faure. Eles não entenderam bem por quê. Mais tarde, Pierrot lê a recente reimpressão de Pieds Nickelés; Belmondo brande um livro da Série Negra para dizer “isso é que é um romance!”. Rio-me, senhores: quando eu era criança, não me diziam nada se me vissem lendo Pierre Louys ou Charles-Henry Hirsch, mas minha mãe me proibia os Pieds Nickelés. O que aconteceria se ela me tivesse pego com L'Épatant, onde Pieds Nickelés apareceu! Não sei o que nossos jovens blousons noirs, nossos caçulas, pensam dessa história, mas para as pessoas da minha geração que não perderam a memória a semelhança entre os Pieds Nickelés e os tipos da “organização” no jogo complicado em que está enredado Pierrot salta aos olhos de tal maneira que todo esse negócio toma, quando Belmondo lê os Pieds Nickelés, um sentido ligeiramente mais complexo do que parecia à primeira vista.

Revista L'Épatant, com os Pieds Nickelés.



O essencial não está aí: o essencial é que é preciso no fim das contas ter em mente que as colagens não são ilustrações do filme, mas que são o próprio filme. Que são a matéria mesma da pintura, que não existiria fora delas. Por isso, todos os que persistem em considerá-las como um troço qualquer farão melhor se mudarem o disco no futuro. Vocês podem detestar Godard, mas vocês não podem pedir-lhe que pratique outra arte que não a sua, a flauta ou a aquarela. É preciso ver que Pierrot, que não se chama Pierrot e que grita a Marianne: Eu me chamo Ferdinand!, encontra-se exatamente ao lado de um Picasso, que mostra o seu filho (Paulo criança) vestido de Pierrot. E em geral, a multiplicação dos Picasso nas paredes não se cinge ao desejo que J.L.G. pudesse ter de ser tomado por um expert quando se vende Picasso nas Galerias Lafayette. Um dos primeiros retratos de Jacqueline, de perfil, está lá para, um pouco mais tarde, ser mostrado de cabeça para baixo porque no mundo e no cérebro de Pierrot tudo está upside down. Sem falar da semelhança dos cabelos no retrato, e as longas e doces mechas de Anna Karina. E o fantasma de Renoir (Marianne se chama Marianne Renoir). E as colagens de publicidade (houve a civilização grega, a civilização romana, agora nós temos a civilização do cu...), produtos de beleza, roupas de baixo.

O cabelo de Jacqueline avec des fleurs (Pablo Picasso, 1954) e...

...as longas e doces mechas de Anna Karina em Pierrot le fou.

O que se censura sobretudo em Godard são as colagens faladas: tanto pior para quem não sentiu em Alphaville (que não é o meu filme preferido do autor) o humor de Pascal citado da boca de Eddie Constantine diante do robô que o interroga. Há quem o censura, de passagem, por citar Céline. Aqui Guignol's band: mas se devo falar de Céline eu não terminarei mais. Prefiro Pascal, sem dúvida, e eu não posso esquecer o que se tornou o escritor d'A viagem ao fim da noite, obviamente. O que não impede que A viagem, quando apareceu, tenha sido um baita de um livro bonito e que as gerações posteriores que se perdem nele nos considerem injustos, estúpidos e parciais. Somos tudo isso. São os mal-entendidos entre pais e filhos. Vocês não os demoverão por mandamentos: “Meu jovem Godard, é-lhe proibido citar Céline!”. E aí está: ele o cita.

De minha parte, estou muito orgulhoso de ter sido citado (colado) pelo autor de Pierrot com uma regularidade que não é menos notável que a que o faz esfregar Céline no nariz de vocês. Não menos notável, mas muito menos notada pelos senhores, os críticos, ou porque não me leram, ou porque isso lhes incomoda tanto quanto Céline, mas contra mim eles não têm os argumentos que Céline lhes dá. Do que não lhes resta senão irritação; e com o silêncio, a irritação ainda pior de estar mudo. Em Pierrot le fou, um bom pedaço de La mise à mort [desconheço tradução desse romance de Aragon]..., exatos dois parágrafos. Eu não conheço meus textos de cor, mas eu os reconheço sim de passagem... na boca de Belmondo, o que me mostra uma vez mais essa espécie de acordo secreto que existe entre esse rapaz e mim sobre as coisas essenciais: a expressão já dada que ele encontra em mim, ou em outro lugar, aí onde eu tive meus sonhos (a capa de A alma no começo de A mulher casada, Fábulas admiráveis de Maiakovski, traduzido por Elsa, em Os carabineiros, nos lábios da partiggiana que vai ser fuzilada). Depois que Baudelaire colara em Os faróis um Delacroix, Lac de sang hanté des mauvais anges... [Lago de sangue assombrado por anjos malvados], o velho Delacroix lhe escreveu: Muito obrigado por sua opinião favorável: devo-lhe muito também pelas Flores do Mal; já lhe falei disso por aí, mas isso merece algo mais... Quando, no Salão de 1859, a crítica executa Delacroix, é Baudelaire que responde por ele, e o pintor escreve ao poeta: Tendo a felicidade de tê-lo agradado, consolo-me das reprimendas dos outros. Você me trata como somente se tratam os grandes já mortos. Você me faz corar ao tempo em que me deixa contente: somos feitos assim...



