quinta-feira, julho 22, 2010

Visões do Processo no século XX: Leopold Bloom no Rol dos Culpados

A propósito do 15º episódio de Ulisses, de James Joyce. Aquele que, na 1ª edição, quando os episódios tinham títulos homéricos, fora alcunhado de Circe.
Citações conforme a tradução de Caetano Galindo, ainda inédita.

Para mim, Ulisses de James Joyce é uma obra realista, e num dos mais altos graus. Sim, uma obra que conserva o caráter de um acontecimento da (vamos dizê-la) posmodernidade não deixa de ser realista por não pertencer à escola novecentista. Seu realismo é o do século XX, e não o do século XIX, este marcado pelo determinismo e pelo psicologismo explícito. Não poderíamos, no entanto, ao negar-lhe o realismo, classificar de fantasia uma obra tão cotidiana, com puns e cocôs; com cornos e problemas financeiros; com referências a Tomás de Aquino e a Shakespeare; e, principalmente, com fantasmas.

Alto lá! Uma visão superficial do realismo impugnaria desde já a presença dos fantasmas. Afinal, o que há de real nas aparições fantasmagóricas? Nada, se se procurar nelas alguma realidade dura, empírica, verificável e mensurável em tubos de ensaio; mas talvez não há o que seja mais real no ser humano, pelo menos em seus efeitos, que fantasmas. Atento a isso, o realismo do século XX soube trazer sob suas asas o governo do inconsciente, do sonho, da memória – essa sempre em alguma medida ficcionalizada – e da parcela incontrolável da própria linguagem do homem; que, sabemos, não é dele: é dos homens.

Por isso o episódio Circe deve ser levado a sério. Não se trata de uma série de brincadeiras ou de fantasmagorias gratuitas, de alucinações sem sentido que devemos atribuir à bebida. As narrativas paralelas entre realidade e imaginação não são distinguíveis estruturalmente no texto, e embora se possam esquematizá-las para estabelecer os fatos ocorridos no episódio, não devem ser de todo separadas na leitura. Além disso, sequer entendemos que as alucinações ocorrem no modo de alucinações, isto é, de realidades não factuais mas experimentadas sensorialmente pelas personagens. Há ainda níveis mais profundos que devem ser clareados. Por ter sido escrito sob a forma do sonho – lembremos que as alucinações em questão são sempre ocorrências estritamente vinculáveis aos acontecimentos do dia narrado no livro, como ocorre com o mecanismo onírico descrito por Freud e lido por Joyce -, mas referidos a personagens despertas, devemos interpretar os fantasmas como realidades do inconsciente, sub-reptícias, inenarráveis, incompreensíveis e irrecuperáveis para os que as experimentam. Bloom não sente medo porque realmente vê, no modo de alucinação, crianças subindo postes ou mulheres guardando portais do inferno; mas porque essas visões são incitadas em seu inconsciente pela forma como absorve a simbologia do lugar escuro, sujo, e cheio de perdição sexual que Bloom frequenta ali. Do mesmo modo, ele não procura a todo momento se desculpar por ser flagrado na zona do meretrício pelas alucinações: o que ele sente é a culpa que lhe inculca o próprio ser. Por isso os fantasmas são reais; não como projeções sensoriais, mas como projeções inconscientes do próprio imaginário sobre a simbologia do ambiente que lhe envolve.

Obviamente, dada a presença constante da fantasmagoria nos nossos processos mentais, caberia a pergunta: por que ser utilizada especificamente neste episódio, não nos demais? Arrisco uma resposta, provisória como todas, para além do álcool tomado no Gado do Sol, o episódio anterior, ou durante o que aconteceu entre aquele e este episódio, o de Circe: justamente porque estamos num ambiente escuro, sujo e cheio de perdição sexual; ambiente esse socialmente recalcado e estigmatizado, que, por sua vez, faz o sujeito se confrontar mais terrível e abertamente com os próprios recalques, ou seja, os ambientes recônditos do seu espírito, onde há escuridão, sujeira e perdição sexual.

E culpa.

Estabelecidos esses pressupostos, gostaria de trazer à baila uma passagem específica das alucinações bloomianas. Aquela em que, sendo flagrado alimentando o cachorro com a comida que havia comprado há pouco, Bloom é submetido a uma corte de justiça em que é acusado de vários outros crimes, como o de ter se limpado ao cagar com o conto de Beaufoy horas antes; ou o caso da empregada que, segundo Molly, ele haveria bolinado, a que se seguem várias outras mulheres possivelmente desejadas por Bloom. No final, a alucinação leva-o à inevitável condenação.

O trecho em questão ocorre ainda no início do episódio, antes da entrada de Bloom no bordel de Bella Cohen. Desde o começo de Circe, Bloom é confrontado com a culpa: um brilho lhe evoca Blazes Boylan; uma figura que lhe fala em gaélico o faz pensar em alguma espionagem dos nacionalistas, de quem já foi vítima no correr do dia; o dinheiro gasto com a comida que daria a Stephen é repreendido pela aparição do pai, sob a figura mais arquetípica do judeu de hábitos financistas (um sábio de Sião...) etc. Até a culpa por não ter ainda pago o sabonete que pegara pela manhã na farmácia o acossa!

Bloom vai percorrendo os fantasmas de culpa a culpa, até finalmente alimentar com o mocotó recém-comprado o cachorro e ser acusado pelos vigias de crueldade contra animais. O que inexoravelmente leva à instauração do tribunal.

