domingo, maio 31, 2009

Poema erótico

deitada foste
uma verde relva de infindo campo
em que meus dedos caminharam
- o infinito foi desejo, não foi espaço,
e cada passo foi ao braço
um cerco tato de senhor
que avança sobre domínios
de mãos e ombros e um dorso
apenas sugerido no prelúdico jogo.
ah, mas que batalha vencer
pouco a pouco todo o teu império,
e que batalha estranha se nos despojos
não blasona o senhor, mas palpita pávido
ante austeros negros olhos
enformados em ferinas pálpebras
que se espremem por teu leve
levantar da boca e teu insinuar
das carnes do rosto e o teu gemido
e o teu suspiro e tua violência
de dentes cravados nos meus beiços
como guerreiro no último estertor.
e invertemos
consabidos e falhos
conselhos castos da dominação:
o dominus é dominado,
da pele escravo, da pele tua,
que reveste seios e ventre e o regaço
e toda doce alma que a fingido custo se entregou
açoitando amor teu servo amante.
e porque pediste e porque eu quis
busquei o beijo em tua nuca e em teu cabelo
e pelas costas desci, as mãos nos seios,
e pela busca só buscava a boca
teus terrenos, evitando encontros,
até que em fatal ataque
buscou entre tuas pernas o gosto
percorrido em cada espaço
por diligente língua que nada
à negligência lega
(desde os joelhos tudo abarcado,
a coxa inteira, e o sexo de tantos lábios,
e um por um o seu aparado pêlo).
tão vivaz, mais que memória,
ficou como gosto absoluto e só
a que, subjugado, essa soberba língua
submissa
tem por vitória.

sexta-feira, maio 29, 2009

Je suis hanté!

poesia profana
do poeta incapaz
meu l'azur! l'azur!
- assombro-me -
é essa pia! pia! pia! pia! entupida.

terça-feira, maio 26, 2009

El desdichado

Por Gérard de Nerval.

Je suis le Ténébreux, - le Veuf, - l'Inconsolé,
Le Prince d'Aquitaine à la Tour abolie :
Ma seule Etoile est morte, - et mon luth constellé
Porte le Soleil noir de la Mélancolie.


Dans la nuit du Tombeau, Toi qui m'as consolé,
Rends-moi le Pausilippe et la mer d'Italie,
La fleur qui plaisait tant à mon coeur désolé,
Et la treille où le Pampre à la Rose s'allie.


Suis-je Amour ou Phébus ?... Lusignan ou Biron ?
Mon front est rouge encor du baiser de la Reine ;
J'ai rêvé dans la Grotte où nage la sirène...


Et j'ai deux fois vainqueur traversé l'Achéron :
Modulant tour à tour sur la lyre d'Orphée
Les soupirs de la Sainte et les cris de la Fée.


[Tradução não-poética:
Eu sou o Tenebroso, - o Viúvo – o Inconsolado.
O príncipe na abolida Torre de Aquitânia:
Minha única estrela é morta – e meu ataúde constelado
Porta o negro Sol da Melancolia.

Na noite do Túmulo, tu que me consolaste,
Trazes-me o Pausílipo e o mar da Itália,
A flor que tanto prazer deu ao meu coração desolado,
E a treliça onde o Parreiral à Rosa se alia.

Sou Amor ou Febo? Lusignan ou Byron?
Meu rosto está vermelho ainda dos beijos da Rainha;
Eu sonhei na Gruta em que nada a sereia...

E atravessei duas vezes o Aqueronte:
Modulando pouco a pouco na lira de Orfeu
Os suspiros da Santa e as crises feéricas.]

domingo, maio 24, 2009

Resposta da espinha mal espremida

Resposta a esse post do Jean.

Sou um mal e como um mal em ti me faço:
mal me sentes nascer inofensiva
me faço monstro horrendo em teu regaço
ou bunda ou testa ou via olfativa.

Por minha causa tens grande cagaço
de ver gente, mulher, feia ou diva.
Mas contigo fiel vou passo a passo,
crescendo venturosa e irruptiva.

Queres minha extinção, sou-te inimiga,
mas se a mim tu matares, que então siga
nessa cara meu túmulo vermelho.

Voltarei, tu bem sabes, sou patife!
E voltarei a cada novo esquife,
até que te rejeite o próprio espelho!

A um jornalista

melhor o mofo
dum canto escuro
da internet.
fama? que fama!
num dia a glória
de ser ouvido;
noutro a trama
dos pelos sujos
da minha Arlete!

sábado, maio 23, 2009

Salva a turba ignara

salva a turba ignara,
salvai as gentes e os povos
da insídia do espírito;

salva tu que sabes
salvai vós, os sabedores
da saga sofrida

que um povo dedica
ao bien-être de bedéis
do vero certame;

e dedica o éter
da árvore própria da vida
incônscio e inerme;

que o esperma ejacula
no raro gozo da sina
que a cria herdará.

se isso vós sabeis,
armas pegai e o salvai,
ó emancipadores!

é vosso tal fado
a vós legado dos sonhos:
é vosso, não meu.

não merece a pena
que mancha o papel de espr'ança
quem cospe nas letras.

a turba é ignara,
mas não isenta do mal
se lhe basta o pão.

criais salvação
para um pecado mortal:
ser turba e feliz.

sexta-feira, maio 22, 2009

O que é uma calúnia?

