sábado, junho 26, 2010

Pensar a tradução com Schleiermacher, Berman e Venuti




 Para estabelecer o que Schleiermacher, Berman e Venuti tem em comum no que tem a falar sobre tradução e no que representam uma linha mais ou menos partilhada de ruptura com uma visão, digamos, tradicional da tradução, comecemos com Meschonnic: “Par quoi l’étranger n’est pás seulement l’autre, il est aussi l’invisible, l’effaçable effacé. La traduction, dans sa pratique commune, est aussi une effaçante de l’étranger”[1].
                Guardemos aquilo que Meschonnic chama de prática comum da tradução. Mais adiante, no mesmo texto (p. 93), dirá o ensaísta: “Penser, c’est penser l’étranger”. Ora, se a prática comum da tradução procede com um apagamento do estrangeiro e pensar é justamente pensar o estrangeiro, isto é, o que não é familiar, diríamos que Meschonnic atribui à tradução, na sua visão comum, a realização de uma atividade irrefletida, ou que pelo menos parte de um pressuposto não colocado em questão.
                É nesse ponto que os três autores com que trabalhamos confluem. Todos eles propõem um pensar a tradução, não na tradução, conforme a regência mais comum do verbo. Ora, ao tornar direto o objeto do verbo pensar, que normalmente seria indireto, opera-se uma modificação no modo de pensar: quando se pensa na tradução, pensa-se já submerso na consideração comum dessa prática, a de uma “prática puramente intuitiva – meio técnica, meio literária -, não exigindo no fundo nenhuma teoria, nenhuma reflexão específicas”[2]. Ou ainda, como também mostra Berman, submerso na consideração externa à própria prática tradutória, é dizer, ligada a uma teoria linguística ou literária ou crítica. Assim, de novo com Meschonnic, e também com Heidegger, pensar a tradução é perseguir os fundamentos da própria tradução, o que antecede ao já-sabido da tradução: colocá-la em xeque. Em última instância: torná-la estrangeira.
                Esse pensamento é, digamos novamente, comum aos três, em maior ou menor grau. É preciso lembrar, no entanto, que Schleiermacher fala a partir de um período prepositivista, em que o conhecimento e a pesquisa do sujeito universal romântico não exigiam a partição rigorosa dos saberes. Não se exige aí, como Berman procura fazer para a tradução, embora de uma perspectiva interdisciplinar, uma teoria específica da tradução; tanto é que sua reflexão específica se concentra no curto ensaio Sobre os diferentes métodos de traduzir[3]. Schleiermacher reflete sobre a tradução conforme um saber difundido entre os românticos, pelo menos desde Herder e principalmente com Humboldt, sobre o funcionamento da língua na relação entre o sujeito e o espírito histórico. O paradigma de que parte Berman é o próprio dos românticos alemães, mediado principalmente por Benjamin e por Heidegger, em que essa relação é novamente trazida à baila. Por fim, um pouco distanciado dessa linha de continuidade, Venuti[4] põe-se a pensar a tradução sob uma perspectiva ideológica, conforme apreendida de Marx e Althusser. Porém, essa descontinuidade entre Venuti e os demais é aparente: se pensarmos a ideologia como aquilo que subrepticiamente determina a linguagem conforme os arranjos sociais de dominação de classe, nos termos de Volochínov[5], ou ainda como a própria organização da linguagem, não estaremos longe de Schleiermacher e Berman. Isso porque ambos consideram que o arranjo linguístico que herdamos determinam, até certo ponto e tal qual a ideologia, nossa forma de lidar com o mundo – ou seja, o modo como estamos lançados ao mundo, em termos heideggarianos. Diz Schleiermacher: “[...]cada homem está sob o poder da língua que ele fala; ele e seu pensamento são produtos dela. Ele não pode pensar com total determinação nada que esteja fora dos limites da sua língua” (p. 238). Nesse sentido também é que o arranjo, o conjunto, l’essemble de Berman, importam sobremaneira ao conteúdo, ao falar, de modo que cada palavra conta em relação à outra no discurso interno de uma língua ou de um contexto sociolingüístico. Assim é que lemos em Berman: “On ne peut pas dire 'autrement' dans une même langue, parce que dans tous les domaines essentiels de la parole et de l’écrit, comme le dit la langue commune, chaque mot 'compte'; ou 'porte'(pp. 65-66), e, citando Lacan, arremata: “Tout symbole linguistique aisément isole est non seulement solidaire de l’ensemble, mais se recoupe et se constitue par toute une série d’affluences, de surdéterminations oppositionnelles qui le constituent à la fois dans plusieurs registres”[6] (p. 66).
