quinta-feira, dezembro 21, 2006

Da traição e da passividade

Trecho de Uilisses, de James Joyce.
(Blazes Boylan se inclina acima do vão interno do carro, com seu chapéu de palha de abas largas de lado, uma flor vermelha na boca. Lenehan de boné de iatista e sapatos brancos intrometidamente destaca um fio longo de cabelo da ombreira do paletó de Blazes Boylan.)
LENEHAN
Oh! O que é que eu estou vendo aqui? Você andou escovando as teiasdearanha de algumas bocetas?
BOYLAN
(satisfeito, sorri) Trepando.
LENEHAN
Uma boa tarefa noturna.
BOYLAN
(erguendo alto quatro dedos largos grossosungulados, pisca o olho) Inflama Kate! Pra cima para mostrar para que veio ou seu dinheiro de volta. (ele estende um dedo indicador) Cheire isso.
LENEHAN
(cheira alegremente) Ah! Lagosta e maionese. Ah!
ZOE E FLORRY
(riem juntas) Ha ha ha ha.
BOYLAN
(salta com segurança do carro e grita bem alto para todos ouvirem) Olá, Bloom! A Sra. Bloom já esta vestida?
BLOOM
(num paletó de lacaio de pelúcia cor de ameixa e calções, meias compridas cor de camurça e peruca empoada) Receio que não, senhor. Os últimos acessórios...
BOYLAN
(atira seis pence para ele) Tome, para comprar gim com soda para você. (ele pendura rapidamente seu chapéu num prendedor da cabeça cornuda de Bloom) Faça-me entrar. Eu tenho um pequeno negócio particular com sua mulher, entende?
BLOOM
Obrigado, senhor. Sim, senhor. Madame Tweedy está no banho, senhor.
MARION (A sra. Bloom)
Ele devia se sentir profundamente honrado. (ela faz barulho ao sair espadanando da água) Raoul querido, venha e me enxugue. Estou na minha pele. Só de chapéu novo e uma esponja pra carro.
BOYLAN
(com um brilho alegre nos olhos) Ótimo!
BELLA
O quê? O que foi?
(Zoe segreda para ela.)
MARION
Que ele olhe, o enfeitiçado! Alcoviteiro! E se flagele! Eu vou escrever a uma poderosa prostituta ou Bartholomona, a mulher barbada, para que ela produza vergões nele de uma polegada de espessura e faça com que ele me traga um recibo assinado e selado.
BOYLAN
(aperta suas mãos) Vamos, eu não posso segurar esta coisinha por muito mais tempo. (ele sai com passadas largas de pernas rijas de cavalaria)
BELLA
(rindo) Ho ho ho ho.
BOYLAN
(falando para Bloom por cima do ombro) Você pode colocar seu olho no buraco da fechadura e se masturbar enquanto eu simplesmente penetro nela algumas vezes.
BLOOM
Obrigado, senhor. Vou fazer isso, senhor. Posso trazer dois camaradas para testemunhar o feito e bater um instantâneo? (ele segura uma jarra de ungüento) Vaselina, senhor? Flor de laranjeira...? Água morna...?
KITTY
(do sofá) Conte pra nós, Florry. Conte pra nós. O que...
(Florry sussurra para ela. Sussurrando murmúrios de palavrasdeamor, lábiolambendo ruidosamente, flopplop.)
MINA KENNEDY
(com os olhos revirados) Ó, deve ser como o perfume de gerânios e pêssegos deliciosos! Ó, ele simplesmente idolatra cada pedacinho dela! Grudados um no outro! Coberta de beijos.
LYDIA DOUCE
(abrindo a boca) Iumium. Ó! Ele a está carregando pelo quarto afora fazendo isso! Cavalgar um cavalo-de-pau. Podiam ser ouvidos em Paris e Nova York. Como bocas cheias de morango com creme.
KITTY
(rindo) Hi, hi, hi.
A VOZ DE BOYLAN
(docemente, roucamente, na boca do estômago) Oh! Fogocelestialgurkbrkarcrast!
A VOZ DE MARION
(roucamente, docemente, se elevando até a garganta) Oh! Uinaskissinapuisbuapuhue?
BLOOM
(com os olhos ultra-arregalados aperta as mãos contra o corpo) Mostre! Esconda! Mostre! Penetre nela! Mais! Se atire!
*************
Outro exemplo da genialidade, exatamente oposto do post (boa aliteração) anterior. Enquanto Proust disseca o homem com um lirismo incomensurável e um rigor estilístico baseado em frases longas e truncadas, perfeitamente encadeadas, Joyce explora o agir e o sentir humano com a linguagem inspirada na própria situação, permitindo-se subverter a realidade - confundido objetividades e subjetividades, que formam uma unidade indissociável - a ponto de descrever cada hora do dia 16 de junho de 1904 sem descrevê-la, isto é, por impressões que a própria sintaxe, que varia durante toda a obra, e a miríade de gêneros literários que encaixou no romance nos deixam. No trecho transcrito, a realidade é alucinada e absurda, própria para um homem de alma atormentada em tarde da noite, embriagado num bordel de Dublin; e, entretanto, temos uma medida ainda mais exata do que é real.

Nenhum comentário: