sábado, janeiro 31, 2009

Contra a poesia

Já se disse que Mein Kampf é mal escrito, e se submeteu a revisões estilísticas e gramaticais por assessores, na ocasião da ascensão do nazismo na Alemanha.

Sabe-se também que Borges era conivente com a ditadura militar argentina; talvez não a defendesse de forma ativa justamente por não ser da índole dos bons escritores assumir causas que não essencialmente as suas.

Uma generalização irresponsável a partir desses dois exemplos nos daria alguns problemas. Adianto um deles: com fundamento nas reflexões seguintes, se dogmáticas, não haveria outra maneira de considerar Sartre se não como um mau escritor. E Sartre, creio eu, não é um mau escritor. Mas vá lá, sejamos um pouco irresponsáveis.

O que é significante no Mein Kampf, assim como nos relatos duros de Júlio César sobre suas guerras, e nas poesias sem qualidade da juventude de Stálin, é que maus escritores acham-se capazes de escrever, de assenhorar-se das palavras escritas e de todo o poder mágico que cada nome e cada verbo pode produzir nos rumos da humanidade. E por se acharem capazes de manipular algo tão místico e sagrado, adquirem uma grandiloquência magnífica, e poderão então se tornar magníficos tiranos na impostação de suas vozes com palavras que, quais as de Homero, ganham asas. E que das tribunas dos magníficos palácios voam como ordens a mover exércitos, para o bem ou para o mal, mas sempre interferindo na vida das outras pessoas. Os maus escritores são também homens de ação e fazem a história na ação: pouco se lê de seus escritos. Fazer análise dos ensaios de Robespierre - este sim um jovem premiado na escola (recebera inclusive o galardão das mãos de Louis XVI...), mas nunca próximo ao gênio satírico de um Voltaire - mal dirá sobre seu constitucionalismo revolucionário, e menos ainda do Terror dos Comitês sob domínio jacobino, se a análise for de conteúdo. O que interessa em textos tais é a manifestação justamente da grandiloquência, dessa auto-imagem do portador do logos, do verdadeiro portador do logos e, como tal, como senhor da ação. A grandiloquência não é própria do discurso, ou não se esgota nele: é própria do homem, do homem cuja palavra escrita não é mais do que a latência ou potência de uma força a se irromper mais cedo ou mais tarde nisso que é tão louvado pelos inimigos da erudição, a atitude. Mas falo do mau-escritor que se habilita e se anuncia como escritor, o mau-escritor público, e não o mau-escritor da gaveta, o mau-escritor de diários, ou de blogs que esperam as visitas fortuitas: este se aproxima do bom escritor na vida política, mas não na escrita ou na altivez.

O bom escritor é o oposto. Tem tudo para dominar a grandiloquência, pois adquiriu tamanha intimidade com as palavras e se resignou a aceitar seus mistérios que estas não se esquivariam de torná-lo grande - e não se esquivam, pois sabemos que eles são bons escritores. Porém, a palavra o torna grande porque o bom escritor aprendeu a ser seu súdito, não seu manipulador. Resignou-se demais. O bom escritor é então o covarde, por mais palavras que diga não age. Não pode agir. Poderá defender aqui e acolá os piores regimes, se estes lhes deixam em paz. O que importa ao bom escritor, como Borges, é este isolamento, a paciente contemplação do que lhe envolve e lhe angustia, a fim de manter o silêncio do inescrutável nas suas palavras. Ele poderá cantar as revoluções, mas não apertará os gatilhos. Poderá difamar o tirano, mas será o primeiro a perdoá-lo quando ele estiver deposto. O narrador da Récherche proustiana, no seu desejo de ser um escritor, vê-se obrigado a renegar toda forma de amor e amizade: não pode suportar que outros dependam dele e de suas decisões, porque ele não sabe agir; e, evitando o risco de ter que se deixar furtar o tempo pela companhia dos outros, ele precisa escrever (bem). O bom escritor precisa, pois, deste egoísmo pueril, não para negar os outros, mas para não impor o seu eu sobre eles. Bem ao contrário do tirano. Mas acaba que também não pode ajudar, não pode salvar, não pode fazer ninguém feliz. Por isso o protótipo do bom escritor é o cego - Homero, Milton, Borges - que perscruta a pureza das palavras, mas não enxerga o alvo quando deve dar o tiro (Euclides da Cunha que o diga). É o bon vivant - Horácio, Byron, Vinícius de Moraes - que se entrega aos prazeres egotistas e erige monumentos nos versos, mas não move o mundo. É o tísico - Manuel Bandeira e Álvares de Azevedo; o funcionário hermético de ombros encolhidos - Carlos Drummond de Andrade; é o misantropo - Dalton Trevisan, Thomas Pynchon; é o tímido - Foster Wallace. É como disse Álvaro de Campos: "Conquistámos todo o mundo antes de nos levantar da cama;/Mas acordámos e ele é opaco,/Levantámo-nos e ele é alheio".

