sexta-feira, dezembro 18, 2009

Aura e alienação em Thomas Mann

- Ἡμέτερον δὴ ἔργον, ἦν δ' ἐγώ, τῶν οἰκιστῶν τάς τε βελτίστας φύσεις ἀναγκάσαι ἀφικέσθαι πρὸς τὸ μάθημα ὃ ἐν τῷ πρόσθεν ἔφαμεν εἶναι μέγιστον, ἰδεῖν τε τὸ ἀγαθὸν καὶ ἀναβῆναι ἐκείνην τὴν ἀνάβασιν, καὶ ἐπειδὰν ἀναβάντες ἱκανῶς ἴδωσι, μὴ ἐπιτρέπειν αὐτοῖς ὃ νῦν ἐπιτρέπεται.

- Τὸ ποῖον δή;

- Τὸ αὐτοῦ, ἦν δ' ἐγώ, καταμένειν καὶ μὴ ἐθέλειν πάλιν καταβαίνειν παρ' ἐκείνους τοὺς δεσμώτας μηδὲ μετέχειν τῶν παρ' ἐκείνοις πόνων τε καὶ τιμῶν, εἴτε φαυλότεραι εἴτε σπουδαιότεραι.

(- Nossa tarefa - eu dizia - como fundadores da cidade, é obrigar as naturezas mais excelentes a se aproximar desse conhecimento sobre o qual anteriormente dissemos ser o mais sublime, e a contemplar o bem e elevar-se nessa ascensão, e após terem se elevado e contemplarem suficientemente, não lhes permitir o que agora é permitido.

- O quê?

- Que permaneçam fixos lá no alto - eu dizia - e não desejem descer de volta junto àqueles cativos e nem compartilhar com eles os trabalhos e as honras, sejam os mais simples, sejam os mais virtuosos.)

Platão, A República, 519c


“[A guerra] é a forma mais perfeita do art pour l’art[1].

É lamentável que essa impressionante sentença de Benjamin não tenha sido realizada em um estudo dedicado a Thomas Mann. Certamente a originalidade do pensador alemão, caso se debruçasse sobre o escritor conterrâneo, teria enriquecido enormemente a obra de ambos. Entretanto, apesar de não haver, no ensaio citado, referência ao autor d’A Morte em Veneza, e ainda que a proposta se revele infinitamente mais ambiciosa frente aos parcos resultados que estão ao nosso alcance, podemos nós tentar alguma aproximação.

E a que se deve a ideia desse cotejo? Vejamos: a sentença que fica como introdução e epígrafe ao presente trabalho predica à guerra a conhecida fórmula da arte autoalienante do decadentismo novecentista. Daí não se pode atribuir uma repentina associação à obra manniana a um delírio gratuito. Pois Mann é crítico do decadentismo, e é crítico ainda maior da guerra, e assim – se é que para um trabalho de livre-pensamento como é o ensaio é preciso justificar associações antes de torná-las justas pelo seu próprio desenvolvimento – a sua evocação por meio de Benjamin soa lícita. Além do mais, um aspecto estrutural comum ao texto de Benjamin e a A Montanha Mágica de Mann nos oferece uma interessante coincidência: ambos ostentam em seu gran finale a guerra, e esta aparece não como efeito de uma relação mecânica com uma causa, seja ela a reprodutibilidade técnica da obra de arte em um, seja a Bildung do protagonista em outro. Aparece, pelo contrário, como algo que se dá ao luxo de emergir nas condições oferecidas pelo estado da arte da vida social (e aqui partimos do pressuposto de que A Montanha Mágica é a reprodução microlocalizada de um contexto geral da configuração sociopolítica da Europa). Essa falta de relação mecânica de causa e efeitopois não foi Hans Castorp quem causou a guerra, e Benjamin, na sua prosa um tanto difícil de um pensador idealista platônico por vias da mística judaica com vocação para o materialismo dialético marxista (!), não estabelece um liame causal necessário entre a reprodutibilidade técnica e a guerradeixa ao leitor o texto aberto à reflexão interpretativa, aquela que tentamos agora empreender.

