Houve um tempo em que toda a terra tinha uma só língua e servia-se das mesmas palavras. E todas as coisas sobre o mundo e além do mundo e ocultas sob o véu das luzes que cobrem os olhos e dos sons que acalentam os ouvidos, todas essas coisas podiam ser ditas. Isso era em Senaar. Os filhos dum antigo dilúvio vieram de um só ramo, e todos tinham a mesma origem, e serviam-se das mesmas palavras. As palavras designavam a partir das mais simples formas das formas simples, que quais peças de montar se conjugavam em possibilidades quase infinitas; porque não eram infinitas as coisas a serem ditas, apenas muitas.
E o nosso sonho de prosa, este nosso sonho escravo de representações, o nosso sonho de ter o tudo nas páginas dos livros e em cada boca, de ver tudo excluído do não-dito, da ambigüidade, do inominável, do desconhecido, esse nosso sonho foi uma vez realidade. Nenhuma palavra planava no céu da linguagem como abstrações que flutuam nos dias sem a nossa mínima suspeita, mas dava com nossas caras na dureza ou leveza das coisas e de cada coisa, na verdade dos atos, na mais clara forma do pensamento. Podia-se falar da origem das coisas, das transcendências, das essências ocultas sob as superfícies, das imaginações e dos sonhos, e sem erros, e sem que um ao ouvi-las pudesse pensar em algo distinto daquele que as dizia. O amor, bibliotecas de dicionários registravam algumas centenas de formas diferentes para dizê-lo, esta palavra que para nós abraça tanta coisa e não diz nada. Dizia o namorado à namorada que não a amava mais, mas que a amava, e cada amor era diferente, e a namorada que o amava ainda, mas não o amava já, compreendia que era diferente e que não podiam mais partilhar os leitos e roçar os corpos na planície pulsante ao rio Tigre cheio de vida. E hoje só se pode amar ou não, e o te amo à mãe é igual ao que se dá àquela que se emaranha nas tuas pernas, e o nosso desespero é o desespero de que algo ficou por dizer.
Deus viu aquele povo e pensou que tal povo poderia executar todos os empreendimentos e assim seriam como Deus. Mas Deus não rivaliza, é uno. Lançou a confusão no solo de Senaar e nunca mais a mesma língua foi partilhada.
Dizem-nos de tal história que houve um povo que construía uma torre para alcançar os céus. Engana-se quem pensa nos tijolos cozidos e nos vitrais e nos pórticos e nas colunas e nas enormes paredes interrompendo o horizonte, isso tudo que se faria à custa das fundações – e até Deus sabia disso. A torre de Babel era a língua dos filhos de Noé. O subentendido, o por-dizer, aquilo para o que a garganta nos falta, isso tudo é um vapor que emerge dos infernos: o céu alcança quem os elimina e quem assim elimina todas as possibilidades, todos os progressos, que são próprios de quem é dominado pelo que somente aparece quando faltam os nomes – o desejo. Houve um povo, esse povo, estagnado na impossibilidade infinita, mas a impossibilidade infinita é o apanágio de Deus.
Que só semeou a confusão porque por um momento foi a Ele que faltaram as palavras.
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