Covardes e tiranos. Poesia para quê?

sexta-feira, janeiro 30, 2009

Uma pergunta

Por que no Brasil se insiste em imitar a pior fase da literatura norte-americana (Bukowski, Kerouac, Ginsburg), quando eles nos oferecem Faulkner, Mailer, Capote, Updike, Hemingway, Foster Wallace, Thomas Pynchon, Phillip Roth?

Dá uma réiva.

quarta-feira, janeiro 28, 2009

Torre de Babel (revisado)

Houve um tempo em que toda a terra tinha uma só língua e servia-se das mesmas palavras. E todas as coisas sobre o mundo e além do mundo e ocultas sob o véu das luzes que cobrem os olhos e dos sons que acalentam os ouvidos, todas essas coisas podiam ser ditas. Isso era em Senaar. Os filhos dum antigo dilúvio vieram de um só ramo, e todos tinham a mesma origem, e serviam-se das mesmas palavras. As palavras designavam a partir das mais simples formas das formas simples, que quais peças de montar se conjugavam em possibilidades quase infinitas; porque não eram infinitas as coisas a serem ditas, apenas muitas.

E o nosso sonho de prosa, este nosso sonho escravo de representações, o nosso sonho de ter o tudo nas páginas dos livros e em cada boca, de ver tudo excluído do não-dito, da ambigüidade, do inominável, do desconhecido, esse nosso sonho foi uma vez realidade. Nenhuma palavra planava no céu da linguagem como abstrações que flutuam nos dias sem a nossa mínima suspeita, mas dava com nossas caras na dureza ou leveza das coisas e de cada coisa, na verdade dos atos, na mais clara forma do pensamento. Podia-se falar da origem das coisas, das transcendências, das essências ocultas sob as superfícies, das imaginações e dos sonhos, e sem erros, e sem que um ao ouvi-las pudesse pensar em algo distinto daquele que as dizia. O amor, bibliotecas de dicionários registravam algumas centenas de formas diferentes para dizê-lo, esta palavra que para nós abraça tanta coisa e não diz nada. Dizia o namorado à namorada que não a amava mais, mas que a amava, e cada amor era diferente, e a namorada que o amava ainda, mas não o amava já, compreendia que era diferente e que não podiam mais partilhar os leitos e roçar os corpos na planície pulsante ao rio Tigre cheio de vida. E hoje só se pode amar ou não, e o te amo à mãe é igual ao que se dá àquela que se emaranha nas tuas pernas, e o nosso desespero é o desespero de que algo ficou por dizer.

Deus viu aquele povo e pensou que tal povo poderia executar todos os empreendimentos e assim seriam como Deus. Mas Deus não rivaliza, é uno. Lançou a confusão no solo de Senaar e nunca mais a mesma língua foi partilhada.

Dizem-nos de tal história que houve um povo que construía uma torre para alcançar os céus. Engana-se quem pensa nos tijolos cozidos e nos vitrais e nos pórticos e nas colunas e nas enormes paredes interrompendo o horizonte, isso tudo que se faria à custa das fundações – e até Deus sabia disso. A torre de Babel era a língua dos filhos de Noé. O subentendido, o por-dizer, aquilo para o que a garganta nos falta, isso tudo é um vapor que emerge dos infernos: o céu alcança quem os elimina e quem assim elimina todas as possibilidades, todos os progressos, que são próprios de quem é dominado pelo que somente aparece quando faltam os nomes – o desejo. Houve um povo, esse povo, estagnado na impossibilidade infinita, mas a impossibilidade infinita é o apanágio de Deus.

Que só semeou a confusão porque por um momento foi a Ele que faltaram as palavras.

segunda-feira, janeiro 26, 2009

Consolo-me

Consolo-me.
Agora a morte tem
o sopro terno
e eterna é a ternura.
Retorno, e retorna-
rá sempre meu sempre
retorno, ainda que tarde.
Talvez mesmo eu tarde,
mas nesse entanto interminável
é a vitória de mim
contra o termo irrevogável
do tartárico decreto
do torpe e tormentoso

fim.

sexta-feira, janeiro 23, 2009

Enjambement - outro estudo

Você consegue
acompanhar
a
Lei
tura?

Ou há também aquele
.
.
.
martelo!

a pregar os
ouvidos na
Voz?

Cesura - um estudo

Vai pensando bastante e tenta não parar.
Não freias, meu senhor: quer o mundo o pensar.

- Mas por que te deténs, no meio do meu verso?
Por que tu então paras se parar não deves?
- É preciso...
......................- Parar?
....................................- ...pensar.

quinta-feira, janeiro 22, 2009

Desengaño de las Mujeres

Puto es el hombre que de putas fía,
y puto el que sus gustos apetece;
puto es el estipendio que se ofrece
en pago de su puta compañía.

Puto es el gusto, y puta la alegría
que el rato putaril nos encarece;
y yo diré que es puto a quien parece
que no sois puta vos, señora mía.

Mas llámenme a mí puto enamorado,
si al cabo para puta no os dejare;
y como puto muera yo quemado

si de otras tales putas me pagare,
porque las putas graves son costosas,
y las putillas viles, afrentosas.

*Por Francisco de Quevedo, poeta do barroco seiscentista, nome maior do conceptismo espanhol. Partidário do neo-estoicismo, um neo-estoicismo cristão. Segundo Borges, é o artífice da língua espanhola.

sexta-feira, janeiro 16, 2009

Falso amor sincero

Por Nelson Sargento

O nosso amor é tão bonito
Ela finge que me ama
E eu finjo que acredito!

Por isso eu vivo a dizer
Que o nosso amor é tão bonito
Ela finge que me ama
E eu finjo que acredito!

O nosso falso amor é tão sincero
Isto me faz bem feliz
Ela faz tudo que eu quero
Eu faço tudo que ela diz
Aqueles que se amam de verdade
Invejam a nossa felicidade!

quarta-feira, janeiro 14, 2009

poemas ligeiros e irresponsáveis

mal posso o ferir o céu, como vates
que mendigam a vida no verso
mal contenho as multidões
estes nadas no vão do universo:
meu toque esmaga o espaço.
crescido sou, e as cidades trespasso
não com miríades de mapas
com a contagem infinda de passos;
não é no asfalto de suas malhas
que posso alguma hora perder.
meu toque destrói o tempo
os deuses calados do templo
a chuva, a onda, o vento:
não podem cidades me conter.
sou maior que os prédios
cujos rebites cheios de aço
as bases de tantos ferros
não logram além de mim ser.
sou e significo, sozinho e só
meu nome é o único nome,
basto-me, sou todo o homem,
o homem do todo, o todo eu,
o tudo, pura e simplesmente;
nada pode me ser indiferente:
de toda a gente o rosto é meu.

domingo, janeiro 11, 2009

Citações

"A primeira vítima da guerra é a verdade."
Senador Hiram W. Johnson (1866-1945)

"Não param de dizer que 'toda nação tem o direito de proteger seus cidadãos', como se fosse apenas isso, e as pessoas acabam por acreditar que é disso que se trata."
Philip Knightley, do Sunday Times, sobre a propaganda israelense de guerra.

