quarta-feira, dezembro 12, 2007

O caseiro da chácara de Camaquã

Meu amigo João Falavigna jantou outro dia em minha casa. Há tempos que não nos víamos. Contou-me que o Rondinelli, caseiro de sua chácara, morrera há pouco. Simplesmente não acordou mais de seu derradeiro sono. Falavigna acredita, e eu concordo com ele, que a causa da morte não foi a parada cardíaca que consta do seu obituário, senão a falta de propósito para continuar vivendo. A sua história, a qual fiquei sabendo só agora, é extremamente curiosa e justifica plenamente nossa opinião. Aquele imperceptível Rondinelli ostentava um portentoso nome de policial ou de político, porém não passava de um discreto senhor de voz submissa e ombros encolhidos, de face circunspeta sob a inevitável calvície que ameaçava os cabelos nas entradas da testa. Na verdade, tamanha era sua discrição que sua figura só me tocou a memória em virtude de um estranho sotaque ítalo-castelhano que excedia, nessa estranheza, ao já extravagante modo de falar dos sul-rio-grandenses. Pareço descrever um mordomo vulgar, mas era isso que, no fundo, Rondinelli era. Essa peculiaridade arquivou-se em minha lembrança e foi suficiente para que eu pudesse associar toda a história ao seu protagonista.

Muito do que eu contar pode não ser a realidade, já que tudo que dele se sabe não veio de sua boca. Quem falou da vida do caseiro a Falavigna foi um dos filhos do Major Alcindo Garcez, um pica-pau da Revolução Federalista. Garcez parece ter salvado Rondinelli, maragato italiano que veio do Uruguai em busca de dinheiro, da sangüinária degola de Cherengue, e ainda ofertara ao mal-sucedido soldado o emprego de caseiro em sua chácara à beira do rio Camaquã. É o que se diz.

A gratidão – essa é a palavra-mestra – de Rondinelli foi infinita. A chácara em suas mãos estava seguramente nas melhores mãos em que poderiam estar. Há nela uma enorme casa, cheia de redes e camas, ornada com vários bibelôs cuja temática é a pescaria. Outra casa, mais modesta, é onde vivia Rondinelli com sua esposa, que conheceu em Camaquã mesmo. Um delicioso pomar, dois cavalos e o próprio rio a completavam. No princípio, Garcez ia de Porto Alegre ao sítio com assídua freqüência, muitas vezes acompanhado de amigos pescadores e da família para os churrascos de chão. Após a prematura morte da esposa de Rondinelli, suportada com singular indiferença pelo chacareiro, aliada à madureza alcançada pelos filhos do major, que trouxeram consigo o desinteresse pelas questões interioranas, a chácara passou a ser menos visitada. Passaram-se anos em que apenas Garcez, com rigorosa periodicidade quinzenal, ia à fazenda para matear com Rondinelli e pescar no rio Camaquã. E mesmo assim o afinco do caseiro era o mesmo, como se sempre esperasse as irrepetidas festas do passado. É que o seu trabalho era para o major, era a este que ele devia a própria vida. A ninguém mais. E não parecia fazer outra coisa: quando Garcez chegava o quarto estava arrumado, a geladeira cheia, o chimarrão pronto, a sela no cavalo, a linha no caniço, o anzol na linha, a grama cortada, as frutas colhidas, a lenha cortada e o fogo aceso contra a invernada. Rondinelli só não se dedicava à chácara quando ia a galope ao armazém na cidade jogar o truco ou o dominó e beber o mate com outros velhos senhores. Uma vez só, sob insistência do major, aceitou viajar ao Uruguai. Mas não achou ninguém de que pudesse se lembrar.

Num dia do ano de 1927, no entanto, Garcez, que tinha mais ou menos a mesma idade de Rondinelli, não veio. A realidade foi apenas pressentida pelo caseiro, mas solenemente denegada. Com uma semana de atraso do major, recebeu uma carta. Não a abriu: colocou-a sob a fruteira no centro da mesa de sua cozinha. Rondinelli não fugiu à rotina, tudo era detalhadamente realizado conforme sempre fora, com o cuidado que jamais faltou aos seus afazeres.

Falavigna, amigo também do major, convidado já das churrascadas que ele organizava, buscou comprar a chácara do espólio do ximango. Os herdeiros, dois filhos e uma filha, tinham já seus planos de vida, e o dinheiro valia mais que a propriedade. Marcos Garcez contou-lhe do caseiro, Rubens, seu irmão, levou-o ao sítio.

Meu amigo, devo dizê-lo, é uma pessoa extraordinária. Sua empatia é invejável, e essa deve ser a razão de ter conquistado tanta gente ao longo de sua vida. É um diplomata nato, embora seja apenas comerciante. Seu proceder para com o caseiro, como mostrarei a seguir, foi decisivo para a preservação dessa história, que pelo menos a mim impressionou muito.

Chegaram à chácara meu amigo e Rubens, homem exatamente oposto a Falavigna, bronco e de difícil lida, e o acesso foi de pronto franqueado por Rondinelli. Um pouco atordoado pela surpresa, o caseiro tratou de acomodá-los. Rubens praticamente dele não tomava conhecimento: falava ininterruptamente sobre o negócio que estava prestes a celebrar e mal ouvia as ofertas de mate ou café por parte de Rondinelli. À primeira trégua, o chacareiro fez a infeliz pergunta:

- Senhor, como bai seu papá?

Rubens ergueu-se com olhar ferino sobre o caseiro e bradou:

- Você só pode estar de brincadeira, uruguaio inútil!

E puxou meu amigo para fora para mostrar-lhe o rio. A cena bastante estranha foi geniosamente interpretada por Falavigna, que sabendo da história do caseiro a compreendeu sem maiores delongas. Então procurou não unir novamente Rubens e Rondinelli, para evitar outros mal-entendidos. Quem não a deve ter compreendido foi Rondinelli, que, imagino, deve ter ficado algum tempo paralisado para depois, como um bom servo, não fazer mais perguntas a si mesmo e voltar às suas ocupações.

A compra foi ultimada e o caseiro mantido na chácara, ainda submergido na pequena ilusão que guardara para si, a de que seu chefe, o major, ainda vivia. Falavigna nada fez para mudar esta convicção. Pelo contrário, viu-se obrigado a fingir-se, e a fazer todos os que visitavam a agora sua chácara fingirem-se igualmente, de convidado de Alcindo Garcez. O ardil arquitetado, admitamos, é um tanto quanto fácil de ser desmascarado. Mas antes de me acusarem de um fantasista que amarra mal os nós de suas mentiras, podemos ver também o porquê do sucesso dos atos de Falavigna: estamos aqui lidando com um homem cuja razão de viver é a quitação de uma impagável dívida. Obviamente que ele já sentia, nessas obscuridades da mente, a morte do seu chefe, porém simplesmente não acreditava nela. E era importante não acreditar: sua crença era deliberada. Qualquer coisa que a tornasse um pouco mais fundada seria preciosa para Rondinelli, e as dúvidas, como veremos, colocariam sua própria vida em risco.

O que fez o novo, mas secreto, patrão do nosso herói foi freqüentar a chácara sempre, inapelavelmente, munido de uma falsa autorização pretensamente assinada do próprio punho do falecido Garcez. Às eventuais perguntas de Rondinelli, Falavigna já preparara a desculpa de que o major estaria em uma longa viagem à América do Norte, em missão oficial.

O método não ficou isento de problemas: o caseiro não impunha nenhum empecilho a que meu amigo entrasse na chácara, andasse a cavalo, usasse o pomar e também os serviços de Rondinelli. Entretanto, ele jamais permitia que se dormisse no quarto do major ou que se utilizassem os equipamentos de pesca do finado. Uma vez apenas, após muita insistência, o caseiro permitiu que um dos visitantes usasse um dos puçás do major. Mas o puçá foi mal amarrado a uma raiz à beira do rio, e acabou sendo levado pela correnteza. Rondinelli suava copiosamente de nervoso, e chegou a erguer sua costumeiramente invariável voz com um discreto “jamais deveria ter deixado”.