Trecho da ópera O Barbeiro de Sevilha, de Gioacchino Rossini

La calunnia è un venticello,
un'auretta assai gentile
che insensible, sottile,
leggermente, dolcemente,
incomincia a sussurrar.
Piano piano, terra terra,
sottovoce, sibilando,
va scorrendo, va ronzando;
nelle orechie della gente
s'introduce destramente,
e le teste ed i cervelli
fa storidre e fa gonfiar.
Dalla bocca fuori uscendo
lo schiamazzo va crescendo
prende forza a poco a poco,
vola già di loco in loco;
sembra il tuono, la tempesta
che nel sen della foresta
va fischiando, brontolando
a ti fa d'orror gelar.
Alla fin trabocca e scoppia,
si propaga, si raddoppia
e produce un'esplosione
come un colpe di cannone,
un tremuoto, un temporale,
un tumulto generale,
che fa l'aria rimbombar.
E il meschino calunniato,
avvilito, calpestato,
sotto il pubblico flagello
per gran sorte va a crepar.


[A calúnia é como um vento
uma brisa quase gentil
que insensível, sutil,
levemente, docemente,
começa a sussurrar.
Pouco a pouco, rastejando,
em voz baixa, sibilando,
vai correndo, vai zumbindo,
nos ouvidos da gente,
introduz-se astutamente,
e as cabeças e os cérebros
deixa aturdidos e incados.
Saindo da boca,
o rumor vai crescendo,
ganha força, pouco a pouco,
vai voando de um lugar a outro;
parece um trovão, uma tempestade
que do seio da floresta
vai assobiando, retumbando,
e faz você gelar de horror.
Por fim, transborda e arrebenta,
propaga-se e se multiplica,
produzindo uma explosão
como um tiro de canhão,
um terremoto, um temporal,
um tumulto geral,
que faz o ar retumbar.
E o infeliz, caluniado,
desprezado, esmagado,
sob o público flagelo,
achará que morrer é uma grande sorte.]
Trad.: Mariana Portas

sábado, maio 16, 2009

Rosa do Povo

Façam completo silêncio, paralisem os negócios,
garanto que uma flor nasceu.
Carlos Drummond de Andrade

A rosa era feia
a rosa era suja
do asfalto nasceu.
Mas por ser rosa feia
mas por ser rosa suja
do asfalto nascida
foi a rosa que a rosa 
rosa flor do jardim
de beleza batida
cansada de versos
da velha poesia
há muito não fora.
Metafórica rosa
mais rosa que rosa
menos flor que poesia
da feia e da suja
da náusea surgida
como cinza das horas
da metáfora perdida.

A ideologia é morta

Poema ampliado, originalmente surgido como comentário a um post do Zen.

A ideologia
é morta, Fernando,
e eu não me conformo.

Parece não houve
vivalma em velório,
nem lenço, nem vela.

Vi-a ontem matreira,
cupida cupida,
frechando nos peitos;

e erguendo sonante
as vozes dos homens
nas praças e jaulas;

e, quem nos diria?,
o fogo botando
nos vãos sutiãs!

Mas hoje, Fernando,
É morta, é morta,
e eu não me conformo.

Ninguém não a chora
e há quem comemora
(um povo sisudo,

os puros de ternos,
das letras e números,
dos fins da história).

Mas conto pra ti,
se louco não sou,
que não acredito.

Está nos jornais,
se diz por aí,
mas não acredito.

Pois rostos eu vi
do pobre e mendigo,
do preso e vilão.

O lado era o outro
de tudo que vige,
do sim era o não.

Ou bem que ela vive,
ou bem que os fantasmas
que rondam Europa

chegaram aqui
e lá, cá e ali,
e a tudo que é canto,

e botam na gente
a pulga do ouvido
que insiste num canto

de que algo é errado
num mundo homogêneo
que por qualquer coisa

suspende os princípios
pro bem do figura,
pro mal do indigente.

Que é morta, Fernando,
aceitam os papéis,
a vida dissente.

Pois sim ela vive,
e já isso sabem
os que não a choram.

E os que comemoram
inventam verdades
pra ter no que crer.

domingo, maio 10, 2009

Soneto do ranzinza

De ser assim tão íntimo recuso
Dado que sou eu mesmo quando falso:
Ao dar-me ao mundo a cara em dolo alço
Por horas esculpida contra o abuso

Dos abraços, dos beijos - cadafalso
Do eu que a mim criei todo inconfuso.
Toda contradição é fruto d’uso
De se as rotas cruzar com pé descalço.

Pois que o outro me arranca o fundamento
Me enclausuro nas vestes de homem duro:
Não me conhecem, nem fico: sou vento.

Ou melhor, se tanto exijo para que um furo
Se em mim faça, sou pedra, sou cimento.
De muro tenho mais que de Epicuro.

sábado, maio 09, 2009

O ponto

das Dasein des Nichtdasein

Hegel


um ponto

na boca

- a minha

me lembra

a boca

- a tua:

começa

bem onde

termina

.

lembrar-te

é um punhal que rasga

em significados a tua a boca

naquele que termeça

ponto

terminas ali onde começas

e no ponto

em que o teu o gosto foi

deixado como índice da minha

da minha derrota

emerges toda como tempestade

deliciosa do que arfara peito

meu que nem meu este teu o tinha;

destituída de tua macia dureza

coisa tu havida

esse memorioso punhal rasga

um insentido gosto da boca

- a tua.


a tua
- a boca -
lembrada:
memória
erguida
dum nada
na boca
- a minha -

.