"Concordo que Israel tem um enorme desafio para explicar isso [o ataque a uma escola em Gaza], mas se o mundo não entender, paciência. Se o outro lado não cumpre as regras básicas, Israel não pode ser culpado."
Eitan Gilboa, da Universidade Bar-Ilan.

"Nós, israelenses, precisamos mudar nossa mentalidade automática, que diz sempre que a ação militar vai resolver nossos problemas."
Nir Baram, escritor israelense.

"O governo israelense achou necessário agir militarmente devido à pressão da opinião pública, da mídia e da direita. Afinal, estamos no meio de uma campanha eleitoral. E as regras da vida no Oriente Médio ditam que não se pode demonstrar fraqueza. É essa mentalidade a que Baram se referiu".
Hillel Schenker, jornalista do Palestine-Israel Journal, em Tel-Aviv, mostrando que não se trata de legítima defesa, mas uma manobra eleitoral para impedir a eleição de Benyamin Netanyahu, da extrema-direita (pois, se o Hamas pôs fim à trégua pelo lançamento de foguetes, foi em razão de que Israel se recusara a pôr fim ao bloqueio à Faixa de Gaza, como previa o acordo do armistício de junho).

"Seria bom se a comunidade internacional deixasse de tratar membros do Hamas como pobres coitados e os visse como são: genocidas."
Gustavo Ioschpe, para a Folha de S. Paulo, e, não por acaso, colaborador da Veja.

sábado, janeiro 10, 2009

Soneto XC de Shakespeare

Then hate me when thou wilt, if ever, now,
Now while the world is bent my deeds to cross,
Join with the spite of fortune, make me bow,
And do not drop in for an after-loss:
Ah do not, when my heart hath scap'd this sorrow,
Come in the reaward of a conquer'd woe,
Give not a windy night a rainy morrow,
To linger out a purpos'd overthrow.
If thou wilt leave me, do not leave me last,
When other petty griefs have done their spite,
But in the onset come, so shall I taste
At first the very worst of fortune's might.
....And other strains of woe, which now seem woe
....Compar'd with loss of thee, will not seem so.

[Então me odeia quando quiseres, ou mesmo agora,/Agora enquanto o mundo coloca meus feitos na cruz,/Junta-te ao rancor da sorte, faze-me curvar,/E não apareças para um novo prejuízo:/Ah não, quando meu coração tiver fugido desta tristeza,/Não venhas, quando dos prêmios de uma dor vencida,/Não dês um amanhã de chuva a uma noite de ventos,/Para prolongar uma ruína resolvida./Se tu me queres deixar, não o faças no fim,/Quando todas as mágoas triviais tiverem passado,/Mas no começo, quando eu experimentarei/Duma e na primeira vez o pior dos desígnios da fortuna./E outros tipos de dor, agora não parecerão dor,/Comparado com a tua perda, não parecerão dor.]

Na tradução de Péricles Eugênio da Silva Ramos:

Odeia-me, portanto; agora, se é preciso:
Agora, em tudo, o mundo insiste em contrariar-me;
Não me causes mais tarde um súbito prejuízo,
Une-te logo à sorte cruel, vem humilhar-me.
Quando minh'alma houver fugido ao meu tormento,
Não surjas no último escalão de dor vencida:
Não dês manhã de chuva à noite com seu vento,
A fim de prolongar a derrota decidida.
Se me deixares, não me deixes só no fim,
Quando se houver cumprido tanta dor menor;
Vem no primeiro ataque: eu sofrerei assim,
De plano, o que a fortuna oferecer de pior.
....E outras formas de dor, que ora parecem dor,
....Junto de tua perda não terão tal cor.

quinta-feira, janeiro 08, 2009

Adendo às notas abaixo

Duas notícias (aqui e aqui) de hoje confirmaram duas das minhas opiniões de ontem. A primeira, a de que a guerra não é feita por legítima defesa. As declarações de Shimon Peres, as de que Israel pretende evitar que Gaza se torne satélite de Irã, são indisfarçáveis indicativos de o que ocorre é mais uma daquelas guerras preventivas, na toada da doutrina de segurança internacional do pós-11 de setembro. Não há respaldo em nenhum tratado internacional para este tipo de manobra militar, que é fruto de um saber construído às pressas e sobre fatos inventados que mais se parecem com fábulas do lobo mau que querem incutir medo nas crianças desobedientes (ou revolucionárias...).