Delacroix, lac de sang hanté des mauvais anges,

Ombragé par un bois de sapins toujours vert,

Où, sous un ciel chagrin, des fanfares étranges
Passent, comme un soupir étouffé de Weber;
Estrofe dedicada a Delacroix no poema Les Phares, de Baudelaire

Não sei muito bem por que eu cito, por que eu colo isso tudo neste artigo: tudo está ao inverso, com exceção de que, sim, nessa pequena sala confidencial, escura, onde não havia ninguém mais do que Elsa, quando escutei no filme essas palavras conhecidas, mas não reconhecidas exatamente a partir da primeira, eu corei em meio às sombras. Mas não sou eu que pareço Delacroix. É o outro. Essa criança de gênio.

Vejam vocês como tudo se repete. O que é novo, o que é grande, o que é sublime atrai sempre o insulto, o desprezo, o ultraje. Isso é mais intolerável para um velho. Aos sessenta e um anos, Delacroix conheceu a afronta, o que de pior havia naqueles que distribuem a glória. Que idade tem Godard? Mas mesmo que o jogo estivesse perdido, o jogo está ganho, que ele creia em mim.

Ao escrever esse artigo, chegou-me um livro de um desconhecido. Ele se chama Georges Fouchard, e seu romance, De seigle et d'étoiles [Sobre o centeio e as estrelas], o que é um titulo singular. Li-o de uma sentada. Não sei se ele é objetivamente um livro bom. Ele me tocou, de uma maneira estranha que faz lembrar Delacroix. Sabe-se deste que todos os anos, com dois amigos (J.B. Pierret e Felix Guillemardet), desde 1818, ele festejava o São Silvestre ora na casa de um, ora na de outro. Imagina-se que essas reuniões periódicas, das quais nos ficaram alguns desenhos de Delacroix, figuravam esperanças, projetos, confidências, discussões... Guillemardet morre em 1840, Pierret em 1854. Nem um nem outro se tornaram grande coisa. Delacroix terminará sozinho sua vida, sem seus amigos de juventude.

Ora, em De seigle et d'étoiles, a história gira em torno de três amigos, Bouju, Gerlier e Frédéric, que formaram uma espécie de trio, Mach 3, como eles o chamavam. O romance é aquilo que esse trio irá e aquilo que não irá se tornar. Tudo se repete, eu lhes digo. A anedota varia, é tudo. Sua juventude, jovens, é ainda a minha. E Bouju escreverá, quase ao fim, essa carta, esse desespero de carta, porque depois de tudo Mach 3 são simplesmente três pobres tipos não adaptados. É engraçado esse número três, para Delacroix, para mim. E Bouju escreve mesmo assim, sem dúvida para optimizar, como ele diz... Que idade tem Bouju, nesse momento? Fouchard tem trinta e cinco anos quando aparece seu primeiro romance, como ele roga que se mencione. Menciono. Mas Bouju, que se intitula o fanfarrão do Anti-Sistema diz ainda: Vinte, vinte e cinco livros nós escreveremos se for necessário para despertar o estalido que atiça sobressaltos nas multidões de todos os países. Se você não entende, vá andar de bicicleta, para fazer a panturrilha...

Que relação tem isso – que me parece algo como uma retrospectiva do destino de um Rimbaud – que relação tem isso com Pierrot le fou, com Godard? Quantos filmes já tem Godard? Somos todos uns Pierrot le fou, de um jeito ou de outro, uns Pierrot que se colocaram sobre a estrada de ferro, esperando o trem que vai esmagá-los e que correm no último segundo, que continuaram a viver. Quaisquer que sejam as peripécias de nossa existência, que ela se pareça ou não uma com a outra, Pierrot vai se fazer explodir, mas no último segundo já não o desejará mais. Vejam vocês que tudo o que digo parece muito aleatório: e esse romance que chega aqui como uma flor... Se eu tivesse tempo, eu lhes explicaria. Eu não tenho tempo. Nem o gosto por optimizar. Porém, talvez, posso ainda lhes dizer que, tanto pior para o que nós éramos e para o que nos tornamos, o tempo simplesmente passa, num dia encontramos um Godard, no outro um Fouchard. Pela rima ruim. E, olha só, tudo se parece, tudo se parece terrivelmente, e tudo se repete, mesmo que não dê em nada, mesmo que não dê em nada. Nada acabou, outros refarão o mesmo caminho, muda apenas a data, e tudo se parece.

Queria falar da arte. E só falei da vida. 

 Fim.


sexta-feira, março 30, 2012

Tes yeux

peints en mystique orientale
presque vivants déjà morts
comme l'Idée eternelle qui hante

je les suis tombés
par terre