O puçá foi encontrado pelo chacareiro alguns metros rio abaixo. Foi devolvido ao seu devido lugar e nunca ninguém mais ousou pedi-lo novamente.

Ocorre que, no começo, Rondinelli era o mais cortês e solícito empregado. Não media esforços para bem acomodar e agradar Falavigna, ao seu ver um insigne convidado do major. Encanta-me essa idéia: um homem tão infinitamente grato que, numa íntima promessa de servidão absoluta, permanece preso a esse laço muito além da morte do seu credor. Não se trata, como pode parecer a um julgamento mais imediato, de uma medíocre subserviência. Pelo contrário, Rondinelli obteve o que a muitos de nós sempre faltou: um significado da vida. Claro, se o significado que escolheu é bom ou ruim, isso vai depender de nosso juízo e de nossa busca particular do próprio sentido de existir. Mas é extraordinária a inabdicável missão a que se entregou o caseiro. Entretanto, os dias passavam e o major nunca mais deu notícias. Sub-repticiamente, a convicção de Rondinelli esvanecia. Sua energia para o labor diminuía, aqui e ali apareciam falhas do seu trabalho, imperdonables erros no dizer do uruguaio. Começou a precisar da cidade mais amiúde, substituiu no armazém o chimarrão pela cachaça. Foi duas ou três vezes ao médico. Creio que já não conseguia mais fantasiar: o major morreu. A situação foi se agravando até que chegou o dia que já conhecemos: o da morte do caseiro em sua cama.

Quem achou o corpo foi o próprio Falavigna. Descansava, na cabeceira, aquela carta cujo envelope estava, enfim, violado.

segunda-feira, dezembro 03, 2007

Bicicleta

Sempre julguei que à medida que os anos se vão, menos inteligente fico. Do que se extrai, acertadamente, que quando as palavras eram-me desconexas seqüências de sons balbuciadas por aquela boca cuja voz possuía poderes mágicos contra os meus maus ânimos eu era mais esperto. É que tinha todas as possibilidades diante de mim. Enquanto vivo e escolho, reduzo seus números até uma mediocridade que hoje só me permite optar o prato do cardápio.

Não mudo de idéia: ano que vem mais burro serei. Isso é irretocável. E será assim até que só me restará esperar a morte, com a apática resignação de quem a negou desde o início. Hoje, porém, ao reviver os vestígios jogados na memória dos meus tempos idos, finalmente consigo datar com certa precisão a fundação da mais aguda ingremidade de meu abismo.

Tinha oito anos de idade. Os meus sucessos nas provas escolares, com os famigerados cartazezinhos que colocavam meu nome à frente de todos meus colegas, deram aos meus queridos pais um motivo para o exibicionismo. Alguma auto-afirmação de que talvez necessitassem encontrou em mim sua razão de existir. Era eu o brilhante aluno, comportado e de boas notas, xodó de todos na escola. Enfim, o prezável e enfadonho filho exemplar.

Alguém deve ter mencionado à minha mãe o lugar-comum da época: os testes de Q.I. Ora, estava aí mais uma possível prova do meu talento, que já não era desconhecido. E tudo estava à mão: minha tia, mulher do irmão de meu pai, era psicóloga de crianças. Pronto. Mais uma chance de mostrar minha genialidade, minha estéril genialidade moldada pelo bom-mocismo.

Arrancaram-me certa tarde do jogo de bola da Rua Desembargador Motta. Era para o teste. Fui com os pés grossos de sujeira à sala de limpos carpetes da minha tia. Deram-me chinelos, mas teimei por um banho antes. Não convenci.

Aquilo me deixou demasiadamente nervoso. Se não provasse, que seria de mim? Todo meu castelo de sólidas fortificações estava ali ameaçado por um capricho de meus pais. Mas sem desgastar-lhes com minhas frivolidades, já lhes digo que foi coisa que passou: o resultado não poderia ser melhor.

Quero, porém, me referir, voltando à introdução do assunto, ao que me desterrou das fartas terras da fertilidade imaginativa. Foi uma inocente pergunta feita no meio do teste. Tinha que definir o que eram as coisas do meu cotidiano. Disse minha tia:

- O que é uma bicicleta?