Não bastasse a guerra injusta, Israel nos brinda com a cereja da sobremesa: a segunda notícia mais que escancara o caráter criminoso e desproporcional da ofensiva.

É isso.

Outras notas sobre Gaza

Os contemporâneos da minha geração não lutamos por um país para chamar de nosso. Aliás, tal luta é de difícil concepção num período em que o espaço público não representa outra coisa a não ser vias que medeiam núcleos privados de convivência. Disso parece advir a natural conclusão de que julgar as lutas dos palestinos e dos israelenses nos é vedado, ou que pelo menos qualquer juízo deve vir acompanhado de mil ressalvas.

A minha ressalva é essa de que falei, a da distância representada pela apatia da minha geração, mas acaba aqui. Ainda tenho o poder de imaginar, e creio também ter certa capacidade de me fazer outro algumas vezes. Este é, em verdade, o exercício mais fascinante da literatura, o da alteridade, o de emudecer o imperioso eu e dar voz a outro, ainda que ficção da própria cabeça (que nunca é inteiramente própria, como dizem os anunciadores da morte do solipsismo). Por isso me proponho a fazer alguns comentários sobre a situação dos outros, correndo o risco do juízo equivocado; que de resto nem é tanta novidade, eis que assumo o grande erro que sou.

O que me interessa expressar aqui – e o texto será estranho para quem tem me acompanhado – é a raiva que de repente adquiri pela cobertura do conflito. Não reduzo minha crítica à cobertura midiática. A mídia já um monstro muito batido, facílimo de criticar, mas impossível de abandonar. Falo também da cobertura – ou das interpretações – dos protagonistas políticos do cenário mundial. Que também são joões-bobos a levar paulada de todo canto, porém sem qualquer direito de reclamar por isso.

É risível ter que agüentar governos e jornalistas do mundo pedir pelo cessar-fogo de Israel, reconhecendo, por outro lado, inevitavelmente o direito de existência do país e pela luta de suas raízes. Digo inevitavelmente porque toda e qualquer condenação (ou melhor, pedidos de trégua – ninguém condena tanto assim) tem que vir acompanhada por qualquer expressão que livre o comentarista da pecha do anti-semitismo. Coisas como excesso de legítima defesa, morte de inocentes no ataque a terroristas e utilização da população palestina pelo Hamas como escudo humano são praticamente rotinas inescapáveis da menção de qualquer um que apele pelo fim do conflito. Ninguém comemora a morte dos palestinos, mas se há alguém a ser efetivamente condenado, só podem ser eles.

Ousar condenar Israel é ser nazista. Críticas podem ser bem-vindas, mas sempre se acompanhadas daquelas ressalvas que reservam a verdadeira condenação aos terroristas do Hamas. Esse é o teor do politicamente correto para tratar do conflito, é a cartilha da abordagem do assunto. Porém, se for lembrar o que meus amigos hegelianos diriam, o politicamente correto não passa de uma universalização política de uma visão parcial e fragmentada do acontecer social, agora assumida como natural e com pleno direito de ser assim porque..., enfim, as coisas têm que ser assim. Vou ousar seguir a contracorrente dessa universalização, correndo o risco de cair no discurso negativista de uma esquerda irrefletida, e mais ainda o risco de ser tratado por nazista.

O ataque israelense é crime de guerra e não há ressalvas possíveis para salvá-lo. É ato covarde, desproporcional e não se baseia em nenhum pressuposto de legítima defesa que permita a declaração unilateral de guerra. Ehud Olmert encabeça um movimento tão desastroso quanto à Guerra no Iraque ou o massacre dos tutsis. (Se eu mencionasse então o holocausto seria eu o excessivamente irônico, e não a história?) Continuemos: trata-se de um ataque contra algo que não teve até hoje a mínima estrutura de se aparelhar como nação; uma organização a que sempre se negou efetiva voz, relegando a atos de violência isolados e de pouca capacidade destrutiva. A Faixa de Gaza se espreme contra o mar e o Egito, uma região densamente povoada pela população palestina, que desde há muito teve que se contentar com atos de caridade ou boa-vontade de Israel e da ONU para ter uma terra para chamar de sua.