                Ora, se os três levam em conta essa ligação íntima do sujeito que enuncia e o espírito da língua em que enuncia, obviamente isso tem consequências enormes para a tradução. Porque a tradução irá, necessariamente, romper essa ligação íntima ao verter o enunciado para um espaço linguístico, digamos assim, ao qual não pertencia originariamente. Aqui, pensar a tradução no sentido de tornar a tradução não familiar, ou seja, estrangeira, ganha um segundo peso: penser l’étranger. Não só a tradução como algo estrangeiro, mas como o que lida com o estrangeiro na forma do discurso. Quem formaliza melhor essa noção é Berman, ao defender a visada ética da tradução: “a essência da tradução é ser abertura, diálogo, mestiçagem, descentralização. Ela é relação, ou não é nada”[7]
                Essa tripla relação, a do autor com sua própria língua, a do tradutor com a sua e a do tradutor com o autor e a língua estrangeira, sempre nos níveis ideológicos de determinação do discurso, evidencia, para Venuti, que o tradutor não é invisível, como a prática irrefletida presume. Pelo contrário, estando os determinantes externos do texto inscritos em sua materialidade, o tradutor investe sua força produtiva, sua mão-de-obra, na transformação de uma matéria-prima, o texto original, e nesse investimento dota o produto do seu trabalho com a própria ideologia em que está submerso, não em estado puro, é claro, eis que o contato com o outro já pressupõe alguma mudança.
                Tendo cientes essas camadas de funcionamento da produção textual – tanto do texto original quanto do texto traduzido – é possível retomar a prática da tradução sob uma nova perspectiva. Essa perspectiva, que é uma perspectiva ética, é a que toma consciência do outro em sua alteridade e que procura deixá-lo aberto na tradução. Ou seja, não apagá-lo na prática assim denominada comum. É por isso que, num exercício mais rigoroso que se opõe ao da mera interpretação, Schleiermacher propõe, sob uma fórmula que ficou célebre, levar o leitor ao autor, sem procurar apagar o que é estranho, mesmo na tradução: eis que, mesmo sendo tradução, o leitor deve ter a consciência de que o texto é estrangeiro e diz respeito a um contexto estranho ao seu.
                É certo que essa proposta emperrará não poucas vezes em inúmeros impasses. Como mostrou Berman, o conjunto e a letra – a materialidade do texto – são também expressivos e determinantes do sentido. O que é preciso evitar, contudo, é a tendência planificadora, clareadora e embelezadora da tradução, para que não se perca de vista a particularidade da manifestação discursiva do autor. Inda mais no que toca à tradução literária, onde a forma tem tanta relevância quanto o conteúdo, se é que uma e outro são em algum sentido separáveis em tal tipo de composição. A essa tentativa de clarear o texto original para uma compreensibilidade mais acessível na tradução – a que Venuti chama de fluência e Berman de tradução etnocêntrica, hipertextual e platonizante (é dizer, uma tradução que planifica os acidentes do original para fazer brilhar o sentido, que, em última análise, é sempre uma interpretação dentre os sentidos possíveis) – Berman propõe[8] uma tradução ética, poética e pensante; que se vale tanto da reflexão sobre o próprio processo tradutório e de composição do texto original (tradução como crítica), como da experiência da obra e da língua, ou, em última análise, do outro. Essa experiência, que em outra oportunidade é chamada, graças ao fazer tradutório dos romanos, de translatio[9],  é de teor heideggariano, como cita Berman:

Fazer uma experiência com o que quer que seja (...) isso quer dizer: deixá-lo vir sobre nós, que nos atinja, que nos caia em cima, nos deite ao chão e nos transforme noutro. Nesta expressão “fazer” não significa precisamente que somos os operadores da experiência, “fazer” quer dizer aqui, tal como na locução “faire une maladie”, passar por, sofrer de uma ponta à outra, agüentar, acolher aquilo que nos atinge submetendo-nos a ele...[10]
           
          É nessa experiência do outro que reside a prática, não mais comum, mas refletida e ética, da tradução. E é na manutenção dessa experiência no produto de sua transformação que reside o sucesso do tradutor. Assim também o da crítica da tradução, que saberá recuperar os processos ideológicos que governaram autor e tradutor, descobrindo o um e o outro, sempre em relação. Pois, para terminar como começamos, citando Meschonnic, deve-se “Montrer que l’identité n’advient que par l’alterité” (p. 93).


[1] MESCHONNIC, Henry. Pour sortir du postmoderne. Paris: Klincksiek; 2009; p. 89.
[2] BERMAN, Antoine. A tradução em manifesto. In: Idem. A prova do estrangeiro. Cultura e tradução na Alemanha romântica. Trad.: Maria Emília Pereira Chanut. Bauru: EDUSC, 2002; p. 11.
[3] SCHLEIERMACHER, Friedrich E. D. Sobre os diferentes métodos de traduzir. Trad.: Celso Braida. Princípios. Natal, v. 14, n. 21, jan/jun, 2007; p. 233-265.
[4] VENUTI, Lawrence. A invisibilidade do tradutor. Trad.: Carolina Alfaro. Palavra, Rio de Janeiro, n. 3, 1995, pp. 111-134.
[5] BAKHTIN, M; VOLOCHÍNOV, V. N. Marxismo e filosofia da linguagem. 2ª Ed. São Paulo: Hucitec, 1981.
[6] BERMAN, Antoine. L’essence platonicienne de la traduction. In: Ladmiral, Jean-René (org.). Revue d’esthétique (nouvelle série), n. 12 (1986). Toulouse: Éditions Privat, 1987; pp. 63-73.
[7] BERMAN, Antoine. A tradução em manifesto. (...); p. 17.
[8] BERMAN, Antoine. A tradução e a letra ou a pousada do longínquo. In: JORGE, Guilhermina (coord.). Tradutor dilacerado. Reflexões de autores franceses contemporâneos sobre tradução. Lisboa: Edições Colibri; 1997; pp. 15-63.
[9] Idem. Pour une critique des traductions: John Donne. Paris: Gallimard; 1995.
[10] Apud BERMAN, Antoine. A tradução e a letra...; p. 18.

domingo, junho 20, 2010

Hospital

cheiro de homem químico
cala a tudo
(gemido é silêncio
de humanidade)

- ser homem de novo, desnudar-se
de morte: essa máscara armada
com o sopro de um sopro íntimo:

um horizonte onde tudo lembra o fim -

no hospital
dormem até noites
e dias
despertam quando?

terça-feira, junho 15, 2010

O discurso poético de Heráclito

Trecho da redação de minha iniciação científica, intitulada "O discurso poético na filosofia pré-socrática". Importa marcar que o texto se insere numa discussão maior, ancorada lá mas não aqui, que situa a tradição poética da antiguidade na oralidade e na necessidade de memorização. Por isso, o que se lerá abaixo vinculará Heráclito à poesia principalmente no que concerne a esses elementos, já não tão indispensáveis para a poesia moderna e contemporânea.