Pois bem: para Benjamin, a reprodutibilidade técnica em massa, representada sobretudo pela fotografia e mais tarde pelo cinema, provoca uma mudança crucial na recepção da obra de arte. Ela agora está livre da autenticidade de seu aqui e agora únicos e assim não depende mais das limitações de sua realidade material. As reproduções alcançam lugares impossíveis para o original. Em verdade, essa mudança é mostrada num crescendo desde as técnicas mais rudimentares de reprodução, passando pela imprensa, até chegar à fotografiaem que a reprodução da imagem foi liberada da mão para caber somente ao olho – e à reprodução do som, quando “a reprodução técnica atingiu tal padrão de qualidade que ela não somente podia transformar em seus objetos a totalidade das obras de arte tradicionais, submetendo-as a transformações profundas, como conquistar para si um lugar próprio entre os procedimentos artísticos” (p. 167).

As conseqüências mais imediatas dessa reprodutibilidade é a perda do que foi transmitido pela a obra na tradiçãoela não guarda mais os sinais da sua origem e do passar do tempo, pois agora é substituída por uma existência serial, uma constante atualização, promovendo a “liquidação do valor tradicional do patrimônio da cultura (p. 169). Apesar de variável, a tradição depende do valor único da obra de arte – e por isso a arte estava antes muito mais ligada ao ritual e ao valor de culto, pois sua exposição não transcendia sua realidade única. A arte era coisa para iniciados e tinha função social mais específica. A reprodução técnica a emancipa de suaexistência parasitária, destacando[-a] do ritual” (p. 171). A partir daí, constantemente atualizada nos contextos mais diversos e estranhos à sua origem, a arte toma formas em que a reprodução não é mais uma condição externa, mas sua própria razão de existir – o exemplo mais eloquente é o cinema. “A difusão se torna obrigatória, porque a produção de um filme é tão cara que um consumidor que poderia, por exemplo, pagar um quadro, não pode mais pagar um filme” (p. 172).

Essa capacidade de replicação da obra, de sua difusão e de criação de um público consumidor abrangente, aliado também ao que Hannah Arendt chama de incorporação da sociedade de massas à sociedade e à cultura[2], permitiu que a obra de arte estivesse à disposição das massas e a ela se dirigisse. Qual o grande perigo disso para a arte? É a perda da sua aura, da sua transcendência mágica. Aura essa de teor teológico, que é “a aparição única de uma coisa distante, por mais perto que ela esteja” (Benjamin, p. 170).

Graças a essa definição, é fácil identificar os fatores sociais específicos que condicionam o declínio atual da aura. Fazer as coisas “ficarem mais próximas” é uma preocupação tão apaixonada das massas modernas como sua tendência a superar o caráter único de todos os fatos através da sua reprodutibilidade. [...] Retirar o objeto do seu invólucro, destruir sua aura, é a característica de uma forma de percepção cuja capacidade de captar “o semelhante no mundo” é tão aguda, que graças à reprodução ela consegue captá-lo até no fenômeno único. (p. 170, grifos no original).

Mas fazer a obra de arte perder sua aura não seria fazê-la perder sua própria natureza de obra de arte? É certo que essa natureza é ligada ao ritual, tem caráter teológico, e a reprodução da obra de arte adquire ares de profanação. E aqui, Benjamin tem um insight brilhante:

Com efeito, quando o advento da primeira técnica de reprodução verdadeiramente revolucionária – a fotografia, contemporânea do início do socialismo – levou a arte a pressentir a proximidade de uma crise, que fez aprofundar-se nos cem anos seguintes, ela reagiu ao perigo iminente com a doutrina da arte pela arte, que é no fundo uma teologia da arte. Dela resultou uma teologia negativa da arte, sob a forma de uma arte pura, que não rejeita apenas toda função social, mas também qualquer determinação objetiva. (p. 171).

Daí por diante, Benjamin passa a analisar vários aspectos da técnica de se fazer cinema, o que não vem ao caso agora. Interessa-nos aqui o surgimento da salvação decadentista para a arte. A fórmula da art pour l’art, iniciada, segundo Benjamin, por Mallarmé, implica uma autoalienação do artista, um fechamento em sua interioridade ou em círculos fechados de iguais, para a proteção contra o filisteísmo de uma boa sociedade que transforma a arte em valor de mercado ou da sociedade de massas que devora a arte numa insaciável atualização em reproduções profanatórias. Disso se pode tirar a ideia da poesia esotérica, difícil – Mallarmé é mais uma vez a ilustração perfeita - e algo como a mistificação do artista nas categorias do gênio, do misantropo ou do poeta maldito. Tudo para devolver à arte a aura dos iniciados, porém sem uma função social que a limitasse como objeto e a mundanizasse.