A ofensiva mata. Dizer que mata crianças ou inocentes é apenas um apelo ao desespero e à pieguice humanas. A morte seria tão covarde estivessem elas a salvo em algum reduto ou no Egito. Mostram-no o placar de caídos de cada lado: Israel não passou da segunda dezena de mortos, sendo que mais da metade deles é de fogo amigo! Mata-se um povo espremido, arrasado por 35% de desemprego e uma igual faixa de pessoas vivendo na linha da miséria. Um povo que, desarmado, não logra sequer ajuda de forças de paz da ONU, que o máximo que sabe fazer é mandar observadores para a fronteira. Observadores estes que manterão a lenga-lenga de pedir o cessar-fogo reconhecendo a culpa palestina.

Todas as mais de seiscentas mortes palestinas foram devidas ao armamento israelense. Até uma escola foi atacada. E de quem é a culpa? Do Hamas. O governo israelense, entre lamentos falsos numa gravidade pomposamente ridícula, diz isso mesmo: a culpa é do Hamas. Eles é que são os covardes que utilizam a população como escudo humano para encobrirem-se e continuarem com suas maldades fundamentalistas – maldades estas baseadas num vil sentimento de acabar com Israel a todo custo...

Ora, como se pode dizer que os que defendem Gaza estão utilizando a população de escudo humano se estão lutando numa região super-povoada, não havendo a mínima possibilidade de se retirar para um campo de batalha isolado? Israel pratica a ofensiva dentro das cidades palestinas, não seria de se surpreender que o próprio povo - aí sim em legítima defesa – procurasse atirar e atingir o algoz com o que lhe está ao alcance da mão. Essa é a principal característica das longas Intifadas que ocorreram no Oriente Médio, e a culpa não se pode atribuir à Palestina: é uma conjunção de fatores de atos de unilaterais de poder e de uma desastrosa solução que transferiu um problema nascido no seio do mundo ocidental para o mundo islâmico.

O que complica nossa história é que o Hamas foi bem sucedido em alcançar o nome de terroristas. Não há como deixar de ser nominalista nestas horas: a velha lição aristotélica dos semas e remas nos deixa um triste exemplo de aplicação. As informações lingüísticas se dividem em um sujeito – o sema – e um predicado – o rema; e as novidades sempre ocorrem no rema, enquanto uma nominação bem sucedida transforma todo um conjunto de informações (de sintagmas descritivos em Bertrand Russel ou, o que prefiro, de conjunto de possibilidades em Wittgenstein) em um nome, um sujeito, no sema (lembrem-se da palavra ‘semântica’), e a partir disso são tidas como naturais e fechadas. Se digo que o cachorro morreu, a morte – o rema da frase - é a informação nova; o fato de ser um cachorro – o sema da construção - já é dado. Se eu digo que o Hamas é terrorista, enquadro aquela organização num nome e as novas construções frasais terão tal enquadramento como dada. “Os terroristas do Hamas lançaram morteiros”: aqui, todos já aceitarão como natural o caráter terrorista do partido palestino, pois a informação nova é o lançamento dos foguetes (que, no caso, retroalimenta a idéia contida no sema). Se tivemos uma nominação bem-sucedida, a de terrorista, o falatório humano já o terá como dado e não o submeterá a questionamento. Questioná-lo implica um grande exercício de desconstrução do sema, que é sempre complicado e demorado: é exatamente o que tento fazer aqui. Enquanto os atos de Israel forem nominados de legítima defesa e os do Hamas de terroristas, toda análise deverá partir destes pressupostos. A tendência humana à decadência do já-sempre-sabido pouco procurará superar esses pressupostos, e aí que toda morte palestina fatalmente será culpa do Hamas.