Da vida de Heráclito de Éfeso pouco se sabe. Importa situá-lo, na história da filosofia, entre Xenófanes, a quem se refere, e Parmênides, por quem é referido. Teria florescido, de acordo com Diógenes Laércio, provavelmente baseado em Apolodoro, conforme nota Burnet, na Olimpíada XIX, isto é, por volta dos anos 504 a 500 a. C. Burnet diz também que Heráclito teria pertencido à antiga casa real de Éfeso e que renunciou em favor do irmão a sucessão ao título de basileu.
            Legou-nos uma obra fragmentária e sob a forma de aforismos, que abordam questões sobre o universo, a política e a teologia, conforme seus comentadores estóicos. Dada a forma do primeiro fragmento, que se assemelha, diz-nos Schüler [2007], a uma introdução, infere-se que teria escrito um livro. Ficou conhecido pelo epíteto de “ σκοτεινς”, o obscuro, graças ao seu estilo hermético. Estilo materializado num texto de caráter oracular, do qual ele tinha perfeita consciência, de acordo com o que lemos no fragmento 93DK:

ὁ ἄναξ, οὗ τὸ μαντεῖόν ἐστι τὸ ἐν Δελφοῖς, οὔτε λέγει οὔτε κρύπτει ἀλλὰ σημαίνει.
(O senhor a que pertence o oráculo de Delfos nem diz nem oculta mas assinala/ indica/acena/significa).

            Esse fragmento é central para a ideia esboçada nesse trabalho. Num primeiro momento, vemos que Heráclito não escreve em versos, mas em prosa. Entretanto, o hermetismo oracular não deixa dúvidas quanto ao encantamento provocado pelo discurso obscuro de Heráclito. Sendo prosa, é certo que Heráclito não deixa de ser poético, característica que lhe apõe a Suda: “ἔγραψε πολλὰ ποιητικῶς”[1] [MOST, 1999; 357]. Isso é verdade também para a leitura contemporânea, em que o poético não se sustenta somente no verso, sendo já para nós abundante as manifestações da prosa poética. Além disso, a dificuldade de lidar com o texto heraclítico advém da hesitação de se estabelecer sua significação. Não é para menos: a riqueza da poesia está justamente na sobreposição de várias camadas de significação possível, e nunca única, que vão aparecendo a cada nova exploração de cada fragmento. Por isso a centralidade do fragmento acima: Heráclito não discorre, não escreve tratados. Ele mostra para aquele que pode escutá-lo. Mostrar, não dizer, este é o procedimento do mito exemplar que abunda os versos de Homero e Hesíodo. Entretanto, à diferença dos poetas, Heráclito quer explorar o novo, renovar o já sabido rumo ao futuro incerto. Aí é que a clareza da poesia se torna o obscuro da sua tentativa de desvendar o logos:

Heráclito perscruta a passagem da autoridade de Zeus à autoridade de Apolo. Zeus foi o deus da epopeia, tinha a Memória como esposa, falava com autoridade na voz das musas. Essa época passou. Semideuses como os heróis da epopeia já não atraem admiridores. O homem sai da segurança que lhe oferecia o passado e se lança às incertezas do futuro. O prestígio de Apolo avança. O deus dos novos tempos é ele. O passado era claro, o futuro é obscuro. Muda a linguagem. Apolo não fala do que passou, aponta para o que há de vir. Ordens são desalojadas por acenos. Apolo fala a linguagem dos novos tempos. Heráclito segue-lhe os passos. [SCHÜLER, 2007; p. 39].

            Ainda no que toca ao estilo oracular, Burnet diz que era o estilo de época – ou seja, Heráclito se conforma ao discurso tradicional:

Os turbulentos acontecimentos do período e a revivescência religiosa davam um certo tom profético a todos os pensadores mais destacados, também encontrado em Píndaro e Ésquilo. Tratou-se igualmente de uma época de grandes individualidades, que tendem a ser solitárias e desdenhosas. Heráclito, pelo menos, o era. [BURNET, 2006; 152].