Respondi como o teria feito uma razão científica que se alija de toda forma de poesia:

- Um veículo não-motorizado de duas rodas que utiliza a força das nossas pernas, por meio de um pedal e de uma correia, para andar.

Meu Deus! Como eu me orgulhei dessa resposta! “Veículo”, “não-motorizado”: mas isso era genial! Quem de meus amigos diria tais palavras?

Antes tivesse sido qualquer um deles e não eu. Desde então, a bicicleta é um entulho de alumínio e rodas e aros e espias. Jamais minha nave, meu cavalo de cavaleiro, meu lugarzinho de namoro, meu vento a soprar uma suave melopéia em meus ouvidos.

sábado, novembro 17, 2007

Cidade

Faringe que nos degusta,
Sou o gancho que se prendeu
EM
sua glote.
Quantos iguais a mim à mesma
Recusa procederam?

Não sou:
Líquido que escorre livremente
EM
suas vias.
Não me situo nem me movimento.

Não sou:
Pedra fundamental
EM
Uma sua estrutura.
Falta-me endereço.

Por uma estranha forma de vê-la
Sinto-a inacessível como também sou ao que me circunda
EM
Você.

terça-feira, agosto 28, 2007

Hoje eu limpo minha sala,
Ansiando algo melhor em ser.

Com a sala limpa imagino-me comendo todas as páginas de todos os livros de todos os saberes.

Amanhã eu só domino a modorra,

Que minhas muletas não sabem evitar.

domingo, agosto 12, 2007

Embalasse-me a gota rubra
Que de rubro brilho enche minha face
Rumo a cantilenas fervorosas a
Extirpar deste corpo as exatas cadeias
Do contumaz palavrear que a razão
Domina,
Ergueriam as uvas um antes embaraçado
Agora intrépido sei-la-o-quê que motoriza
As paixões - quiçá coração mesmo –
Entoando melopéias de destilado júbilo
Para me alçar à grandeza de suas íris
Sobranceiras.

Mas é patético e inútil o escrever.

Desencantado e desvendado o amor,
Vulgarizado e medíocre.
Matematizado; psicoanalisado, geneticamente localizado:
Nem o vinho é capaz de fazer-me cantá-lo.