Ora, falamos aqui em alienação, na alienação estetizante do artista decadentista que voluntariamente se exila do contexto imediato social. temos uma ligação muito próxima com Aschembach d’A morte em Veneza e com Castorp d’A montanha mágica. Mas é preciso lembrar que a palavra alienação é constantemente aplicada às massas. Poderíamos colocar sob o mesmo fenômeno a alienação estetizante do artista e a alienação das massas de sua própria consciência de classe?

“O verdadeiro precursor do moderno homem da massa é esse indivíduo que foi definido e de fato descoberto por aqueles que, como Rousseau no século XVIII ou John Stuart Mill no século XIX, se encontraram em rebelião declarada contra a sociedade” – diz-nos Hannah Arendt (p. 251). Ela localiza, pois, a alienação estetizante em um momento anterior ao advento da fotografia. Trata-se da revolta do indivíduo contra o filisteísmo que submete as produções do espírito – a filosofia, a ciência e a arte – às necessidades utilitárias da educação ostensiva para marcar a posição social e o status. Pois estes rebeldes, ainda na época da boa sociedade, precisavam fugir dela, e não raro se refugiavam junto aos páriasaqueles que não pertenciam à sociedade – e revolucionários. Havia, pois, uma “presença simultânea, dentro da população, de outros estratos além da sociedade para os quais o indivíduo poderia escapar, e um dos motivos pelos quais tais indivíduos tão amiúde aderiam a partidos revolucionários era que descobriam, nos que não eram admitidos à sociedade, certos traços de humanidade que se haviam extinguido na sociedade” (p. 252). O dilema do indivíduo na sociedade de massas era justamente a inexistência dessas vias de escape, a não ser na figura do artista.

Daí a semelhança entre o culto ao poeta maldito e à celebridade do cinema e da música pop; daí a autoapreciação do cinema como a sala em que se isola do mundo real para se entrar no mundo da magia, à semelhança aos círculos fechados da poesia; daí a ideia vulgar nessas propagandas televisivas que procuram incentivar a leitura de que a literatura é a entrada para o mundo da imaginação e do fantástico – e issolado a lado com a magia das musas do gênio. Tudo é, pois, alienação. A revolta contra o filisteísmo, num primeiro momento, e mais tarde a salvaguarda da aura, levou os artistas decadentistas ao autoexílio na art pour l’art. Esse autoexílio é a expressão da elevação espiritual sobre todo utilitarismo da lida cotidiana. Pois bem, o acesso universal à cultura possibilitado pela reprodutibilidade técnica da obra de arte, levou ao mesmo exílio dos decadentistas a massa, que alienada passa a apreciar a realidade apenas por meio da arte reproduzível tecnicamente, mas por outra via, justamente a da destruição da aura. Submetida ao capital, a “indústria cinematográfica tem todo interesse em estimular a participação das massas através de concepções ilusórias e especulações ambivalentes” (Benjamin, p. 184), retratando-a sem proporcionar sua tomada de consciência[3]. A arte, para a massa, opõe-se ao recolhimento do artista antissocial na figura da distração (Benjamin) ou diversão (Arendt), que não permite a avaliação paciente da obra, porque funciona por meio de choques emocionais, com a atualização veloz das imagens e dos acontecimentos sem o tempo necessário para a reflexão. Essa distração é o que molda a sua apreensão da realidade, e o aparelho que a filma – e na nossa era filma tudo, inclusive os parlamentos e seus bastidores - exige que essa realidade se comporte segundo seus desígnios. é que temos, por dois caminhos completamente distintos – o da elevação espiritual que não valoriza nada que não seja estético (a arte pela arte - representada no seu nível extremo pelos manifestos futuristas), e o da distração, que apreende a realidade na medida em que distrai o público – a estetização da política. A arte massificada permite que a massa se mostre ao aparelho que filma, mas não que modifique sua condição.

As massas têm o direito de exigir a mudança das relações de propriedade; o fascismo permite que elas se exprimam, conservando, ao mesmo tempo, essas relações. Ele desemboca, consequentemente, na estetização da vida política. A política se deixou impregnar, com d’Annuzio, pela decadência, com Marinetti, pelo futurismo, e com Hitler, pela tradição de Schwabing.