            O estilo oracular e aforismático marca, portanto, duas características que são fundamentais da palavra poética: o da reflexão e o da concentração. As frases curtas conferem-lhe uma autonomia plena e uma harmonia secreta, no dizer de Havelock. Exigem do leitor o desfolhamento de camadas sucessivas de significação, do mais concreto ao mais abstrato, isto é, uma análise, no mais evidente proceder de um crítico literário, rumo, portanto, à harmonia invisível, que o próprio Heráclito, no fragmento 54DK, diz ser mais bela que a visível.
            No que toca a esses níveis ocultos, Cornford, que aproxima o poeta e o vidente, o primeiro como aquele que, ao ter contato com a divindade, fala dos feitos memoráveis do passado, o segundo como aquele que, também ouvindo o divino, fala do porvir, diz que o filósofo antigo é o herdeiro dessa tradição a quem a posição do sábio cabia ao poeta-vidente. Isso fica claro na mística pitagórica e mais ainda no discurso de Heráclito, que “expõe como as coisas são no seu logos; mas os homens não podem entender o seu significado, tal como os não-iniciados não podem compreender o significado dos símbolos místicos e da linguagem ritual” [1981; 183].
            Ilustrativos dessa situação são os fragmentos 50 e 1DK:

οὐκ ἐμοῦ, ἀλλὰ τοῦ λόγου ἀκούσαντας ὁμολογεῖν σοφόν ἐστιν ἓν πάντα εἶναι
(Não a mim, mas ao logos escutando, é sábio concordar tudo ser um).
τοῦ δὲ λόγου τοῦδ' ἐόντος ἀεὶ ἀξύνετοι γίνονται ἄνθρωποι καὶ πρόσθεν ἢ ἀκοῦσαι καὶ ἀκούσαντες τὸ πρῶτον· γινομένων γὰρ πάντων κατὰ τὸν λόγον τόνδε ἀπείροισιν ἐοίκασι, πειρώμενοι καὶ ἐπέων καὶ ἔργων τοιούτων, ὁκοίων ἐγὼ διηγεῦμαι κατὰ φύσιν διαιρέων ἕκαστον καὶ φράζων ὅκως ἔχει. τοὺς δὲ ἄλλους ἀνθρώπους λανθάνει ὁκόσα ἐγερθέντες ποιοῦσιν, ὅκωσπερ ὁκόσα εὕδοντες ἐπιλανθάνοντα.
(Sendo sempre este o logos, os homens mostram não compreender tanto antes de escutar quanto depois de tê-lo escutado. Pois mesmo que todas as coisas se façam conforme este logos, eles parecem inexperientes experimentando de tais palavras e obras com as quais eu descrevo, discernindo e mostrando, de acordo com a natureza, cada coisa como é. Mas escapa aos homens tudo quanto fazem acordados, como fossem tudo quanto esquecem ao dormir).

            Sobre esses fragmentos, Cornford diz que “quando ele diz aos leitores que escutem não a ele mas ao logos é óbvio que ‘o logos’ representa um pouco mais do que o meu discurso. Representa a ‘verdade’ que o discurso dele exprime” [p. 183]. Interessa notar, além disso, uma sutileza dessa verdade. Heráclito se coloca como alguém que consegue vislumbrá-la, ele é quem pode escutar o logos e experimentá-lo em sua plenitude. Há um suave eco aqui daquele antigo contato do poeta com as Musas, as verdadeiras fontes da palavra recitada. O filósofo é tal qual o poeta: veículo do que falam o logos ou as Musas; e nesses dispositivos do discurso ancoram sua pretensão à verdade. Encontramos uma ligeira ressonância dessa interpretação também em Burnet. Segundo ele, quando, no Sofista (242d), Platão coloca um estrangeiro de Eleia dizer que certas Musas da Jônia estabelecem a unidade do múltiplo, lê-se aí que tais Musas representariam Heráclito.
            Esse vínculo de Heráclito com uma nova fonte da verdade desloca-o do que diziam os poetas, ainda que mantenha essa relação estrutural daquele que veicula o dito superior. Há ainda uma ligação do filósofo com os poetas no que concerne à oralidade da transmissão de sabedoria. Destaquemos a presença nos fragmentos acima a presença do verbo κούω (escutar), bem como nos fragmentos seguintes (19, 34 e 108DK) :