domingo, março 25, 2007

Um Tales no meio de nós

Certas surpresas a vida nos reserva com tamanha discrição, desfeita daquele reverso da curiosidade que não raras vezes nos (me) ataca, aquela comichão que acomete o portador de prazeres inesperados que se atropela e surpreende seu alvo antes do tempo, que o timing da vida para nos espantar parece ser perfeito. Quero referir-me aqui a algo singular que me ocorreu anos após ter encontrado na Biblioteca Pública do Paraná um exemplar de um caderno meio tosco, não catalogado nos sistemas, com anotações de pensamentos não muito mais profundos que os que constam das prateleiras mais visíveis das livrarias, essas que escondem os melhores livros nos cantos menos visitados.
O caderno a que aludo era bem velho, muitas das páginas do seu interior estavam separadas da sua lombada, embora estivessem ali mantidas. Era de brochura costurada, com uma capa de papelão, todo manuscrito. Estava no setor da história das religiões, entre livros sobre o judaísmo. Vi-o não porque me interessasse nas questões hebraicas, mas porque as sobrenaturalidades do destino me alojaram na mesa que defrontava a estante onde se encontrava. Sua cor alaranjada sobressaía-se sobre as capas demasiadamente sóbrias dos livros vizinhos – não sei quais eram – e entre um e outro descanso da leitura que empreendia chamou-me a atenção.
Abri-o. Seus manuscritos eram os mais variados: a caneta – azuis, pretas e coloridas; esferográficas, hidrográficas, de pena; a lápis, lápis de cor e até giz de cera. Letras cursivas, bem desenhadas, infantis, da mais fina caligrafia, de fôrma, garranchos. Dizia a folha de rosto que aquele era um “Livro de Conselhos” (abaixo a inscrição “Passe adiante”), a iniciar pelo que dizia “só se vive uma vez, aproveite o máximo”. Não posso recordar agora do teor literal dos outros, não os li todos, e nem teria paciência. Afinal, como disse antes, os pensamentos eram reles como o citado, ocultos sob a comodidade de estarem todos os escreventes eximidos do dever da assinatura. Ali, sob o manto do anonimato, faces cujo semblante não sei nem imaginar devem ter passado horas se divertindo numa leitura rápida, fácil, às vezes frutífera, mas certamente ansiosa: penso que nem bem se chegaria à metade e logo vinha aquele ímpeto de marcar o próprio texto na última página escrita. O tal livro – um caderno, sabemos – já estava quase findando suas folhas em branco.
Maravilhei-me com a idéia: um livro de sabedorias anônimas e de contribuições plúrimas. O modelo formal que deu a luz àquela atitude material era perfeito, sem querer me demorar com a metafísica das formas eternas. Só que a matéria em si era medonha e enfadonha, pois o pessoal escrevia somente para “passar adiante”, para fazer parte, sem qualquer auto-exigência de criatividade. Também não tinha eu qualquer idéia para botar no papel, e não obstante ruminava alucinadamente – não muito além dos clichês – uma frase para colocar ali.
Por isso eu, como imaginei os demais, não me ative muito tempo e fui direto à última página. Ali estava o único conselho que trouxe na memória além do inaugural: “É da água que a vida, com tudo que existe, retirou seu princípio, nela a mantém, por ela morrerá. A quem disso souber com profundidade, o tempo será generoso e abundante.”
Em vista desse texto, animei-me a construir um igualmente ininteligível. Afinal, não pude atinar com o seu significado num primeiro momento. Que conselho era aquele? Que eu tinha que beber água? Tomar banho? Viver numa comunidade ribeirinha ou na beira do mar? Não havia um propósito claro, e assim devia ser o meu conselho, copiador barato que sou.
O que mesmo que escrevi? Era algo sobre fogo; sequer diversifiquei, em relação ao meu predecessor, o assunto dos elementos. É com sinceridade que relato o esquecimento de meu alvitre, mas é com igual lisura que garanto que se cá o transcrevesse, tê-lo-ia feito com um sentimento de autocomiseração acerca da minha própria futilidade. Olvidemos do detalhe; afinal, nem sei por que essa obsessão minha em sublinhar como fossem ninharias as mediocridades alheias, quando todos sabemos que é impossível não partilhar da mesma decadência, e tentar dela se esquivar como faço torna tudo mais ridículo ainda.
Não sabia bem o procedimento a partir dali. O livro apenas dizia “passe adiante”. Pairava a dúvida: passar adiante deixando ele sempre ali onde o achei ou levando-o para outro lugar? Esta alternativa era mais crível que aquela, certamente, pois a instrução exige claramente uma postura ativa do escrevinhador. Mesmo assim, devolvi ao mesmo lugar onde o achei: era demandar demais da minha parca criatividade procurar algum outro para colocá-lo.
Nem voltei à leitura a que havia me lançado antes de encontrar o caderno. Eu reouve a bolsa que deixara no guarda-volumes e parti para beber café no Lucca ali perto. Por uns momentos, o pequeno acontecimento na biblioteca ficou esquecido e ocupei-me de tormentas outras que sempre rondam meu exausto cérebro. Bastou, entretanto, que uma senhora excessivamente ornada com uma pesada maquiagem, topetuda, e com um daqueles horrendos lenços de seda no pescoço, sentada à mesa à minha frente, pedisse uma garrafa de água que o conselho antecedente viesse a lume novamente.
Mas que diabos aquilo queria dizer?
A garçonete veio carregando o mistério em sua bandeja, todo o mistério do mundo pra mim naquele segundo. Na garrafa, a água sacolejava e mudava a cada passo o plano primeiro de sua superfície, ao sabor dos ângulos que formaria o encontro de uma bandeja idealmente distendida com o chão. O segredo de toda a mecânica em que se engendrou nosso planeta balançava sem autoconsciência nem sentimentos nem percepções. É da água que a vida e tudo que existe retiraram seu princípio e nela que inexoravelmente se renovam. A água segurou em seus hipotéticos ombros todo o motor da história e mesmo assim se deixa apreender numa mísera garrafa de plástico! Passiva, passa ao copo, e do copo ao corpo, e do corpo a sei lá quantos mil outros fenômenos com os quais nem posso atinar. É humilde herói, é o nosso começo, é de onde tudo parte e o porquê de tudo existir. É o princípio de Tales; são, pois, ela só, os deuses que ele inventou, do qual todas as coisas estão cheias!