Todos os esforços para estetizar a política convergem para um ponto. Esse ponto é a guerra. A guerra e somente a guerra permite dar um objetivo aos grandes movimentos de massa, preservando as relações de produção existentes. [...] Do ponto de vista técnico, [...], somente a guerra permite mobilizar em sua totalidade os meios técnicos do presente, preservando as atuais relações de produção. (p. 195, grifos do original)

A guerraum sentido às movimentações das massas, ao mesmo tempo em que proporciona satisfação estética para a percepção elevada modificada pela técnica:

Na época de Homero, a humanidade oferecia-se em espetáculo aos deuses olímpicos; agora, ela se transforma em espetáculo para si mesma. Sua auto-alienação atingiu o ponto que lhe permite viver sua própria destruição como um prazer estético de primeira ordem. Eis a estetização da política, como a pratica o fascismo. O comunismo responde com a politização da arte. (p. 196, grifos do original)

Thomas Mann, que certamente não era comunista, também responde com a politização da arte. E não com isso, mas também com a politização do artista, ele mesmo, tão ativo entre os alemães exilados por ocasião da ascensão de Hitler. A politização em Mann, nos casos de A Morte em Veneza e A Montanha Mágica, opera-se mediante o choque de uma realidade pública que vai grassando despercebida até se tornar inexorável para a vida alienada do protagonista. E, em ambos os casos, toma de assalto a personagem, que se tardiamente impotente e se abandona à volúpia da tragédia, incorporando-se aos movimentos da massa – no caso da 1ª Guerra na Montanha Mágicaou aos seus padecimentos – o cólera da Morte em Veneza.

Na Morte em Veneza[4], Gustav Von Aschembach é um escritor que carrega a expressão da elevada alma europeia¸ quedemasiadamente sobrecarregado pelo dever da produção; adverso demais a distrações para servir como amante do colorido mundo exterior, dera-se por satisfeito com a opinião que todos, sem se afastarem do seu círculo, podem obter da superfície do mundo, e nunca sequer se sentira tentado a deixar a Europa” (p. 93). Disciplinado quanto à sua produtividade – espelho irônico do próprio apolítico Mann de 1912 – faz de seu isolamento criativo ofício sagrado, opta pelo físico franzino e deseja envelhecer para aquisição do espírito mais cultivado. Retrato perfeito daquele que se insensibiliza pelos estímulos mundanos aptos a por a perder a obsessão do artista; um escritor que busca a forma de arte capaz de fazer renascer a dignidade da ingenuidade schilleriana que avigorasse “seu senso de beleza, aquela nobre pureza, simplicidade e simetria da formação, que dava aos seus produtos de ora em diante um cunho tão manifesto, pretenso mesmo, de maestria e classicismo” (pp. 100-101). Nada mais que a busca da aura tal como definida por Benjamin, à margem do objetivo e sob uma alienação que caminha rumo à forma pura. Seuímpeto da palavra com o qual o objeto era repelido [e que] proclamava o abandono de todo sentido moral dúbio, de toda frase compassiva, em que tudo compreender queria dizer tudo perdoar” (p. 100) representa exatamente a subtração ao reino do político, em que a publicidade da palavra entre iguais a coloca em um eterno xeque e aquém da certezacerteza artística – de que Aschembach acreditava ser senhor.

Mas essa mesma personagem é acometida por um desejo súbito de viajar justamente por estímulo mundanoum homem com uma mochila. E aqui Mann usa toda a sua habilidade irônica: o desejo de viajar suscita em Aschembach, essa alma envelhecida, umdesejo juvenil e sedento para a distância” (p. 92), o despertar da vontade, o querer se lançar à vida. Mas a que se lança efetivamente o escritor? A uma viagem higienizada, asséptica, fruto da indústria do turismo, das vantagens modernas do tráfego internacional. “Viajar, portanto – deu-se por satisfeito. Não para muito longe, não até os tigres. Uma noite do carro-leito e uma siesta de três ou quatro semanas num lugar de férias de todo o mundo, no amável sul...” (p. 95). Nada como o turismo para proteger do efetivamente político, mas também para fazer o escritor descansar de sua disciplina aurática em meio ao filisteísmo da boa sociedade.

