sábado, janeiro 29, 2011

O cadáver - primeira parte

Esa mujer es mía.
Rodolfo Walsh
Quando eles falam em agressões, é em horário avançado, quando as pessoas que têm vergonha na cara estão dormindo.
Jair Bolsonaro

Ele era daqueles cristãos segundo quem a madrugada abrigava sempre ações escusas; tinha-a por cúmplice dos crimes certos que cedo ou tarde se revelariam por trás dos atos mais triviais que rivalizavam com o sono das cidades. Coisa de quem vê o trabalho por fatalmente honesto, que se pode ostentar às claras do dia como sinal de pura dignidade. Pois a madrugada guardava o exato oposto; era a hora da penumbra, do esquivo lusco-fusco dos postes e das velas, do silêncio murmurante, do gozo fútil e envergonhado da vida, da vigília cheia de culpa junto aos moribundos ou junto aos mortos. Dos furtos e dos homicídios e das revoluções libertadoras. Sobretudo das revoluções libertadoras que surgem inauditamente nos rádios pela manhã e que enchem de esperança o dia que começa, ainda que disso ele só pudesse esperar alguma merda. A madrugada, sua treva, trazia o homem para a potência de seu componente bestial, de sua permissividade com o logro, de seu erro estimulado pela máscara de sombras ou de álcool que disfarça os rostos. O sono para ele era um mandamento sábio da natureza do corpo humano, o único ato lícito das madrugadas, porque anulava o homem e seus demônios.


O que lhe dava um mal-estar. Mesmo sendo, como ele sabia que era, um trabalho lícito, digno e honesto – essas palavras de seu vocabulário básico –, a ocupação de vigia noturno clandestinamente o tornava companheiro de sorte dos ladrões, vigaristas, prostitutas, bêbados e coronéis que bombardeiam a Casa Rosada. Não podia evitar sentir-se parte de suas ações, pois só de assistir às ruas vivendo esparsamente nas horas tardias ele julgava-se irmanado com a escória pela posse de um segredo que os bons homens não podiam saber porque dormiam. Estar ali, em vigília, sabendo que as ruas agora são todas criminosas fazia desses crimes, sempre impressionantes para a gente que dorme, um hábito corriqueiro na sua vida de vigia; um costume que acabava ganhando justificativas apenas pelo fato de ser um costume. (E justificar crimes lhe era insuportável). Pouco importava para ele que sua culpa não fosse verificável, mensurável em anos de prisão ou mesmo passível de ser apontada por uma outra pessoa qualquer. Seu trabalho honesto era imemoriavelmente maculado por essa solidariedade abstrata entre os que não dormem.

Servisse para confortá-lo, poderíamos dizer com a sabedoria de nossas sociologias de almanaque que ele não tinha escolha, que era isso ou era a fome. Que ele sabia que trabalhar era na maioria das vezes uma sorte, que era preciso conformar-se, a velha prostração de quem tem família para sustentar. Poderíamos dizê-lo, mas a realidade um dia nos desmentiria. Pois aquele laço imaginário entre a sua vigília e a madrugada suspeita, certa noite, tornou-se de uma concretude de pedra ante ele: foi quando veio a ser a parte anônima e involuntária de um dos maiores crimes da nação.

sábado, janeiro 08, 2011

Aramburu e o Juízo Histórico

Trecho final do livro Operación Masacre, de Rodolfo Walsh, referente a um evento de junho de 1956, relacionado com a resistência à Revolución Libertadora (1955), na Argentina. Doze homens, a maioria alheia a esses movimentos, os demais a eles ligados mais pela opinião política que por ações efetivas, são sumariamente condenados à morte por uma autoridade policial, fora da vigência de qualquer lei de exceção. Aramburu, cujo governo deu respaldo aos executores, foi o segundo general presidente de fato na ditadura argentina que se seguiu à queda de Perón. Queria destacar como, em certo momento, Walsh vê os perigos políticos de uma literatura galvanizada, ciosa ao limite da cegueira da sua autoimportância, recoberta de aura - os solenes ditirambos e elegia de encômio ao general. Tradução minha.


Em 29 de maio de 1970, um comando montonero sequestrou, em seu domicílio, o tenente general Aramburu. Dois dias depois essa organização o condenava à morte e enumerava as imputações que o povo peronista alçava contra ele. As duas primeiras incluíam "a matança de 27 argentinos sem juízo prévio nem causa justificada" no dia 9 de junho de 1956.

O comando levava o nome do fuzilado general Valle. Aramburu foi executado às 7 de manha do dia 1º de junho e seu cadáver apareceu 45 dias depois no sul da província de Buenos Aires.

O episódio sacudiu o país de diversas maneiras. O povo não chorou a morte de Aramburu. O Exército, as instituições, a oligarquia elevaram um clamor indignado. Entre as centenas de protestos e declarações há uma que merece ser recordada. Qualifica o fato de "crime monstruoso e covarde, sem precedentes na história da República". Um de seus signatários é o general Bonnacarrere, governador da província quando se desenrolou a Operação Massacre. Outro é o general Leguizamón Martínez, que havia executado o coronel Cogorno nos quarteis de La Plata. Um teceiro é o próprio coronel Fernández Suarez [o ordenador do fuzilamento narrado em Operação Massacre]. Não pareciam os mais indicados para falar de precedentes.

A execução de Aramburu provocou, uma semana mais tarde, a queda do General Onganía, cuja ditadura já havia sido rachada num outro 29 de maio - o do ano anterior - pela epopeia popular do Cordobaço, e postergou momentaneamente os projetos dos secretos liberais que viam no general justiçado uma solução de mudança para a fracassada Revolução Argentina.

