domingo, agosto 31, 2008

Peço desculpa... o sopro da inspiração...
Não é todo dia que a musa nos visita.
Boris Vian


Poderiam ao menos dar as caras para se darem a conhecer, estas vozes metafísicas da inspiração. Afirmaram existir, não? Pra mim que a Theá e as Mousas de Homero morreram naqueles tempos mágicos em que crucificados ressuscitavam; deram lugar ao Deus de duas caras e de três nomes, que ama e amedronta, com cruz e espada e flancos por demais abertos ao novo deus, a Razão e suas engrenagens de mundo, contra a qual se revoltou um Eros de tempestade e ímpeto, rejuvenescido sob o epíteto de Coração... O Coração morreu de morte cruenta, tal qual a cantava, e nada se pôs no lugar, se não a Realidade, soberba, ciosa e muito de mentirosa - muito de... nada. E nos pomos a poetar vasos gregos, pedras no caminho, a equívoca revolução dos erros dos homens, um cachorro latindo, um mendigo faminto, o cotidiano vulgar outrora insuspeito de esconder versos e versos outrora impossíveis de se prodigalizar nalguma coisa pouco seletiva chamada internet. Em que inspiração se finge e o mais fino trabalho que se pode almejar é uma boa imitação.

quinta-feira, agosto 21, 2008

Circunstâncias

Que ouse o insano
dizer que não és bonita.
Que ouse ele, ou o cego,
o idiota, o inumano.
Eu não. Que de mentiras
só sou dado às pequeninas.

***

Perguntas três, garota,
e três das que te ouço perguntar
melhor proveito fariam
ao surdo.

***

Doutor não sou;
gênio, jamais.
Sequer um nome
que sobreviva
aos séculos.

Mas quem a ti, Miguel,
os ouvidos dedica
e às palavras firmes
apõe o brilho de um 'bravo!'
concorre com feijões
uma vaga à raça
humana.

terça-feira, agosto 19, 2008

Anacreonte

Tradução minha do canto Para Cítara, do poeta grego Anacreonte (563-478 a.C.). A transliteração do grego é arbitrária, e a ela me obriguei porque o blogspot não tem fonte de letra grega.

EIS KITHARAN

Thélo légein Atréidas,
Thélo dè Kádmon áidein;
Ha bárbitos dè khordaîs
Érota moûnon ekheî.

Émeipsa neûra próen,
Kaì tèn lýren ápasan.
Kagó mèn êidon áthlous
Herakléous: lýre dè
Érotas antephónei.

Khároite loipòn hemîn
Héroes; he lýre gár
Mónous érotas áidei.
***
PARA CÍTARA

O Atrida quero cantar,
quero a Cadmo dar a loa;
mas o bárbito* que é teimoso
só amor na corda ecoa.

Há pouco troquei as cordas
e também a lira toda.
Mas se d’Héracles eu canto
as lutas, insiste a lira
e de novo o amor entoa.

Dos heróis, daqui p’ra frente,
me despeço: co’essa lira
só de amor se tira o verso.


*Bárbito é um instrumento semelhante à lira, mas com cordas mais compridas e de som mais grave.

segunda-feira, agosto 18, 2008

A verdade sobre os elevadores da Federal

Muito já se disse sobre os elevadores da Federal: que um acidente leva à morte uma pessoa a cada cinqüenta anos (razão essa que, como sói ocorrer com as lendas, varia de curso para curso); que há pessoas distraídas as quais, sem perceber que a entrada se abriu mas o elevador não veio, desapareceram em seu poço e delas não há mais notícias; que é grande o perigo de ser repentinamente esmagado pelo súbito e violento fechar de suas portas, quando, por algum defeito recorrente, estão insensíveis ao movimento; ou, augúrio mais alentador, que é inevitável formar-se sem ter passado pelo menos algumas horas esquecidas preso naquele cubículo.

Entretanto, o que eu tenho para contar sobre os elevadores da Federal é mais espantoso.

Naquele dia em que o desaparecido fui eu, havia esquecido numa sala do décimo-primeiro andar meu guarda-chuva. Lembrei-me dele durante a tarde, e como não fora ainda para casa e estava próximo da universidade, poderia passar lá e verificar se o reaveria. Foi o que fiz. Chegando à Federal, as coisas ocorreram bem inusitadamente: não enfrentei fila alguma para o elevador, entrei nele sozinho e fui diretamente, sem nenhuma parada, do térreo para o último andar do prédio. Com tanta sorte assim, é claro que eu não achei meu guarda-chuva: seria demais para ser verdade. Então voltei ao bendito elevador. De novo – ó, azar! – sozinho.

