segunda-feira, julho 31, 2006

Textos inacabados e inacabáveis

Narciso, a que miras?
Joaquim, por que choras?
Guilherme, o que queres?

Bebidas?
Jogos?
Mulheres?

Livrar-te do mundo
Não podes.
Além do teu corpo
Não vais.
Ser algum outro
Jamais.

Narciso, pra quem vives?
Joaquim, onde vives?
Guilherme, vives?

Sim. No interior, pro pai.

Não não vives no interior
A não ser de ti.
Não não vives pro pai
Ele vive pra ti.
Não não vives

Se da morte retiras teu pão
E do pão à morte voltas.


***************

Amnésia. Pura amnésia e Jorge Prata não sabia
mais como a cidade funcionava. Pervagante em pedras
e cacos do mundo ligados entre si pelo cimento;
o sinal revelava-se verde quando então ele queria
andar, mas avermelhava-se todo o tempo em que
parava junto com os mil carros que por aqui passam
diariamente. Jorge Prata ouvia sons de batucadas
rivalizando com comícios e macacos me mordam
se não era ele um primata primitivo tentando absorver
tantos elementos que não se traduzem nas primeiras
percepções. E quando tinha já muito andado finalmente
compreendeu o que era aquilo quilômetros atrás, mas
andava em ruas completamente novas das de quilômetros
atrás e tinha que de novo compreender o mundo todo.
Jorge Prata era um só contra todos, sem guias, e não se
sabe por quê, já que Jorge Prata vive na cidade há tanto tempo.
Pode ter sido o que ele comeu, a sua barriga pesada,
enquanto todo mundo era uma pluma de leve e fluía
com muito mais naturalidade por esquinas e meio-fios.
Ah, Jorge Prata, que foi que lhe aconteceu? Jorge Prata
divisando finalmente nuvens, que entretanto sempre estiveram
ali sobre a cidade. Um ou dois ossos quebrados,
um pequeno riacho de plasma e hemácias que vertia
de sua boca. Jorge Prata foi atropelado e na posição
em que ficou pôde ver o céu. Nunca correu o perigo
mas por Deus que a cidade estava incrivelmente
estranha e por isso Jorge Prata vê-se agora vendo
nuvens enquanto as aglomerações ininteligíveis
chamam os anjos das sirenes que farão, enfim,
aquela maldita canção de campanha política ficar quieta
ou não se fazer ouvir.

domingo, julho 23, 2006

Penso e passo
e posso prever:

morro e nasço
com o tempo.

Parte frágil,
pensamento;

fácil parte,
corpo puro.

Nasço e morro
com o vento.

Simples sopro
e corpo duro.

sábado, julho 22, 2006

O homem que não existe

O homem não é homem
É um número
No mais das vezes, preocupação
De vez em quando, orgulho

O homem não é homem
É uma massa
Não é uma pessoa
É um sexo, uma raça

O homem não é homem
Não sente, não chora
O homem é dinheiro
Se não: “vá embora!”

O homem não é homem
É uma ilha
Isolado de tudo, de todos
Do pai, da mãe, da filha

O homem não é homem
É uma seqüência de genes
Quase um macaco, um rato!
É vagina, é bunda, é pênis

O homem não existe
Porque não sabe mais
O que o homem é:
Ele mesmo ou um outro eu

sexta-feira, julho 07, 2006

Verdal

A noite cobria os céus com seu negro manto, e lá do alto os seus milhões de furinhos proporcionavam ainda sutis visões da dourada luz, a que se chamavam estrelas. A majestosa Lua, a bela bola que anda por sobre os homens e finge lutar contra a noite, quando em verdade é esta que lhe dá o sentido da existência, está lá plenamente, com todos os seus mais imperceptíveis detalhes; enfatuada, intimorata, toda-prosa, fazendo do firmamento uma feliz e agradável platéia para os beijos melífluos e cálidos dos jovens incautos pelas rubescentes paixões. Era a tarde que se despedia rubra, deitando no horizonte seu pomo de fogo, trazendo com sua ida os doces cantos da cigarra e o fresco ar do crepúsculo, que agitava os alegres cachos de Dandara. Era uma canção de ninar aos puros aquele manto negro dos céus; era uma bebida afrodisíaca às brilhantes espáduas mulatas da mulher de olhos aquilinos de predadora langorosa, de encantamento fácil, fortuito e fulminante aos diversos varões que se aventuram pelas trevas acolhedoras. Nada mais refletia a Lua tanto quanto aquelas negras íris de Dandara, que no negrume próprio do fim do ocaso se alia às estrelas e, como lanterninhas dos meninos caçadores de insetos, acende dois pontos de fogo, como um ardil da beleza contra os contempladores.