A dramatização dessa morte acelerou um processo que geralmente leva anos: a criação de um prócer. Em questão de meses os doutores liberais, a imprensa, os herdeiros políticos canonizaram Aramburu mediante o uso irrestrito do ditirambo e da elegia. Paladino da democracia, soldado da liberdade, dileto filho da pátria, militar forjado no molde clássico da tradição são-martiniana, governante singelo e probo que reunia por temperamento os excessos da autoridade, são alguns dos conjuros que escamoteiam à história o perfil verdadeiro de Aramburu. Dois anos depois tinha seu Mausoléu, ornado de Virtudes.

Nem todos os partidários de Aramburu eram tão néscios para consumir a imagem forjada nessa cantilena. Alguns, que com mais inteligência reconheciam as causas do ódio popular, sustentavam que "o Aramburu de 1970 não era o de 1956" e que, colocado nas mesmas circunstâncias, não haveria fuzilado, perseguido nem proscrito. Como Lavalle, assassino de Dorrego, teria cometido os feitos terríveis que cometeu sob a influência de conselheiros dissimulados: bastava trocar o nome de Salvador del Carril pelo de Américo Ghioldi. Ambos teriam se arrependido, consumando no último momento uma enigmática aproximação da sua terra e do seu povo. Dentro dessa perspectiva, é possível que Aramburu, além do monumento gorila, chegue a merecer a cantata expiatória de um Sábato futuro.

Para um juízo menos subjetivo, essa metamorfose carece de importância, ainda que fosse o caso de ser verdadeira. Executor de uma política de classe cujo fundamento - a exploração - é por si anti-humano e cujos episódios de crueldade devêm deste fundamento como os galhos do tronco, as perplexidades de Aramburu, já longe do poder, somente iluminam a defasagem entre os ideais abstratos e os atos concretos dos membros dessa classe: o mal que fez foram os fatos e o bem que pensou, um estremecimento tardio da consciência burguesa. Aramburu estava obrigado a fuzilar e a proscrever, do mesmo modo que seus sucessores até hoje se viram forçados a torturar e a assassinar pelo simples fato de que representam uma minoria usurpadora que somente mediante o logro e a violência consegue se manter no poder.

A matança de junho exemplifica mas não esgota a perversidade deste regime. O governo de Aramburu encarceirou milhares de trabalhadores, reprimiu cada greve, arrasou a organização sindical. A tortura se massificou e se estendeu a todo o país. O decreto que proíbe mencionar Perón ou a operação clandestina que arrebata o cadáver de sua esposa, mutila-o e tira-o do país são expressões de um ódio a que não escapam nem os objetos inanimados, as toalhas e talheres da Fundação incinerados e fundidos porque levam estampado esse nome que se concebe como demoníaco. Toda uma obra social se destrói, chegam-se a secar piscinas populares que evocam o "fato maldito", o humanismo liberal retrocede a tempos medievais: poucas vezes se viu aqui esse ódio, poucas vezes se enfrentaram com tanta claridade duas classes sociais.

Mas se este gênero de violência põe a descoberto a verdadeira sociedade argentina, fatalmente cindida, outra violência menos espetacular e mais perniciosa se instala no país com Aramburu. Seu governo modela a segunda década infame, aparecem os Alsogaray, os Krieger, os Verrier que vão reatar cuidadosamente os laços da dependência desatados durante o governo de Perón. A República Argentina, um dos países com mais baixo investimento estrangeiro (5% do total investido), que remetia ao estrangeiro apenas um dólar por habitante, começa a gerir esses empréstimos que beneficiam somente ao prestamista, a adquirir etiquetas de cor com o nome de tecnologias, a radicar capitais estrangeiros formados com os fundos nacionais e a acumular essa dívida que hoje grava 25% de nossas exportações. Um só decreto, o 13.125, despoja o país de 2 bilhões de dólares em depósitos bancários nacionalizados e os põe à disposição da banca internacional, que agora poderá controlar o crédito, estrangular a pequena indústria e preparar o ingresso massivo dos grandes monopólios.

Quinze anos depois será possível fazer o balanço dessa política: um país dependente e estagnado, uma classe operária submergida, uma rebeldia que estala por todas as partes. Essa rebeldia alcança finalmente Aramburu, enfrenta-o com seus atos, paralisa a mão que firmava empréstimos, proscrições e fuzilamentos.

Autobiografia de Roberto Arlt

Uma delas. Tradução minha.


Me chamo Roberto Christophersen Arlt, e nasci numa noite do ano 1900, sob a conjunção dos planetas Saturno e Mercúrio. Fiz-me sozinho. Meus valores intelectuais são relativos, porque não tive tempo de me formar. Tive sempre que trabalhar e em consequência sou um improvisado ou adventício da literatura. Esta improvisação é a que faz tão interessante a figura de todos os ambiciosos que de uma forma ou de outra têm a necessidade de afirmar seu eu.

Creio que a vida é bonita. É preciso apenas afrontá-la com sinceridade, desentendendo-se em absoluto de tudo que não nos faz melhores, mas não por amor à virtude, senão por egoísmo, por orgulho e porque os melhores são os que dão coisas melhores.

Atualmente trabalho num romance que se intitulará Os sete loucos, um índice psicológico de caráteres fortes, cruéis e torcidos pelo desequilíbrio do século.

Minhas ideias são singelas. Creio que os homens necessitam de tiranos. O lamentável é que não existam tiranos geniais. Talvez porque para ser tirano há que ser político e, para ser político, um solene burro ou um estupendo cínico.

Em literatura só leio Flaubert e Dostoievski, e socialmente me interessa mais o trato dos canalhas e charlatães que o das pessoas decentes.