É que lá estando, e sem censores, animei-me a mexericar naquela alavanca que nunca é usada. Puxei-a para a esquerda, para a direita, para o meio e nada. Puxei-a uma vez mais para a esquerda, para a direita, para o meio e... As luzes se apagaram, com exceção daquela que marca o andar pelo qual se está passando. Fiquei quietinho, de medo que tinha, acompanhando o tal indicador passar do 5 para o 4, do 4 para o 3, do 3 para o 2, do 2 para o 1, do 1 para o T. Térreo, enfim!

Mas qual!, o elevador não parou! Continuou descendo, e agora até com aquela última luzinha apagada. Meu coração palpitou. Meus joelhos dobraram-se. Anuviou-se minha visão. Porém, antes que meu corpo todo se estreitasse contra o chão, a porta finalmente se abriu, o que fez-me regozijar com uma nova esperança de vida quando já me acreditava morto.

Rá! Para quê?! Topei com um porão escuro, qual calabouço de castelo, úmido e frio, porém iluminado com luzes de emergência de túneis subterrâneos. Ao fundo, uma celeuma de vozes multivibrantes anunciava um estranho viço para local tão esmorecido. Caminhei em direção aos brados, dos quais se distinguia ora um “isso é absurdo!”; ora um “à vitória!”; ou ainda um “é culpa dos imperialistas do norte!”.

Ao final do corredor, uma ampla sala se descortinava, e nela estavam dispostas várias mesas circulares, repletas de professores discutindo vivazmente os mais diversos assuntos. Num canto, a mesa dos professores de ciências sociais debatia sobre como cortar a garganta dos burgueses para a libertação das massas. A dos professores de história, doutro lado, pelo que pude ouvir, lidava com o tema do revisionismo: pretendiam desdizer tudo o que foi dito pelos gênios conspiradores dos que venceram no passado. Nada mais assustador, porém, que a mesa dos professores de letras, a mais próxima. Reuniam-se eles num vil complô para assassinar a Língua Portuguesa! Reconheci, por exemplo, enquanto oculto nas sombras, as professoras Teresa e Adelaide, falando de coisas macabras, tais como a relativização da noção de erro. O que fez um terrível frêmito tocar-me a espinha: como aquelas professoras, que sempre ostentaram tão doces ares nas mais chuvosas manhãs de Curitiba, falavam essas palavras duras contra o gracioso monumento da nossa puríssima língua materna?

Não acreditava em meus olhos e em meus ouvidos, que me faziam notar uma professora Teresa de cenho franzido, em postura tão grave a soltar uma irascível voz que clamava a morte do prescritivismo. Ou uma professora Adelaide outrora gentil, agora brincando de fincar uma adaga entre os dedos da mão o mais rapidamente que conseguisse e defendendo que..., que... Por deus, ela defendia que o gerundismo é nada mais que um registro atual do que acontece com a língua!

Não pude evitar uma irresistível interjeição:

- Ó! – exclamei eu.

Pobre de mim. Despertei a atenção. Não deu tempo nem de esboçar um sorrisinho amarelo quando senti um golpe surdo a brincar de beisebol com meu cérebro.


Acordei, sei lá quantas horas depois, enjaulado ao lado de um velho senhor sujo e barbudo, com uma marmita de risoto de frango aos meus pés.

- Bem-vindo, jovem. Meu nome é Napoleão, muito prazer. Napoleão Mendes de Almeida.

- Napoleão Mendes de...? Mas tu não tinha morrido, não?

- Tinhas morrido, por favor! – disse o velhinho. E, meditando, olhando para o alto, ponderou: - Se bem que eu prefiro “tu não morreras?”... Não, não! Como sequer sei seu nome, deveria ser “o senhor não morrera?”!

- Ah, perdão – constrangi-me. Mas antes que eu pudesse ser mais polido, arrematou meu companheiro de cela em resposta à minha pergunta:

- De qualquer modo, meu rapaz, mal o senhor conheceu a verdade sobre os elevadores da Federal e sobre a corja que nos enclausurou. A morte é ainda um tema muito longínquo para o alcance de sua parca experiência.

domingo, agosto 17, 2008

Concorrência

Vi neste fim de semana um senhor de barba mal feita, unhas grossas e pretas, testa a brilhar com o suor acumulado dos dias, palavras mal ditas, olhar de cachorro, roupas tiradas sei lá de que milênios passados, quando os rasgos e as traças talvez estivessem em voga. Sentado com as costas encurvadas num banco da Praça Osório, estendia a palma da mão encardida aos passantes pedindo dinheiro. Passaram uma senhora, um estudante universitário e dois homens trabalhadores. A primeira uma nota, o segundo umas moedas deu. Dos dois homens, um não lhe deu ouvidos, o outro disse baixinho que não tinha nada. Ossos do ofício, pensei.