E aqui o livro chega a um topos da literatura: o do julgamento. Interessa-nos aqui, sobretudo, as variações do topos no século XX, dentre as quais sobressaem-se duas: a de Josef K., n’O processo de Kafka, e a de Mersault, n’O estrangeiro de Camus. Nessa tríade temos três níveis de julgamento: o imaginário de Bloom; o simbólico de K.; e o real de Mersault. Bloom é julgado pelas culpas inconscientes que carrega consigo; K. por uma estrutura artificial que lhe é externa e ao mesmo tempo lhe determina; Mersault por um assassinato real mas por uma corte que é inacessível à sua palavra. Em comum nos três julgamentos está a culpa pressuposta, anterior ao veredito. Não há, pois, defesa possível. Quando K. tenta realizá-la, o procedimento é desconhecido (como o simbólico que nos determina sem que, na maioria das vezes, tenhamos ciência) e os espaços são claustrofóbicos, os discursos são inexpressivos e a situação aterradora, e isso até o ponto em que se consiga perceber que “[…] no fundo a lei não admitia nenhuma defesa, mas tão-somente a tolerava”. Mersault, assassino verdadeiro, via o processo desenvolver-se como uma mera representação teatral, da qual ele era um espectador: “De algum modo, pareciam tratar deste caso à margem de mim. Tudo se desenrolava sem a minha intervenção. Acertavam o meu destino, sem me pedir a opinião. De vez em quando tinha vontade de interromper todo mundo e dizer: ‘Mas afinal quem é o acusado? É importante ser o acusado. E tenho algo a dizer’”. Aqui o real se revela como aquilo que sobra de todo imaginário e simbólico: mesmo tendo algo a dizer, Mersault não tinha nada. Não havia defesa. E sua culpa veio menos da morte de um estrangeiro qualquer que do relevantíssimo fato de ele não ter chorado no velório da própria mãe. Quase um Stephen Dedalus.

No processo do Bloom, a situação se repete. Com a diferença de que o veredito depende dele mesmo, pois é imaginário. Na primeira vez em que se dirige aos jurados, diz-se um incompreendido, um bode expiatório. Mas o é de si mesmo! O que é dizer que sua culpa já está desde sempre presente, que ela independe do julgamento, de modo que todas as linhas de defesa - sejam as de Bloom, sejam as de seu advogado J.J. O’Molloy - não passaram de fatos que procuram suavizar sua personalidade, uma autojustificação que não justifica nada. Não é à toa que, ao pedir ordem no tribunal, George Fottrell, o juiz imaginário, tanto anuncia que o acusado fará sua declaração como antecipa que esta será fajuta. Na verdade, é tanto fajuta quanto ininteligível.

Nesse passo, o recurso utilizado por James Joyce é o mais significativo possível. Não é dado a Bloom o discurso direto, como predomina no episódio inteiro. Pelo contrário, suas declarações constam de uma rubrica, que as menciona como sendo simplesmente ininteligíveis. Ora, já tivemos um idiota na primeira página do episódio falando ininteligivelmente, e para ele se deu o direito ao discurso direto. Não é este o caso da defesa de Bloom. Porque, a exemplo da situação de K., apenas toleram a sua defesa. E, a exemplo da de Mersault, Bloom tem mas não tem algo a dizer. A rubrica traduz o que ele poderia dizer, aquilo que, bem sopesado, não diz coisa alguma de concreta ou importante, ou pelo menos não ataca a culpa que o acomete, esta também nunca clara. Ao advogado resta bestificar, infantilizar o réu (que assim corresponde), ou pintá-lo com a simbólica e e mais alucinada de todas figura do homem de bem.

Não adianta. A literatura do século XX mostrou o processo como teatro, a justiça como simulacro. Sugestivo, portanto, que o processo em questão seja exposto sob a forma de um roteiro dramático. A culpa do homem, seja a que lhe é atribuída externamente, seja a culpa inconsciente que atormenta Bloom, leva em conta muito menos a verdade fática. A verdade fática não passa de um mero gatilho que a detona, uma desculpa ou oportunidade para se declará-la. A culpa decorre antes de uma ficção do bem e do homem bom, aquele que chora no velório da mãe; aquele que paga o sabonete quando o compra; que não deseja senão a própria esposa e não frequenta os bordéis. Ou, ainda, aquele que não é negro ou misturadinho, que não é imigrante, que não é lombrosianamente predisposto à maldade, fato esse paradoxalmente utilizado pelo advogado para lenificar a culpa de Bloom: “O desvio de comportamento forjado foi fruto de passageira aberração de hereditariedade, causada por alucinação, sendo familiares como a ocorrência legadamente culposa perfeitamente aceitáveis na terra natal de meu cliente, a terra do faraó”.

Já o dissemos: não adianta. Bloom, enfim, julga a si mesmo e se condena, e então procura a execução da pena. A condenação, vimos, é anterior: o processo, como o teatro que é, só existe para dar lugar à sua verbalização. E a execução de uma pena é a forma que encontra para aliviar sua culpa sempiterna. Eis aí uma chave possível para entender o masoquismo que percorre o episódio de Circe, principalmente quando Bloom se faz voyeur do affair entre sua esposa e o amante. Essa expiação é o que lhe permite a expressão de um gozo nesse momento aparentemente inoportuno:


BLOOM

(seus olhos loucamente dilatados, agarra seu próprio corpo) Mostra! Esconde! Mostra! Soca nela! Mais! Manda!