Os contemporâneos da minha geração não lutamos por um país para chamar de nosso. Aliás, tal luta é de difícil concepção num período em que o espaço público não representa outra coisa a não ser vias que medeiam núcleos privados de convivência. Disso parece advir a natural conclusão de que julgar as lutas dos palestinos e dos israelenses nos é vedado, ou que pelo menos qualquer juízo deve vir acompanhado de mil ressalvas.
A minha ressalva é essa de que falei, a da distância representada pela apatia da minha geração, mas acaba aqui. Ainda tenho o poder de imaginar, e creio também ter certa capacidade de me fazer outro algumas vezes. Este é, em verdade, o exercício mais fascinante da literatura, o da alteridade, o de emudecer o imperioso eu e dar voz a outro, ainda que ficção da própria cabeça (que nunca é inteiramente própria, como dizem os anunciadores da morte do solipsismo). Por isso me proponho a fazer alguns comentários sobre a situação dos outros, correndo o risco do juízo equivocado; que de resto nem é tanta novidade, eis que assumo o grande erro que sou.
O que me interessa expressar aqui – e o texto será estranho para quem tem me acompanhado – é a raiva que de repente adquiri pela cobertura do conflito. Não reduzo minha crítica à cobertura midiática. A mídia já um monstro muito batido, facílimo de criticar, mas impossível de abandonar. Falo também da cobertura – ou das interpretações – dos protagonistas políticos do cenário mundial. Que também são joões-bobos a levar paulada de todo canto, porém sem qualquer direito de reclamar por isso.
É risível ter que agüentar governos e jornalistas do mundo pedir pelo cessar-fogo de Israel, reconhecendo, por outro lado, inevitavelmente o direito de existência do país e pela luta de suas raízes. Digo inevitavelmente porque toda e qualquer condenação (ou melhor, pedidos de trégua – ninguém condena tanto assim) tem que vir acompanhada por qualquer expressão que livre o comentarista da pecha do anti-semitismo. Coisas como excesso de legítima defesa, morte de inocentes no ataque a terroristas e utilização da população palestina pelo Hamas como escudo humano são praticamente rotinas inescapáveis da menção de qualquer um que apele pelo fim do conflito. Ninguém comemora a morte dos palestinos, mas se há alguém a ser efetivamente condenado, só podem ser eles.
Ousar condenar Israel é ser nazista. Críticas podem ser bem-vindas, mas sempre se acompanhadas daquelas ressalvas que reservam a verdadeira condenação aos terroristas do Hamas. Esse é o teor do politicamente correto para tratar do conflito, é a cartilha da abordagem do assunto. Porém, se for lembrar o que meus amigos hegelianos diriam, o politicamente correto não passa de uma universalização política de uma visão parcial e fragmentada do acontecer social, agora assumida como natural e com pleno direito de ser assim porque..., enfim, as coisas têm que ser assim. Vou ousar seguir a contracorrente dessa universalização, correndo o risco de cair no discurso negativista de uma esquerda irrefletida, e mais ainda o risco de ser tratado por nazista.
O ataque israelense é crime de guerra e não há ressalvas possíveis para salvá-lo. É ato covarde, desproporcional e não se baseia em nenhum pressuposto de legítima defesa que permita a declaração unilateral de guerra. Ehud Olmert encabeça um movimento tão desastroso quanto à Guerra no Iraque ou o massacre dos tutsis. (Se eu mencionasse então o holocausto seria eu o excessivamente irônico, e não a história?) Continuemos: trata-se de um ataque contra algo que não teve até hoje a mínima estrutura de se aparelhar como nação; uma organização a que sempre se negou efetiva voz, relegando a atos de violência isolados e de pouca capacidade destrutiva. A Faixa de Gaza se espreme contra o mar e o Egito, uma região densamente povoada pela população palestina, que desde há muito teve que se contentar com atos de caridade ou boa-vontade de Israel e da ONU para ter uma terra para chamar de sua.
A ofensiva mata. Dizer que mata crianças ou inocentes é apenas um apelo ao desespero e à pieguice humanas. A morte seria tão covarde estivessem elas a salvo em algum reduto ou no Egito. Mostram-no o placar de caídos de cada lado: Israel não passou da segunda dezena de mortos, sendo que mais da metade deles é de fogo amigo! Mata-se um povo espremido, arrasado por 35% de desemprego e uma igual faixa de pessoas vivendo na linha da miséria. Um povo que, desarmado, não logra sequer ajuda de forças de paz da ONU, que o máximo que sabe fazer é mandar observadores para a fronteira. Observadores estes que manterão a lenga-lenga de pedir o cessar-fogo reconhecendo a culpa palestina.
Todas as mais de seiscentas mortes palestinas foram devidas ao armamento israelense. Até uma escola foi atacada. E de quem é a culpa? Do Hamas. O governo israelense, entre lamentos falsos numa gravidade pomposamente ridícula, diz isso mesmo: a culpa é do Hamas. Eles é que são os covardes que utilizam a população como escudo humano para encobrirem-se e continuarem com suas maldades fundamentalistas – maldades estas baseadas num vil sentimento de acabar com Israel a todo custo...
