Os segundos se sucedem e dão ao anterior desde já o teor de passado: tudo fica eqüidistante, a uma distância infinita, na medida do jamais alcançável. Desde o livro que acabo de largar sobre a mesa, cujas letras pequenas me fazem doer os olhos, que tentam apreendê-las sem o costumeiro auxílio do pince-nez deixado não sei onde, até o vergão disciplinador que meu pai fez marcar em minhas nádegas no dia em que ousei em público tocar minha genitália, tudo é terminantemente passado, tudo sou eu e segue à minha frente a determinar meus passos e a dar a medida do meu desespero.
Vivi tempo suficiente para consolidar meu eu e enfrentar esse desespero dando a ele a melhor e mais nobre configuração possível: a de desesperadamente ser eu mesmo, com a fé que em mim é peculiar. Mas mesmo com tantos anos que se contam em meus papéis, creio que não consegui passar ao largo de toda crise, sempre recorrente, o que prova minha tese de que o desespero é a doença mortal – não porque mata, mas porque à nossa morte o levamos - e só na eternidade é que dele podemos nos curar.
De que a Europa vai à bancarrota tenho certeza. Nossos sacerdotes pregam uma fé sem significado, destituída de valor intramundano porque sem sentido aparente, dirigida ao nada e passada de gerações a gerações pela comodidade da tradição, que não costumamos questionar ou sequer dela dar-nos conta. Os jovens de hoje são uns arruaceiros sedutores, estetas signatários de alguma associação metafísica do mais vil hedonismo, tão vazio quanto pode ser uma vida vazia de decisões.
Os ingênuos intelectuais de nossa época insistem no romantismo que nos iguala a nada, e não na fé que atesta o absurdo da existência mas que a ela confere um porto seguro em que posso atracar, aceitando o fato de que existo e por tal é dever meu assumir para mim esta existência. É preciso que nos apropriemos de nós mesmos, sendo nós cada vez eu. Pobres senhores! Sentem-se parte funcional de um todo espacial e temporal, alienando-se ao mundo por não se reconhecerem uma unidade total, um eu. Mal sabem que derrelitos ao mundo e ao tempo, encontram-se seu eu com o dever de sê-lo nestas dimensões, das quais não participam, senão que os têm como constituintes de si mesmos!
Se sou desesperado, é porque as decisões são sempre minhas: ouso escolher.
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Um comentário:
- "Os segundos se sucedem e dão ao anterior desde já o teor de passado" na dimensão onde estou, mesmo que passe o segundo anterior costuma deixar uma seqüela
- "e não na fé que atesta o absurdo da existência mas que a ela confere um porto seguro em que posso atracar, aceitando o fato de que existo e por tal é dever meu assumir para mim esta existência" deve ser bom ter uma existência segura
- "Se sou desesperado, é porque as decisões são sempre minhas: ouso escolher" se suas decisões são desesperadoras o povo vai ter apoiar pra decidir a vida alheia...
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