Sejam o piche do asfalto e o concreto do pilar, sejam a nuvem, a terra e o vidro. O humor vítreo que conhece o espectro das cores: o arco-íris é água. Tudo se define pelo seco e pelo molhado, tudo é fluido solidificado ou gaseificado. Tales nos fez da mesma substância, e desde então todos os filósofos que o mundo teve enxugam gelo. Exsurge das teorias a incredulidade, e sempre uma revoga a anterior, e sempre se quedam em um encastelado clube a ponto de não alcançar interlocutores muito além de suas barbacãs.
Acreditar nesse princípio tão inverossímil hoje parece absurdo, e no entanto é tão fácil e atraente seu enunciado. A racionalidade extremada de nossas impassíveis ciências não nos fez mais do que nos atirar mais fundo no abismo das incógnitas que a simples palavra vida nos oferece. É preciso então nos agarrar na simplicidade daquela antiga Jônia, que atravessou todos os séculos e se imprimiu numa singela página de um Livro de Conselhos simplório, e que ali naquele café havia me convencido por completo da sua legitimidade. Restava agora esperar que o tempo me fosse generoso e abundante, como deveria ter sido a... Tales.
A reflexão me conduziu a uma mais fantástica. E se não foi o próprio filósofo que tivesse escrito o conselho naquele caderno? Ora, um tempo abundante poderia certamente significar vinte e seis séculos. Imagino Tales, um homem de bastas barbas e compleição forte e exuberante, vagando por toda a história da ocidentalidade, daquela esquecida Mileto que durante toda sua vida foi também de Roma, de Bizâncio, de Constantinopla, do Império Otomano e da Turquia. Tales nos deu a physis e foi além: conseguiu ser ele mesmo o deus cuja substância nos tenta impingir com frases obscuras em velhas prateleiras de bibliotecas ou em alguma pregação em praça pública, sem jamais ter se identificado.
Tales vivia, só podia ser. Segurava consigo toda a história, como a água. Como ele, imagino, uns outro quatro podem ter realizado a mesma descoberta, a que agora eu tentava descobrir a todo custo. Sabia que a água era o princípio, mas como aplicar esse conhecimento profundamente como me dizia o conselho? Criei a necessidade de domar o mistério e guardá-lo comigo por outros vinte e tantas centenas de anos. Só uma palestra com o mestre talvez poderia me auxiliar.
Fui passeando por associações infantis enquanto eu mesmo pedia uma garrafa de água para mim. Tales me trouxe a imagem do talo da flor, que vive pela água; e daí passei à tala que imobilizou meu braço há uns quinze anos e deu chance para que o sangue, esse fluido vermelho, revigorasse minha fratura. E da tala à tela, que ganha da tinta vida, e da tela ao cinema, que flui no projetor como um rio, bravio ou não, rumo à foz. Tudo pulsava seca ou umidamente, e era desse tudo que eu participava sem saber. Vi-me como uma gota em meio ao infinito oceano do universo, que, sem tê-lo em conta na exata medida, era dos seus torvelinhos um títere, de cujas cordas Tales há muito se livrou. Somos a gota, ele conseguiu ser o mar inteiro.
Ignorava, porém, como conseguir encontrar o homem. A única coisa que existia era aquele caderno, o único elo possível. Pensei: o conselho de Tales era tão apaixonado que talvez ele ficaria incomodado em ver o livro no mesmo lugar, incólume e ignorado. Fiz bem em deixá-lo onde o achei. O que me cabia fazer agora era vigiar, por uma semana, até que ele voltasse para colocá-lo em algum lugar mais popular.
Dito e feito. Já no dia seguinte, estava eu sentado no mesmo lugar quando um rapaz magrelo e cabeludo, ostentando um crachá da biblioteca, foi retirar o caderno da estante. Imaginei na hora que, como funcionário do lugar, ele teria estranhado e apenas retiraria o livro dali por não estar na seção correta. Mas não: abriu-o e conferiu o meu conselho. Resmungou alguma coisa quando percebeu que talvez sua sugestão tivesse sido só mais uma, dada a pouca atenção do seu sucessor, eu. Mal sabia ele que eu já tinha ciência de sua identidade. Mal sabia eu, por outro lado, que isso foi uma enorme alegoria da minha própria cabeça – como me iludi tanto? Óbvio que Tales já estava morto, óbvio que eu teria que cedo ou tarde voltar à razão desencantadora dos nossos tempos, que fui crédulo demais numa fantasia boba. Veja-se o que sucedeu: segui discretamente o rapaz, que escreveu uma outra frase e colocou o caderno entre os livros de José de Alencar. Não demorei muito e o retomei. A letra do mais novo conselho era a mesma do anterior, o que provou minha tese da paixão de que era eivado. A água era o mote recorrente, pois assim estava escrito: “Alguns renegam que estamos ao fim dos tempos, e que a água nos mutilará, porque jamais a respeitamos. O fogo – estava aludindo a mim, creio – trouxe um progresso frágil e falso demais”. Estava começando a compreender. Fui à mesa do rapaz e mostrei-lhe o livro.
- Foi você que escreveu isto?
Fui impolido e muito brusco, o que justifica uma pausa assustada da parte dele.
- Sim.
- Conhece Tales?
- Quem?
- Tales de Mileto.
- Não.
- Não mesmo? Aquele filósofo a quem a água é o princípio de tudo que existe.
- Ah, não lembrei.
- Eu escrevi do fogo.
Ele enrubesceu. Nessa hora vi um adesivo do Greenpeace na sua mesa. Entendi tudo.
- Você tá certo – comprazi-me em dizer.
- Obrigado. O pessoal não dá atenção, né, mas a água tá acabando, e o mundo também, não acha?
- Acho. Tenha uma boa tarde.
Deixei com ele o livro. Não escrevi nada de novo. Dali, fui pra casa. Esse rapaz foi o motivo de uma grande decepção. Esperava encontrar a grandiosidade que juvenilmente imaginei por horas, e deparei-me com um simples ecologista que quer salvar o mundo. Nada mais.