Haveria o que censurar de alguém que busca o descanso? Não, por certo. O que Mann aponta, no entanto, é a mudança de ares entre dois espaços igualmente alienados, alienação essa que se reforçada por Tadzio. Diante do efebo polonês, Aschembach se perde numa contemplação inativa em que parece encontrar o índice da forma pura e perfeita que buscava para a própria arte. Aschembach dá a Tadzio esse status de obra de arte, da maneira como a concebe: sacra, intocável, aurática. Tadzio é a arte pela arte dada à apreciação obcecada, antiutilitária e elevada do protagonista – e por isso em nenhum momento da obra Aschembach o profana com o estabelecimento de um contato (“Este passo [falar com Tadzio] que não dera podia ser para o bem; o fácil e o alegre poderia levar à sanável[5] desilusão. A verdade era que o idoso não desejava a desilusão, porque a embriaguez lhe era cara” (p. 140)) – pelo contrário, quem o faz é “Jachu”, que entra, ao final do conto, em luta corporal com Tadzio e irrita Aschembach.

Enquanto se deixa perder nesse deleite, um fantasma ronda Veneza, é sentido por Aschembach e é por ele solenemente ignorado. Trata-se de uma atmosfera sufocante, que faz esvaziar os hotéis e os seus empregados se portarem de maneira constrangedora e afirmarem que a desinfetação da cidade realizada pelas autoridades era por causa do siroco que apenas comprime, e não que traz a doença. Claro que a história incomoda e amedronta o protagonista, que chega até a cogitar avisar a família de Tadzio para protegê-lo. Entretanto isso “levá-lo-ia de volta a si mesmo, dá-lo-ia de novo a si mesmo, mas quem está fora de si nada detesta mais que voltar de novo a si” (p. 162). De repente, parece que o escritor abandonou-se a um prazer estético da própria degradação, e resolve assumir para si a mesma postura dos citadinos: “’Eu calarei!’ [...] Que lhe diziam a arte e a virtude comparadas às vantagens do caos? Calou e ficou.” (idem). A massa e o artista elevado igualmente alienados se encontram aqui no mesmo pontocomo convergiam, no ensaio de Benjamin, para a guerra. Estetizam a política e cortam a verdade conforme as conveniências, mais imediatas para aquela, mais transcendental para este.

Mas o medo de prejuízos gerais, a consideração com a recente abertura da exposição de pintura nos jardins públicos, as enormes baixas que ameaçavam os hotéis, as lojas, toda a múltipla indústria turística, nos casos de pânico e difamação, mostrava-se mais forte na cidade que o amor à verdade e o respeito a acordos internacionais, possibilitando as autoridades sustentarem tenazmente sua política de ocultar e negar. [...] O povo sabia disso; e a corrupção dos superiores, junto com a reinante insegurança e a situação excepcional em que a morte colocava a cidade produziram certa indecorosidade das camadas inferiores, um encorajar de instintos obscuros e anti-sociais que se manifestavam por intemperança, descaramento e crescente criminalidade. (pp. 160-161).

A primeira vítima das (in)atitudes de Aschembach e dos venezianos é a verdade, em nome da distração dos jardins públicos e da elevação na forma pura e perfeita de Tadzio. Depois, o povo é a vítima, que enquanto morre encontra na morte uma nova forma de diversão na esgarçadura do tecido social. Por último, a morte em Veneza do próprio Aschembach, abraçando a tragédia e escapando das questões públicas por amor à arte que concebera.

Hans Castorp[6], por sua vez, tem uma existência muito mais parasitária que a de Aschembach. Medíocre, sem o menor tato do elemento impessoal que o rodeia, de sua geração e do seu mundo, não é capaz de agir nele ou de refletir sobre ele e sequer se dedica à criação artística. Burguês órfão que vive de renda, também hesita em se lançar ao mundo do trabalho quando acaba seus estudos de engenharia. Pelo contrário, sintomas convenientes de tuberculoses lhe dão a chance de passar um tempo com o primo Joachim num sanatório em Davos-Platz, nos Alpes, tempo esse que, graças à acomodação do nosso protagonista, passa de três semanas a sete anos, e iria mais longe não fosse a guerra.