ἀκοῦσαι οὐκ ἐπιστάμενοι οὐδ' εἰπεῖν.
(Eles, não sabendo escutar nem falar.)
ἀξύνετοι ἀκούσαντες κωφοῖσιν ἐοίκασι· φάτις αὐτοῖσιν μαρτυρεῖ παρεόντας ἀπεῖναι.
(Ignorantes, tendo escutado parecem surdos. Sua voz evidencia ausentarem-se os que estão presentes.)
ὁκόσων λόγους ἤκουσα, οὐδεὶς ἀφικνεῖται ἐς τοῦτο, ὥστε γινώσκειν ὅτι σοφόν ἐστι πάντων κεχωρισμένον.
(De quantos escutei os λόγοι, nenhum chegou a isso, de modo a reconhecer que sábio é aquilo que foi separado de tudo.)


            Heráclito mostra aqui não só que se insere num contexto em que a oralidade ainda é o meio em que ocorre a transmissão e a discussão de ideias, donde o escutar e o falar ganham tamanha importância, como também faz lembrar, para o caso de escutar o logos nos fragmentos 1 e 50DK, os verbos νέπω (dizer, contar) e είδω (cantar) utilizados por Homero na invocação à Musa no primeiro verso da Odisseia e da Ilíada. O poeta, aqui, se coloca como aquele que escuta, e escuta para saber falar, na mesma relação estabelecida por Heráclito no fragmento 19 acima. Disso se pode presumir que, mais que ser lido, Heráclito busca ser reproduzido no falar e no escutar, e para isso vem a calhar seu estilo aforístico, de frases curtas, com um ritmo e uma imagética toda própria, que busca ecoar, num efeito retardado, diz Havelock, na mente do ouvinte que trabalhará as frases no modo da reflexão, para lhes desvelar a harmonia invisível.
            À concentração do estilo, somam-se recursos tipicamente poéticos, como a repetição, assonância, antítese, simetria, além de metáforas e jogos de palavras. A imagem mais célebre, a do rio que flui como símile da eterna mudança do ser, dos fragmentos 49a e 91DK, é o exemplo mais eloquente do fazer poético de Heráclito. Somaríamos outros, como a comparação do tempo com uma criança brincando (52DK), o mais belo dos homens comparado a um macaco perto de deus (83DK), a guerra como pai de todas as coisas, o que lembra a própria Teogonia (53DK), etc. Particularmente, na dialética heraclítica que procura estabelecer a harmonia dos contrários, o jogo de palavras do seguinte fragmento (48DK) parece ser o mais interessante:

τῶι οὖν τόξωι ὄνομα βίος, ἔργον δὲ θάνατος.
(Ao arco o nome é vida, mas a obra é morte.)

