o livro faz o
sentido, o sentido faz a vida
Roland Barthes
I
Na metafísica da República platônica, o caminho do saber se faz para o alto, em direção ao conhecimento mais importante, o do
bem, cuja figura é o sol que projeta as sombras nas paredes da
caverna. Há, porém, um momento em que o filósofo deverá sair
dessas alturas para voltar ao solo, à partilha da vida comum na
cidade com a experiência de seu saber. Esse retorno não seria
também o retorno do leitor de seu espaço confinado – o gabinete do
narrador da Recherche proustiana - à vida dos afazeres
mundanos? Mas, tendo experimentado a partir de uma abolição do
mundo todos os prazeres da leitura, o que disso resta ao leitor que
se revê no meio dos turbilhões da vida?
De outro modo, o que há além do livro? Ou, é Barthes que o
pergunta: “por que não continuamos um livro?”. Giorgio
Agamben, apoiado sobre a poesia medieval e sobre Valéry, já se
colocou a questão do fim do poema e do fim do verso. Segundo ele, o
que marca a especificidade da poesia é o enjambement, definido como
uma cisão entre o som e o sentido, uma não-coincidência
fundamental entre o fim de um conjunto sonoro e semiótico – o
verso – e de um conjunto semântico – a frase. Disso ele conclui
que o fim do poema, no momento em que o enjambement não é mais
possível, faz o leitor se abismar sobre o silêncio, sobre uma queda
infinita.
Essa precipitação do leitor, devemos limitá-la ao fim do poema?
Ora, é também pelo infinito (e pelo retorno à história) que
Barthes define o gozo para além do livro: “de parte a outra, a
escritura-leitura se expande ao infinito, compromete todo o homem,
seu corpo e sua história; é um ato de pânico, cuja única
definição segura é que ele não se detém em lugar nenhum”.
Saindo da verticalidade das alturas e dos abismos, é dessa expansão
infinita e horizontal que nos ocuparemos agora.
II
Uma inundação das rotas que conduzem à cidade isola um jovem
estudante de medicina na fazenda de seu primo. Para poder trocar
algumas palavras com a família do peão, o estudante se põe a
ler-lhes o Evangelho segundo Marcos, com o que ele ganha o interesse deles. Tendo curado uma pequena cabra com comprimidos, ele ganha
também o seu respeito. As chuvas continuam, e a família lhe pede novamente a leitura do mesmo Evangelho. No fim, chegando o bom tempo e o
dia de partir dali, o jovem é arrancado de sua cama e maldito pela
família. Fora da casa, vê uma cruz que foi levantada para si.
Eis, grosso modo, a trama do conto O Evangelho segundo Marcos, de
Jorge Luís Borges. Pode-se ver que o escritor desenvolve aqui, numa
escala menor, porém mais intensa, a experiência da leitura
que já conhecemos com Dom Quixote ou com Emma Bovary. Longe de
abandonar o texto à esfera do separado, esses leitores se deixam
marcar por ele, atravessar seus corpos por sua letra, a fim de se
expandir do fim do livro à história do qual eles fazem parte.
Se com a leitura clandestina, separada, do narrador proustiano de
que fala Barthes, a gente o identifica com o sujeito amoroso ou com o
sujeito místico que abole o mundo, com a leitura transbordada de
nossos peões, a gente os identifica com o sujeito esquizofrênico
que não abole, mas retoma o mundo, o mundo, porém, sob o modo de sua abolição.
Esse leitor lunático se vê tomado a um só tempo pelas “três
vias pelas quais a Imagem da leitura pode capturar o sujeito que lê”
- a saber, a leitura metafórica ou poética, a leitura
metonímica e a leitura condutora do Desejo de escrever.
De início, o texto libera uma máquina de leitura metonímica que
avança ao longo do livro, gozando o seu suspense, mas que não pode
se deter no fim. Essa máquina se precipita, assim, além do livro,
em direção ao infinito da história, com seu corpo novo – porque
o gozo lhe é constituinte. Retomando o mundo e mantendo o suspense,
nosso leitor sentirá na sequência a necessidade de o metaforizar,
para ultrapassar as categorias enrijecidas da realidade e da língua
comuns. Digamos: contra o fetichismo que conserva as coisas tais como
elas são, essa máquina opõe um fetichismo violento que procura se
substituir ao primeiro, dando uma nova roupagem ao – ou despindo o
- mundo. E eis aí Dom Quixote fazendo de moinhos gigantes; Emma
Bovary fazendo seus amores sucederem-se e substituírem-se um ao
outro; o jovem médico, após a cura da cabra, visto como o novo
Jesus Cristo. Após ter sido atravessado pelo texto, o próprio
leitor perfura o mundo, fazendo deste o espaço privilegiado de sua
aventura pessoal.