Castorp é tão extraordinariamente alienado que reúne todas as formas de alienação: é um exilado do mundo dos negócios, da ação e da política por seu próprio desinteresse, e depois, no sanatório Berghof, também fisicamente. Ali, vai paulatinamente perdendo todo o contato com a planície. Tornou-se umpaciente garantido, definitivo, que desde muito cessara de saber para onde mais poderia ir e se tornara completamente incapaz de sequer ventilar a ideia do regresso à planície...” (p. 945). Por outro lado, empreende no seu isolamento nas montanhas uma atividade de construção do espírito e de sua elevação, uma Bildung, que não alcança nada além de uma indiferença filosófica com o mundo exterior simbolizada na barbicha mal cuidada ostentada ao final da sua estadia.

O que lhe desperta a essa elevação, além do isolamento, é o fato de Castorp ter sido acossado por dois demônios sedutores da palavra. O primeiro foi Settembrini, humanista filho da iluminação racionalista, entusiasta do progresso, pedagogo das virtudes, representação do burguês revolucionário que se fia sobretudo na ciência e na positivação dos direitos para a construção de uma sociedade feliz. O outro é o ex-jesuíta Naphta, religioso sedicioso, que expõe o outro lado da razão, tudo aquilo que a burguesia ávida por segurança e pela possibilidade científica de medição e de evitação de todo mal e de toda frustração esconde sob o tapete de sua modernidade, como a exploração do homem pelo homem. Um procede como Platão ao expulsar os poetas da República: para fins pedagógicos, convém proteger Castorp de alguns mitos, protegê-lo contra as verdades antiprogressistas de Naphta, tocar no que convém. O outro superestima a dimensão irracional do ser humano e toma partido do obscurantismo medieval como meio de contenção da arrogância (ele, que vive no luxo jesuíta...), e assim procura negar toda potência criativa do homem. Num e noutro há o que se censurar – e justamente na indecidibilidade entre uma e outra postura é que se refugia Castorp. Porém, o que não há o que censurar nesses velhinhos é a dimensão política de seus pensamentos: suas abstrações tem fins mundanos, dirigem-se ao homem e ao meio social (dos quais se veem privados pela tuberculose e pela idade), principalmente no que diz respeito a Settembrini, que procura convencer o protagonista a voltar ao mundo da planície e dos negócios humanos. Mas para Castorp fica apenas o aspecto estético do pensamento, de tudo quanto se diz o que mais lhe toca é justamente a sedução da palavra, a beleza do encadeamento dos raciocínios. É isso, somente isso, que quer para si.

E para isso lhe vem a calhar o isolamento das montanhas. Mergulha na especulação elevada sobre o que é a vida e passa a estudar avidamente anatomia, biologia e psicologia. Mas tal especulação não é movida apenas pelo desejo de elevação espiritual: é também uma maneira de lidar com o tédio no sanatório, nos tempos em que ainda permanecia compulsoriamente graças aos vereditos de Radamanto. Dessa forma, sua alienação novamente reúne dois aspectos distintos: o quase teológico da contemplação, que confere a aura benjaminiana ao próprio ato de pensar, aliado aos fins da distração. A distração, aliás, é bem ilustrada pela própria reprodutibilidade técnica que perpassa o livro: o alumbramento com o cinema, para onde Castorp e Joachim levam Karen Karstedt; a encomenda de livros onde Castorp irá buscar as respostas para suas elevadas indagações; a compra pelo sanatório do toca-discos a que Castorp dedica horas de audição extasiada e solipsista. A personagem é antes de tudo curiosa, cultiva seu espírito a cada instante com ideias passageiras e fugazes, como pequenos e sucessivos choques aptos a produzir epifanias de resultados no máximo modestos. E isso era o que tinha em comum com os demais habitantes do Berghof, acometidos do Grande Tédio que refletia a Belle Époque do início do século passado. É por isso que os moradores ali também se dedicavam a distrações, como o diletantismo fotográfico (o que lembra a indiferenciação apontada por Benjamin entre público e artista na era da reprodutibilidade técnica, onde todo mundo tem o que falar e o que mostrar, desde que adstritos ao que possibilita as relações de propriedade), a filatelia, a experimentação de chocolates e outros modismos.