E nas vagas impressões da noite, quando toda imagem é um semblante fugaz que apenas se interpreta pela lembrança do que aquilo poderia ser durante o dia, Dandara sai da casa cantando com uma voz indefinível, de que ora se dizia rouquenha, ora um fluido som de flauta doce que enchiam os ouvidos de sonhos.

- Ô, boi, que há nesse canto de pasto?
Ô, boi, o que é que lá se perdeu?
-Foi a boiada que trouxe de arrasto
Meu amor que, pisoteado, aqui morreu.


E lá se ia Dandara alegre e cantadora espalhar seu perfume de jacintos pelo ar da Fazenda Santa Clara, onde era filha da cozinheira, cozinheira, e amante.

- Mas, boi, p’ra que chorar a tristeza?
Ô, boi, tem tanto amor no pasto pra ver!
- Amor como aquele, nem muita reza,
E nem pasto andado vai devolver.

A música que vibrava cada folha das aroeiras que margeavam o estreito caminho para o grande espelho do Lago de Santa Clara, lugar onde as estrelas do céu miravam-se e invejavam a própria imagem refletida, como milhares de pequenos Narcisos afogados, tinha uma toada bem tristonha. No entanto, mesmo que a melopéia inspirasse profunda melancolia, os dentes de Dandara anunciando-a, a música, aos ares abrilhantava e fazia contente todo o ser da pequena mata que escondia o lago.

Na orla daquela profunda poça d’água, sentou-se a mulata, as saboneteiras todas à vista. Com sua lanterninha de pilha, suas mãozinhas procuravam as avezinhas nas árvores todas, que fugiam da ofuscante luz com um revoar barulhento e tranqüilizante. Arriou sua saia leve de moça viçosa, sem anáguas, para molhar os pezinhos na água. Se houvesse luz, ver-se-ia a parte interna daquelas coxas tão lisas e ilesas, macias e convidativas como uma bandeja de morangos bem vermelhos embebidos no mais fino champanhe. E cada gotinha que escorria pelas suas pernas açucaradas, com uma nitidez irrevogável, percebeu a dimensão da sua sorte de ter nascido líquida, para percorrer cada pontinho daquela pele deliciosa, que se comportava como a melhor das anfitriãs.

Daquele triste canto, Dandara passou a assobiar uma alegre cantiga da sua infância. Começou a pensar no viril rapaz que vinha lhe convidar para passear na cidade e tomar sorvete, nos seus fortes braços e como lhe trazia segurança a maneira com que ele pegava em sua mão. Lamentou o tamanho de sua castidade, o que também era algo de bom e de único para um mancebo da sua idade perante uma simples empregada de fazenda. Talvez porque, afinal, ele não era tão rico assim. Sorriu ao pensar em seus hábitos gentis para com ela, na higidez do seu caráter e na bela camisa de excelente linho com que se apresentou da última vez, adotando as cautelas de estilo ao devidamente pedir autorização para Dona Cissa, sua mãe, para levá-la ao centro. E sorriu mais uma vez, e menos inibida, quando viu que ele respondeu à altura - um belo punho fechado de encontro ao nariz do maldizente - quando, pela sua refinada educação, lhe chamaram de maricas.

Os devaneios tão agradáveis em que mergulhou Dandara quase a fizeram esquecer o motivo de ela estar ali. De todo o modo, seu freqüente e intenso apetite, digamos, decorrente de sua sensualidade já congênita, logo se fez presente ao primeiro rumor de passos vindos do longe para a sua direção.

Não demorou muito, e aquele mesmo chapéu de sempre, de um couro branco meio de mal gosto, apareceu saltitante, ao que já seguiu a figura bem apessoada que o sustenta.

- Ah, já tá aqui, minha pretinha!