            O fragmento é belíssimo, de um nível poético invulgar. Sem nenhum verbo, embora a tradução precise se valer do verbo de ligação, Heráclito opõe aqui com uma fina manipulação do signo linguístico vida e morte como opostos de um mesmo objeto, isto é, harmonizados na diferença, copertencentes um ao outro. Pois, considerando que a escrita, em seu tempo, não utilizava diacríticos, Heráclito estabelece um jogo de palavras entre βίος (vida) e βιός (arco, sinônimo de τόξον), que, na pronúncia, diferem somente na posição da tônica, ligadas entre si pelo nome, pela linguagem. Ambas opõem-se à palavra θάνατος (morte), que, por sua vez, também se liga ao arco na medida em que este é uma arma de guerra, ou seja, é feito para matar. Eis que nesse ponto, Heráclito faz andar a tradição, e começa a mostrar como a escrita também pode ser relevante ao pensamento. A brincadeira linguística, presente nos poetas desde sempre, como, por exemplo, nas aglutinações dos epítetos homéricos, é onde a poesia encontra sua realização mais plena, pois é o lugar em que a linguagem se mostra em impasse, deslocada do seu uso comum e banalizado, lutando para superar-se e ir além de si mesma. Isso também é o que vê Havelock na leitura de Heráclito, ao dizer que:

De um total de 130 ditos, não menos que 44% ou 34% mostram preocupação com a necessidade de encontrar uma linguagem nova e melhor, ou um modo de experiência novo e mais correto; ou revelam obsessão com a rejeição de métodos correntes de comunicação e a recusa de formas de experiência correntes. [1996; 256, 257].

            Com isso, ele observa que:

Os aforismos de Heráclito foram moldados para memorização oral. É certo; mas, ao escolher o aforismo em vez do hexâmetro, ele, estilisticamente, abre novo espaço como pensador, e rejeita o papel mais fácil dos que continuaram a valer-se do metro e da expressão dos bardos. [...] O aforismo tem, evidentemente, uma ascendência popular tão antiga quanto o hexâmetro; e, como antes se notou, emprega formas características, ritmos próprios. De qualquer modo, empregá-lo era romper com o fluxo fácil e (é-se tentado a dizer) impensado, do encantamento métrico e musical do bardo. Em particular, como também já foi assinalado, isso significou o descarte do acompanhamento de um instrumento musical. Significou tentar uma exposição em estilo mais rijo e mais desafiador. Logo, sugiro eu, Heráclito foi quem forneceu o protótipo e a origem ancestral da primeira prosa filosófica. [1996; 257].

            Seria nessa tentativa de fazer emergir uma nova linguagem, a prosa filosófica, que Havelock localiza o conceito de logos de Heráclito: uma linguagem que pensa a si mesma e que se problematiza. Entretanto, é preciso observar que Heráclito ainda não representa a prosa filosófica em seu nível mais realizado. Ele não escreveu um tratado prolixo e detalhado, nem em uma linguagem fria e purificada de qualquer tipo de encantamento. Pelo contrário, ele se encontra num tênue equilíbrio entre poesia e prosa, não mais uma e não ainda outra, o que é dizer que sua situação é das mais privilegiadas na história do pensamento. É daqueles raros momentos em que a tradição se põe no mais frutífero passo da ruptura que não representa um niilismo indiferente com aquilo que supera, mas uma crise que se refere a todo tempo ao passado e o atualiza sem necessariamente jogá-lo no lixo. Parece-me que não faria sentido ouvir o logos se já não tivesse havido aquele que outrora dispôs-se a ouvir a Musa.


[1] “Escreveu muitas coisas poeticamente.”

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BURNET, J. A aurora da filosofia grega. Trad.: Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Contraponto; PUC-Rio; 2006.

CORNFORD, F. M. Principium sapientiae: as origens do pensamento filosófico grego. 2 ed. Trad.: Maria Manuela Rocheta dos Santos. Lisboa: Calouste Gulbekian, 1981.


HAVELOCK, E. A. A revolução da escrita na Grécia e suas consequências culturais. Trad.: Ordep José Serra. São Paulo: UNESP; Rio de Janeiro: Paz e Terra; 1996.

MOST, G. W. The poetics of early Greek philosophy. In: LONG, A. A. (org.). The Cambridge companion to early Greek philosophy. Cambridge: Cambridge University; 1999.

SCHÜLER, D. Heráclito e seu (dis)curso. Porto Alegre: L&PM, 2007.