Uma das distrações a que se lançou Castorp no correr de sua Bildung foi a prestação de apoio espiritual aos moribundos. Não é à toa que sua maior atividade política tenha sido efetivamente a caridade: atividade que ao se voltar para os sintomas não chega às causas (embora não fosse de se esperar que ele descobrisse a cura para a tuberculose) e dá a agradável sensação de participação que, paradoxalmente, acentua a alienação da personagem. Essa atividade guarda estreita relação com o esteticismo da especulação castorpiana sobre a vida e a morte. Settembrini o alertara contra isso, mas Castorp acaba por estetizar a morte como um elemento que confere aura, dignidade e autoridade ao moribundo. Passa assim a apreciá-la sem que isso signifique algo como o ser-para-a-morte heideggariano, que confronta o ser com a suprema possibilidade de sua própria impossibilidade e o constrange a tomar a responsabilidade pela própria vida.

Como mostra Van Meter Ames,

O ato de teorizar está afastado da prática durante o lazer temporalmente indefinido da doença. Nenhum industrial ou trabalhador aparece. O mundo social, econômico e político é abandonado, exceto quando o sanatório suíço se enche de seus sintomas. [...] No pensamento e nas conversas do lugar não apenas a pesquisa psicanalítica e psicológica, mas toda a ciência, se obscurece numa especulação intoxicante para além da ciência. A classificação e a rotulação de espécimes botânicos por Hans Castorp se associa a ideias estranhas. A astronomia logo o leva ao mundo da lua[7], e, é claro, da patologia. Terapias e toxicologia, remédio e veneno, são jogados de um lado para outro até parecer não haver diferença entre bem e mal, vida e morte.[8]

Essa especulação anódina de Hans Castorp é fruto exatamente da irresponsabilidade estetizante de sua postura frente ao ato de pensar. Para ele, pensar é lidar apenas com abstrações, é um fim em si mesmo, é a sua arte pela arte. É justamente por isso que a personagem fica em uma posição ridícula quando percebe o inevitável duelo que colocará frente a frente Settembrini e Naphta, numa situação em que o embate ideológico não se resolverá senão pela eliminação física do oponente.

- Com razão, com razão! Ele ofendeu o senhor com isso [diz Castorp a Settembrini, quando o duelo havia sido convocado]. Mas não o insultou. está a diferença, permita-me que o diga! Trata-se de coisas abstratas, espirituais. Com coisas espirituais pode-se ofender, mas não insultar uma pessoa. Esse é um axioma que todos os tribunais de honra aceitariam, posso lhe garantir. E pelo mesmo motivo nãotampouco um insulto naquela resposta do senhor, em que falou de ‘infâmia’ e de ‘castigar devidamente’, que também esses termos estavam sendo empregados em sentido espiritual. Tudo se mantinha na esfera espiritual e nada tinha que ver com a esfera pessoal. O espiritual nunca pode ser pessoal; este é o complemento e a interpretação do axioma, e por isso... (p. 935)

Não nos interessa especificamente o grave fato de se resolver uma disputa ideológica pela eliminação do outro. Isso é reflexo da própria iminência da guerra, é a Grande Irritação que a antecede e que também acomete Castorp. O que por ora é mais relevante é justamente a surpresa da personagem de que as coisas abstratas, espirituais, possam ter efeitos reais. Castorp não compreende que não se pode pensar sem responsabilidade, não se pode simplesmente abandonar ao pensamento como atividade lúdica e de mera elevação estética. As coisas acontecem no mundo. Thomas Mann antecede o ensaio de Benjamin ao mostrar os perigos da alienação sob o refúgio da aura artística e espiritual. Pois uma coisa é a aura antes da era da reprodutibilidade técnica, ligada intimamente ao ritual, que, por sua vez, era ligado a alguma função social. Outra, completamente diversa, é essa aura fabricada na forma da apreciação estética desvinculada do mundo da vida e dos negócios humanos, antissocial, que se rebela em nome da ascese disciplinada do espírito em busca da forma perfeita e livre de contingência no ócio (Castorp e Aschembach em Veneza) ou na produção obcecada (Aschembach antes da viagem). A esse luxo de abandono à irresponsabilidade, luxo que não cabe a massa (que se aliena por disposições que lhe são alheias, como as relações de propriedade), não corresponde o direito de ser inocente. A pseudociência de Castorp o embriaga como fosse o seu Tadzio, e permite que a guerra vá se engendrando à revelia de sua percepção e, por conseguinte, da possibilidade de ação que tem todos os homens. Pega nosso protagonista, um dorminhoco alemão, como o chama o narrador, estupefato, vendo-se obrigado a voltar agora à vida. Ele que tanto a confundiu com a morte no seu alumbramento em meio às montanhas, tê-la-á de volta justamente quando ambas, vida e morte, se relacionam íntima e perigosamente.

