Já se disse que Mein Kampf é mal escrito, e se submeteu a revisões estilísticas e gramaticais por assessores, na ocasião da ascensão do nazismo na Alemanha.
Sabe-se também que Borges era conivente com a ditadura militar argentina; talvez não a defendesse de forma ativa justamente por não ser da índole dos bons escritores assumir causas que não essencialmente as suas.
Uma generalização irresponsável a partir desses dois exemplos nos daria alguns problemas. Adianto um deles: com fundamento nas reflexões seguintes, se dogmáticas, não haveria outra maneira de considerar Sartre se não como um mau escritor. E Sartre, creio eu, não é um mau escritor. Mas vá lá, sejamos um pouco irresponsáveis.
O que é significante no Mein Kampf, assim como nos relatos duros de Júlio César sobre suas guerras, e nas poesias sem qualidade da juventude de Stálin, é que maus escritores acham-se capazes de escrever, de assenhorar-se das palavras escritas e de todo o poder mágico que cada nome e cada verbo pode produzir nos rumos da humanidade. E por se acharem capazes de manipular algo tão místico e sagrado, adquirem uma grandiloquência magnífica, e poderão então se tornar magníficos tiranos na impostação de suas vozes com palavras que, quais as de Homero, ganham asas. E que das tribunas dos magníficos palácios voam como ordens a mover exércitos, para o bem ou para o mal, mas sempre interferindo na vida das outras pessoas. Os maus escritores são também homens de ação e fazem a história na ação: pouco se lê de seus escritos. Fazer análise dos ensaios de Robespierre - este sim um jovem premiado na escola (recebera inclusive o galardão das mãos de Louis XVI...), mas nunca próximo ao gênio satírico de um Voltaire - mal dirá sobre seu constitucionalismo revolucionário, e menos ainda do Terror dos Comitês sob domínio jacobino, se a análise for de conteúdo. O que interessa em textos tais é a manifestação justamente da grandiloquência, dessa auto-imagem do portador do logos, do verdadeiro portador do logos e, como tal, como senhor da ação. A grandiloquência não é própria do discurso, ou não se esgota nele: é própria do homem, do homem cuja palavra escrita não é mais do que a latência ou potência de uma força a se irromper mais cedo ou mais tarde nisso que é tão louvado pelos inimigos da erudição, a atitude. Mas falo do mau-escritor que se habilita e se anuncia como escritor, o mau-escritor público, e não o mau-escritor da gaveta, o mau-escritor de diários, ou de blogs que esperam as visitas fortuitas: este se aproxima do bom escritor na vida política, mas não na escrita ou na altivez.
O bom escritor é o oposto. Tem tudo para dominar a grandiloquência, pois adquiriu tamanha intimidade com as palavras e se resignou a aceitar seus mistérios que estas não se esquivariam de torná-lo grande - e não se esquivam, pois sabemos que eles são bons escritores. Porém, a palavra o torna grande porque o bom escritor aprendeu a ser seu súdito, não seu manipulador. Resignou-se demais. O bom escritor é então o covarde, por mais palavras que diga não age. Não pode agir. Poderá defender aqui e acolá os piores regimes, se estes lhes deixam em paz. O que importa ao bom escritor, como Borges, é este isolamento, a paciente contemplação do que lhe envolve e lhe angustia, a fim de manter o silêncio do inescrutável nas suas palavras. Ele poderá cantar as revoluções, mas não apertará os gatilhos. Poderá difamar o tirano, mas será o primeiro a perdoá-lo quando ele estiver deposto. O narrador da Récherche proustiana, no seu desejo de ser um escritor, vê-se obrigado a renegar toda forma de amor e amizade: não pode suportar que outros dependam dele e de suas decisões, porque ele não sabe agir; e, evitando o risco de ter que se deixar furtar o tempo pela companhia dos outros, ele precisa escrever (bem). O bom escritor precisa, pois, deste egoísmo pueril, não para negar os outros, mas para não impor o seu eu sobre eles. Bem ao contrário do tirano. Mas acaba que também não pode ajudar, não pode salvar, não pode fazer ninguém feliz. Por isso o protótipo do bom escritor é o cego - Homero, Milton, Borges - que perscruta a pureza das palavras, mas não enxerga o alvo quando deve dar o tiro (Euclides da Cunha que o diga). É o bon vivant - Horácio, Byron, Vinícius de Moraes - que se entrega aos prazeres egotistas e erige monumentos nos versos, mas não move o mundo. É o tísico - Manuel Bandeira e Álvares de Azevedo; o funcionário hermético de ombros encolhidos - Carlos Drummond de Andrade; é o misantropo - Dalton Trevisan, Thomas Pynchon; é o tímido - Foster Wallace. É como disse Álvaro de Campos: "Conquistámos todo o mundo antes de nos levantar da cama;/Mas acordámos e ele é opaco,/Levantámo-nos e ele é alheio".
Covardes e tiranos. Poesia para quê?
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3 comentários:
A publicação do Mein Kampf é proibida na Alemanha, se não me engano até o ano do centenário da morte de Hitler, quando poderá entrar em circulação. No entanto, há um movimento judaico em prol da publicação de uma obra com anotações críticas ao Mein Kampf, inclusive (e acredito que principalmente) com apontamentos sobre os erros e incoerências na forma em que o alemão foi escrito.
Corrigindo: o livro entrará em circulação em 2015, aniversário de 70 anos da morte de Hitler.
"(...)Uma edição comentada deverá trazer os manuscritos do autor, correções, perfis, mapas e estatísticas. Ela deverá mostrar, por exemplo, que o então jovem nazista tirou grande parte das idéias de outros autores, "vendendo-as" como suas. Também deverá mostrar como assessores tentaram melhorar, ao longo das edições, o estilo repetitivo e confuso do ditador.(...)"
Aqui a reportagem, caso queira ler: http://www1.folha.uol.com.br/fsp/mundo/ft2206200805.htm
www1.folha.uol.com.br/fsp/
mundo/ft2206200805.htm
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