Eu com minha barba feita e minha gravata, perfumado e cabelo bem aparado antevi uma ótima oportunidade de complementação de renda. Se o velho, que da boa postura nada tinha, recebeu uns trocados, eu, com toda minha fineza e com meu berço, inspiraria muito mais confiança. Estendi, porém, a mão a umas senhoras, a uma família, a crianças e jovens, aos homens trabalhadores, e tudo que consegui foi desdém. Creio que alguém até chegou a me alcunhar de insano.

Lembrei da tal transvaloração dos valores que viemos sofrendo pelos anos do nosso tempo. A isso atribuí a falência total da minha empreitada.
Ao homem que é deus de tudo
pouco resta.

E no restar pouco um lampejo de angústia
se manifesta.

Cataloga, calcula, conhece, compra e vende,
descansa e festa.

Até que o resto que era não é mais
e qual toada de suave seresta
se irmana e harmoniza com tudo,
com cada coisa, entre cada fresta.

E se acomoda nas palavras, nos poemas, nas
canções de gesta.

Dorme como dorme o homem a dormir na
vida em sesta.

Como senhor das coisas e dos nomes, a quem
nada presta.

sábado, agosto 16, 2008

Uma Imagem Divina

Poema de William Blake, com uma precária tradução, com o luxo da total liberdade e do enorme risco - que se consubstanciou, certamente - da mudança de sentido.

A Divine Image

Cruelty has a Human heart
And Jealousy a Human Face,
Terror, the Human Form Divine,
And Secrecy, the Human Dress.

The Human Dress is forgéd Iron,
The Human Form, a fiery Forge,
The Human Face, a Furnace seal'd,
The Human Heart, its hungry Gorge.
***
Uma Imagem Divina

A Crueldade tem o Coração do homem,
O Ciúmes tem o Rosto humano;
O Terror, a Divina Humana Forma,
O Segredo, do homem é o Pano.

Pano da Veste em Ferro forjada
Cuja Forja de fogo é a humana Forma,
Do homem a Face é hermética Fornalha,
E o Coração, sua Fome que devora.

quinta-feira, agosto 14, 2008

Proibido colar cartazes

Diz o cartaz na parede.

quarta-feira, agosto 13, 2008

Chuveiro

Teu mijo, teu choro
Tua chuva, o teu gozo
Teu suor copioso

Me lava a sujeira;
Menor, que maior eu tenha:
Mente, alma, moleira.

segunda-feira, agosto 11, 2008

Safo e Catulo

Só porque estou tendo aula de literatura latina e gostei demais da paráfrase de Catulo à poetisa grega Safo. A tradução de Catulo é de João Ângelo Oliva Neto. A de Safo é de Elpino Duriense.

Ode 31 de Safo

Igual aos deuses me parece aquele
Que defronte de ti se assenta, e te ouve
De perto docemente conversando,
Docemente sorrindo

Inda no peito o coração me assombra,
Que depois que te eu vi, jamais me veio
Voz alguma à garganta, antes quebrada
A língua se entorpece,

Eis já de veia em veia sutil fogo
Lavrando vai: c'os olhos nada vejo;
E sinto contínuo em meus ouvidos
um túrbido zumbido.

Geladas bagas por meu corpo correm,
Um frígido tremor me toma toda;
O rosto amarelece, e quase morta
Nem respirar já posso.

Poema 51 de Catulo

Ele parece-me ser par de um deus,
ele, se é fás dizer, supera os deuses,
esse que todo atento o tempo todo
contempla e ouve-te

doce rir, o que pobre de mim todo
sentido rouba-me, pois uma vez
que te vi, Lésbia, nada em mim sobrou
de voz na boca

mas torpece-me a língua e leve os membros
uma chama percorre e de seu som
os ouvidos tintinam, gêmea noite
cega-me os olhos.

O ócio, Catulo, te faz tanto mal.
No ócio tu exultas, tu vibras demais.
O ócio já reis e já ricas cidades
antes perdeu.

sexta-feira, agosto 08, 2008

Duas laranjas

Uma no galho alto duma
(no céu das línguas) eterna
laranjeira vige a pender.

Outra é a laranja ao chão
a descansar na agonia
duma natureza entrópica.

O homem é o terceiro, vendo
ambas: acima e abaixo,
qual fotografia imóvel.

O último é o pensamento,
de mil ardis e mil línguas,
que ao homem inventa a queda.

terça-feira, agosto 05, 2008

À minha irmã

o, soror mea, quod tecum non fratrem tuum,
sed fratris lacrimas tui, a Brasile portas?

domingo, agosto 03, 2008

Polícia Federal

Que argumentos há contra boas intenções?
Que ouçam meu telefone, ora pois!

Paradoxos

Estatizar é privatizar para os amigos do rei.

sexta-feira, agosto 01, 2008

A murderer is only an extroverted suicide.
Monty Python

Paradoxos

Viva a diferença; e cadeia pra quem não concordar.