Perfurar o mundo: a experiência ocidental da escritura é
justamente aquela da inscrição - “para o escriba ou o copista
ocidental, preparar-se para escrever é talhar sua pluma (gesto
agressivo, predator, despedaçante)”, segundo Barthes. Se a
terceira via que caputra o sujeito que lê é aquela do Desejo de
escrever, e se, no fim do livro, não encontramos mais o limite entre
o livro e o mundo (relembremos a máxima mallarmaica: “tudo no
mundo existe para chegar ao livro”, e vice-versa), podemos
então dizer que desejar a escritura/inscritura
do mundo, como
fizeram esses leitores esquizofrênicos, é também uma forma de ser
capturado pelas Imagens da leitura.
III
Ironia assustadora: um texto cujo pacto ficcional
demanda do leitor o reconhecimento de sua verdade, como o do
Evangelho segundo Marcos, pode aguentar essa verdade? Ou nos incumbe
proteger o texto de si mesmo, criando espaços separados, gozos
vigiados, interpretações autorizadas? É claro que a experiência
dos nossos leitores esquizofrênicos é uma experiência limite, mas
o perigo que toda escritura oculta em si nunca passou despercebido pelas diferentes forças da censura, desde a expulsão
dos poetas da República platônica até os meios de controle do
mercado, do direito de autor e das instituições legitimantes do
discurso crítico. Ou seja, o leitor esquizofrênico é a figura
hiperbólica de uma possibilidade fundamental da leitura, aquela da
letra constituinte do sujeito.
Barthes nos diz, no fim de suas observações
sobre o Desejo: “para mim, minha
convicção profunda e constante é que nunca será possível liberar
a leitura se, no mesmo golpe, não liberamos a escritura”.
Ele se preocupa aqui da produtividade do texto, ao constatar que em
nossa sociedade, de consumo, não de produção, “tudo
está feito para bloquear a resposta”.
Do que se trata esse bloqueio? Poderíamos aproximá-lo à “separação
consolidada” de que nos fala Guy
Debord? Isola-se o texto literário por sua ficcionalidade,
separando-o da vida, para evitar o perigo de sua produtividade no
Desejo do sujeito que lê. Relega-se a literatura, e a arte em geral,
a uma estética pura, um prazer anódino ligado ao esquecimento da
vida real, aquilo que se aprecia nos momentos de descanso, para que
se possa voltar ao batente como se nada tivesse acontecido – a
“prática confortável da leitura”1.
Porém, se o postulado de que a leitura
esquizofrênica guarda em si uma das possibilidades fundamentais da
leitura, a da constituição do sujeito pela inscrição, é correto, em
qual medida podemos considerar que essa leitura confinada (enfermé),
confirmante da cultura tal como é, sem reviravoltas e crises, é,
ela mesma, parte da constituição do sujeito? Debord pode nos dar um
caminho: “a realidade considerada
parcialmente se desdobra na sua própria unidade geral enquanto
pseudo-mundo à parte,
objeto unicamente da contemplação. A especialização das imagens
do mundo se vê, cumprida, no mundo da imagem autonomizada, em
que o mentiroso mentiu-se a si mesmo”.
Ou seja, é a separação (ou a autonomização) das imagens da
literatura ou da arte que o leitor guarda e traz ao mundo. Assim, o
mundo é percebido como separado de si, a quem só resta a
contemplação ou a crítica ranzinza do homem honesto. Vê-se aqui
de novo o retorno ao mundo sob a forma de sua abolição. Mas uma
abolição não-viva, totalizante como realidade dada, independente
do sujeito. O sujeito, aqui, se constitui pela assunção da
separação; aquilo que Walter Benjamin chama de “estetização
da política”.
Embora essa leitura tenha sua produtividade, a da
reprodução da cultura corrente, é a aventura pessoal da
escritura-inscritura, da precipitação no abismo, a do próprio gozo,
que lhe falta. Essa aventura, nós a encontramos no narrador
proustiano – cujo enredo é também uma espécie de Bildungsroman
de um escritor que se escreve ao se criar pela leitura – e nossos
leitores lunáticos. É a aventura da perfuração do mundo.
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1Essa é também a forma da recepção da literatura que Barthes atribui a uma tal Sociedade dos Amigos do Texto: “chatos-boys [casse-pieds] de todo tipo, que decretam a forclusão do texto e de seu prazer, seja por conformismo cultural, seja por racionalismo intransigente (que suspeita de uma “mística” da literatura), seja por moralismo político, seja pela crítica do significante, seja por pragmatismo imbecil, seja por parvoíce burlesca, seja pela destruição do discurso, perda do desejo verbal”.
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1Essa é também a forma da recepção da literatura que Barthes atribui a uma tal Sociedade dos Amigos do Texto: “chatos-boys [casse-pieds] de todo tipo, que decretam a forclusão do texto e de seu prazer, seja por conformismo cultural, seja por racionalismo intransigente (que suspeita de uma “mística” da literatura), seja por moralismo político, seja pela crítica do significante, seja por pragmatismo imbecil, seja por parvoíce burlesca, seja pela destruição do discurso, perda do desejo verbal”.
Um comentário:
Felipe! Seu bolg sempre me é fonte de alegrias.
Obrigada!
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