Trecho final do livro Operación Masacre, de Rodolfo Walsh, referente a um evento de junho de 1956, relacionado com a resistência à Revolución Libertadora (1955), na Argentina. Doze homens, a maioria alheia a esses movimentos, os demais a eles ligados mais pela opinião política que por ações efetivas, são sumariamente condenados à morte por uma autoridade policial, fora da vigência de qualquer lei de exceção. Aramburu, cujo governo deu respaldo aos executores, foi o segundo general presidente de fato na ditadura argentina que se seguiu à queda de Perón. Queria destacar como, em certo momento, Walsh vê os perigos políticos de uma literatura galvanizada, ciosa ao limite da cegueira da sua autoimportância, recoberta de aura - os solenes ditirambos e elegia de encômio ao general. Tradução minha.
Em 29 de maio de 1970, um comando montonero sequestrou, em seu domicílio, o tenente general Aramburu. Dois dias depois essa organização o condenava à morte e enumerava as imputações que o povo peronista alçava contra ele. As duas primeiras incluíam "a matança de 27 argentinos sem juízo prévio nem causa justificada" no dia 9 de junho de 1956.
O comando levava o nome do fuzilado general Valle. Aramburu foi executado às 7 de manha do dia 1º de junho e seu cadáver apareceu 45 dias depois no sul da província de Buenos Aires.
O episódio sacudiu o país de diversas maneiras. O povo não chorou a morte de Aramburu. O Exército, as instituições, a oligarquia elevaram um clamor indignado. Entre as centenas de protestos e declarações há uma que merece ser recordada. Qualifica o fato de "crime monstruoso e covarde, sem precedentes na história da República". Um de seus signatários é o general Bonnacarrere, governador da província quando se desenrolou a Operação Massacre. Outro é o general Leguizamón Martínez, que havia executado o coronel Cogorno nos quarteis de La Plata. Um teceiro é o próprio coronel Fernández Suarez [o ordenador do fuzilamento narrado em Operação Massacre]. Não pareciam os mais indicados para falar de precedentes.
A execução de Aramburu provocou, uma semana mais tarde, a queda do General Onganía, cuja ditadura já havia sido rachada num outro 29 de maio - o do ano anterior - pela epopeia popular do Cordobaço, e postergou momentaneamente os projetos dos secretos liberais que viam no general justiçado uma solução de mudança para a fracassada Revolução Argentina.
A dramatização dessa morte acelerou um processo que geralmente leva anos: a criação de um prócer. Em questão de meses os doutores liberais, a imprensa, os herdeiros políticos canonizaram Aramburu mediante o uso irrestrito do ditirambo e da elegia. Paladino da democracia, soldado da liberdade, dileto filho da pátria, militar forjado no molde clássico da tradição são-martiniana, governante singelo e probo que reunia por temperamento os excessos da autoridade, são alguns dos conjuros que escamoteiam à história o perfil verdadeiro de Aramburu. Dois anos depois tinha seu Mausoléu, ornado de Virtudes.
Nem todos os partidários de Aramburu eram tão néscios para consumir a imagem forjada nessa cantilena. Alguns, que com mais inteligência reconheciam as causas do ódio popular, sustentavam que "o Aramburu de 1970 não era o de 1956" e que, colocado nas mesmas circunstâncias, não haveria fuzilado, perseguido nem proscrito. Como Lavalle, assassino de Dorrego, teria cometido os feitos terríveis que cometeu sob a influência de conselheiros dissimulados: bastava trocar o nome de Salvador del Carril pelo de Américo Ghioldi. Ambos teriam se arrependido, consumando no último momento uma enigmática aproximação da sua terra e do seu povo. Dentro dessa perspectiva, é possível que Aramburu, além do monumento gorila, chegue a merecer a cantata expiatória de um Sábato futuro.
Para um juízo menos subjetivo, essa metamorfose carece de importância, ainda que fosse o caso de ser verdadeira. Executor de uma política de classe cujo fundamento - a exploração - é por si anti-humano e cujos episódios de crueldade devêm deste fundamento como os galhos do tronco, as perplexidades de Aramburu, já longe do poder, somente iluminam a defasagem entre os ideais abstratos e os atos concretos dos membros dessa classe: o mal que fez foram os fatos e o bem que pensou, um estremecimento tardio da consciência burguesa. Aramburu estava obrigado a fuzilar e a proscrever, do mesmo modo que seus sucessores até hoje se viram forçados a torturar e a assassinar pelo simples fato de que representam uma minoria usurpadora que somente mediante o logro e a violência consegue se manter no poder.
A matança de junho exemplifica mas não esgota a perversidade deste regime. O governo de Aramburu encarceirou milhares de trabalhadores, reprimiu cada greve, arrasou a organização sindical. A tortura se massificou e se estendeu a todo o país. O decreto que proíbe mencionar Perón ou a operação clandestina que arrebata o cadáver de sua esposa, mutila-o e tira-o do país são expressões de um ódio a que não escapam nem os objetos inanimados, as toalhas e talheres da Fundação incinerados e fundidos porque levam estampado esse nome que se concebe como demoníaco. Toda uma obra social se destrói, chegam-se a secar piscinas populares que evocam o "fato maldito", o humanismo liberal retrocede a tempos medievais: poucas vezes se viu aqui esse ódio, poucas vezes se enfrentaram com tanta claridade duas classes sociais.
Mas se este gênero de violência põe a descoberto a verdadeira sociedade argentina, fatalmente cindida, outra violência menos espetacular e mais perniciosa se instala no país com Aramburu. Seu governo modela a segunda década infame, aparecem os Alsogaray, os Krieger, os Verrier que vão reatar cuidadosamente os laços da dependência desatados durante o governo de Perón. A República Argentina, um dos países com mais baixo investimento estrangeiro (5% do total investido), que remetia ao estrangeiro apenas um dólar por habitante, começa a gerir esses empréstimos que beneficiam somente ao prestamista, a adquirir etiquetas de cor com o nome de tecnologias, a radicar capitais estrangeiros formados com os fundos nacionais e a acumular essa dívida que hoje grava 25% de nossas exportações. Um só decreto, o 13.125, despoja o país de 2 bilhões de dólares em depósitos bancários nacionalizados e os põe à disposição da banca internacional, que agora poderá controlar o crédito, estrangular a pequena indústria e preparar o ingresso massivo dos grandes monopólios.
Quinze anos depois será possível fazer o balanço dessa política: um país dependente e estagnado, uma classe operária submergida, uma rebeldia que estala por todas as partes. Essa rebeldia alcança finalmente Aramburu, enfrenta-o com seus atos, paralisa a mão que firmava empréstimos, proscrições e fuzilamentos.
Assinar:
Postar comentários (Atom)
Nenhum comentário:
Postar um comentário