domingo, fevereiro 25, 2007

Contra o tempo não-revisitado

Temo que é tempo do mesmo velho tempo
Chegamos aonde? Não há chegar
Passos – há passos? – sobre a mesma:
mesma eterna fôrma das pegadas
passadas, inculcando os seus deletérios sulcos

Evoluir na inarredável
Condição de homem
Indecomponível paradoxo

Pirâmides e arranha-céus
O que muda é o mundo plástico.

Força motriz
da história:
a insolubilidade da nossa pequenez.

quinta-feira, janeiro 18, 2007

Mil e uma noites

Versos extraído da 1ª noite das espantosas histórias das mil e uma noites, traduzido do ramo sírio por Mamede Mustafa Jarouche

O tempo é composto de dois dias, um seguro, outro ameaçador,
e a vida é composta de duas partes, uma pura, outra turva.
Pergunte a quem urdiu as idas e vindas do tempo:
será que o tempo só maltrata a quem tem importância?
Acaso não se vê que a ventania, ao formar as tempestades,
não atinge senão as árvores de altas copas?
De tantas plantas verdes e secas existentes sobre a terra,
somente se apedrejam aquelas que têm frutas;
nos céus existem incontáveis estrelas,
mas em eclipse só entram o sol e a lua.
Pois é, você pensa bem dos dias quando tudo vai bem,
e nâo teme as reviravoltas que o destino reserva;
nas noites você passa bem, e com elas se ilude,
mas no sossego da noite é que sucede a torpeza.