Não mais, a depender de mim. O Hamas é um exemplo fascinante – e não podemos relegá-lo ao esquecimento – da crise da democracia. Demonstra cabalmente que ninguém a defende a todo custo, e que ninguém crê piamente em suas bases. Quando, por exemplo, as opiniões publicadas se voltam contra garantias individuais em nome de um poder coercitivo e violento do Estado, na luta contra a criminalidade de rua, um dos grandes pilares da democracia, o da liberdade individual, é questionado, mas ninguém desses opinantes se chamaria de antidemocrático. O caso do Hamas, porém, é mais explícito, é uma chaga que sangra, uma fratura exposta. O partido foi eleito segundo as regras democráticas pelo povo palestino, mas isso não foi suficiente para granjear apoio do país que se julga porta-voz da liberdade e da democracia – os Estados Unidos. Pelo contrário, há já um histórico daquele país em suspender a regra democrática do voto quando, a seu juízo, o povo é irresponsável o suficiente para não escolher um governo que lhe apeteça. O caso das ditaduras militares latino-americanas é emblemático. Odeio citações da espécie, porque são tiradas da minha mais falha memória, mas já li em algum lugar a manifestação de um alto secretário do governo americano da década de setenta que apoiou o golpe contra Allende no Chile porque o povo foi irresponsável de o eleger. Não precisamos de muito para aumentar os exemplos: o golpe sofrido por Hugo Chavez na Venezuela foi exatamente a mesma situação.

A mim parece que os porta-vozes da democracia serão os responsáveis pela sua derrocada, que, creio eu, há de vir. Nominações destrutivas unilaterais e ofensivas militares contra um povo desarmado são configuradoras de um ancien régime globalizado. A Israel não interessa a democracia palestina, nem se o Hamas não for o eleito. O próprio Fatah – organização laica e com canal muito maior de comunicação com o ocidente – já sofreu imposições unilaterais de Israel, com o cerco empreendido pelo país contra prédios em que se localizava Yasser Arafat, porque este não aceitava mais um dos atos de boa vontade do Estado judeu.

Toquei na palavra tabu. Mas persisto em condenar Israel, não como senhor da justiça, mas como portador de uma opinião que, creio eu, encontra-se cá fundamentada. Não arredarei pé, e dessa vez abstenho-me completamente de suavizar os crimes de guerra defendendo o direito de existência e de defesa do estado judaico, ou desmistificando - como sempre fiz - o absurdo cristão de condenar a etnia pela usura e, contemporaneamente, pelo capitalismo financeiro selvagem. Quem sofre hoje são os palestinos, e os judeus nacionalmente organizados guardam em si, como qualquer outro povo, a possibilidade de ser a vítima de tempos idos e o carrasco das novas auroras.

segunda-feira, janeiro 05, 2009

Se eu estiver bem,
e o meu cavalo alazão,
pouco se me dá
que a mulher para ou não.

Oração que um padre deu a uma gestante, com a ressalva de que ela só deveria lê-la após o parto, quando o padre já estaria muito distante. De uma das histórias da Dona Beatriz, avó do Chrysantho.

sexta-feira, janeiro 02, 2009

Estupro

Início da ação.
O Estuprador:

quando as pernas abro
não são as pernas que forço
mas a força de não me querer

A Estuprada:

queres o gozo e não lho dou
não lho dou o que de mim roubas
mas não roubas porque lhe dou

O Estuprador:

dás-me em não me dando
não darias desses
e do não-dada dada está

A Estuprada:

recuso o dada dada estando
porque é possível tudo ser
mas só sou possível se mulher


O Estuprador:

por ser mulher não
por sê-la sim
sofres? por ser mulher

A Estuprada:

sofro por ser mulher
mas porque mulher sendo
não me te devia dar

O Estuprador:

sofro porque sofro
só porque sofres e só
sofrendo sou feliz

A Estuprada:

sofres porque não sabes
se és feliz ou não o és
não há nome para o teu sofrer

O Estuprador:

sofro porque não há nome
e porque só o teu sofrer
sofrimento se chamar pode

A Estuprada:

sofro onde chorando gozas
porque negando te me dei
e a culpa negando herdei

Fim da ação.