Se a vida, uma vez mais, acolhia o seu pecaminoso filho enfermiço, não podia fazê-lo por um preço barato, mas somente dessa forma grave e severa, impondo-lhe uma prova que para ele, o pecador, talvez não significasse a vida, mas justamente nesse caso extremo equivaleria a três salvas fúnebres. E assim Hans Castorp se pôs de joelhos, erguendo o rosto e as mãos ao céu, que estava sombrio, sulfurino, mas não era o teto da gruta da montanha dos pecados. (p. 951).



[1] BENJAMIN, Walter. A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica. Primeira versão. In: Idem. Magia e técnica, arte e política: obras escolhidas. Vol. 1. Trad.: Sergio Paulo Rouanet. 7 ed. São Paulo: Brasiliense, 1994; p. 196.

[2] Quando se percebe “um novo estado de coisas no qual a massa da população foi a tal ponto liberada do fardo de trabalho fisicamente extenuante que passou a dispor também de lazer de sobra para a ‘cultura’” (ARENDT, Hannah. A crise na cultura: sua importância social e política. In: Idem. Entre o passado e o futuro. Trad.: Mauro W. Barbosa. São Paulo: Perspectiva, 2005; p. 250). Vale lembrar que para Arendt, existia uma sociedade, mais restrita e excludente, antes da sociedade de massas, e esta é o fenômeno de incorporação de todos os estratos sociais ao que se chamava até então sociedade. Trata-se o que hoje chamaríamos de “boa sociedade”, a educada e cortês ou aquela com acesso às decisões econômicas, em oposição à toda a sociedade que conta também com a ralé.

[3] Como diz Roland Barthes, acerca de Chaplin: “Historicamente, Chaplin [em Tempos Modernos] retrata mais ou menos o operário da Restauração, o movimento revoltado contra a máquina, desamparado pela greve, fascinado pelo problema do pão (no sentido próprio do termo), mas ainda incapaz de alcançar o conhecimento das causas políticas e a exigência de uma estratégia coletiva.” [« Historiquement, Charlot recouvre à peu près l’ouvrier de la Restauration, le manoeuvre révolté contre la machine, désemparé par la grève, fasciné par le problème du pain (au sens propre du mot), mais encore incapable d’accéder à la conaissance des causes politiques et à l’exigence d’une stragégie collective »], em BARTHES, Roland. Le pauvre et le prolétaire. In : Idem. Mythologies. Paris : Éditions du Seuil, 1957, p. 39.

[4] As citações d’A Morte em Veneza vem da seguinte edição: MANN, Thomas. Tonio Kroeger e A morte em Veneza. Trad.: Maria Deling. São Paulo: Abril Cultural; 1971.

[5] É o que consta da tradução, embora essesanável’ soe estranho.

[6] As citações d’A Montanha Mágica provém desta edição: MANN, Thomas. A montanha mágica. Trad.: Herbert Caro. Rio de Janeiro: Nova Fronteira; 2006.

[7] Tentativa infeliz de manter o jogo de palavras em “Astronomy easily leads astray”.

[8] “ Theorizing is cut off from practice in the timeless leisure of the sick. No industrialist or worker appears. The social, economic and political world is left out, except as the Swiss sanatorium is filled with its symptoms. […] In the thoughts and talk of the place, not only psychoanalysis and psychical research but all science shades into intoxicating speculantion beyond science. Hans Castorp’s ordering and labeling of botanical specimens is associated with weird ideas. Astronomy easily leads astray, and of course pathology. Therapeutics and toxicology, medicine and poison, are bandied back and forth until there seems to be no difference between good and evil, life and death.” (AMES, Van Meter. The humanism of Thomas Mann. The journal of aesthetics and art criticism. Vol. 10, No 3, mar, 1952, pp. 247-257; disponível em , acesso em 30 out 2009.)