Ora, como se pode dizer que os que defendem Gaza estão utilizando a população de escudo humano se estão lutando numa região super-povoada, não havendo a mínima possibilidade de se retirar para um campo de batalha isolado? Israel pratica a ofensiva dentro das cidades palestinas, não seria de se surpreender que o próprio povo - aí sim em legítima defesa – procurasse atirar e atingir o algoz com o que lhe está ao alcance da mão. Essa é a principal característica das longas Intifadas que ocorreram no Oriente Médio, e a culpa não se pode atribuir à Palestina: é uma conjunção de fatores de atos de unilaterais de poder e de uma desastrosa solução que transferiu um problema nascido no seio do mundo ocidental para o mundo islâmico.
O que complica nossa história é que o Hamas foi bem sucedido em alcançar o nome de terroristas. Não há como deixar de ser nominalista nestas horas: a velha lição aristotélica dos semas e remas nos deixa um triste exemplo de aplicação. As informações lingüísticas se dividem em um sujeito – o sema – e um predicado – o rema; e as novidades sempre ocorrem no rema, enquanto uma nominação bem sucedida transforma todo um conjunto de informações (de sintagmas descritivos em Bertrand Russel ou, o que prefiro, de conjunto de possibilidades em Wittgenstein) em um nome, um sujeito, no sema (lembrem-se da palavra ‘semântica’), e a partir disso são tidas como naturais e fechadas. Se digo que o cachorro morreu, a morte – o rema da frase - é a informação nova; o fato de ser um cachorro – o sema da construção - já é dado. Se eu digo que o Hamas é terrorista, enquadro aquela organização num nome e as novas construções frasais terão tal enquadramento como dada. “Os terroristas do Hamas lançaram morteiros”: aqui, todos já aceitarão como natural o caráter terrorista do partido palestino, pois a informação nova é o lançamento dos foguetes (que, no caso, retroalimenta a idéia contida no sema). Se tivemos uma nominação bem-sucedida, a de terrorista, o falatório humano já o terá como dado e não o submeterá a questionamento. Questioná-lo implica um grande exercício de desconstrução do sema, que é sempre complicado e demorado: é exatamente o que tento fazer aqui. Enquanto os atos de Israel forem nominados de legítima defesa e os do Hamas de terroristas, toda análise deverá partir destes pressupostos. A tendência humana à decadência do já-sempre-sabido pouco procurará superar esses pressupostos, e aí que toda morte palestina fatalmente será culpa do Hamas.
Não mais, a depender de mim. O Hamas é um exemplo fascinante – e não podemos relegá-lo ao esquecimento – da crise da democracia. Demonstra cabalmente que ninguém a defende a todo custo, e que ninguém crê piamente em suas bases. Quando, por exemplo, as opiniões publicadas se voltam contra garantias individuais em nome de um poder coercitivo e violento do Estado, na luta contra a criminalidade de rua, um dos grandes pilares da democracia, o da liberdade individual, é questionado, mas ninguém desses opinantes se chamaria de antidemocrático. O caso do Hamas, porém, é mais explícito, é uma chaga que sangra, uma fratura exposta. O partido foi eleito segundo as regras democráticas pelo povo palestino, mas isso não foi suficiente para granjear apoio do país que se julga porta-voz da liberdade e da democracia – os Estados Unidos. Pelo contrário, há já um histórico daquele país em suspender a regra democrática do voto quando, a seu juízo, o povo é irresponsável o suficiente para não escolher um governo que lhe apeteça. O caso das ditaduras militares latino-americanas é emblemático. Odeio citações da espécie, porque são tiradas da minha mais falha memória, mas já li em algum lugar a manifestação de um alto secretário do governo americano da década de setenta que apoiou o golpe contra Allende no Chile porque o povo foi irresponsável de o eleger. Não precisamos de muito para aumentar os exemplos: o golpe sofrido por Hugo Chavez na Venezuela foi exatamente a mesma situação.
A mim parece que os porta-vozes da democracia serão os responsáveis pela sua derrocada, que, creio eu, há de vir. Nominações destrutivas unilaterais e ofensivas militares contra um povo desarmado são configuradoras de um ancien régime globalizado. A Israel não interessa a democracia palestina, nem se o Hamas não for o eleito. O próprio Fatah – organização laica e com canal muito maior de comunicação com o ocidente – já sofreu imposições unilaterais de Israel, com o cerco empreendido pelo país contra prédios em que se localizava Yasser Arafat, porque este não aceitava mais um dos atos de boa vontade do Estado judeu.
Toquei na palavra tabu. Mas persisto em condenar Israel, não como senhor da justiça, mas como portador de uma opinião que, creio eu, encontra-se cá fundamentada. Não arredarei pé, e dessa vez abstenho-me completamente de suavizar os crimes de guerra defendendo o direito de existência e de defesa do estado judaico, ou desmistificando - como sempre fiz - o absurdo cristão de condenar a etnia pela usura e, contemporaneamente, pelo capitalismo financeiro selvagem. Quem sofre hoje são os palestinos, e os judeus nacionalmente organizados guardam em si, como qualquer outro povo, a possibilidade de ser a vítima de tempos idos e o carrasco das novas auroras.
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