sexta-feira, dezembro 22, 2006

Desonra

Texto meu escrito para o antigo blog Realismo Superfantástico.

Fato é: houve duelo. Conto-te como foi, e não te importes com o motivo, que motivos de duelos são coisas às quais nem duelistas dão importância. Já houve caso contado, e não raro deve ser, em que se duelaram dois dos mais nobres espadachins da França por questão de onde apor a cerca. Vê bem: querelavam por cinco palmos de terra, nada mais, talvez menos. E achas que tal motivo lhes valeu a luta e o sangue esvaído? Óbvio que não. Razão por razão, a luta por si só já é suficiente, o resto estopim é.

O fato é: houve duelo, e nada mais pode interessar.

As horas eram altas, os duelos já eram proibidos na época. Mas a honra, que em lei da natureza o decreto do homem não se mete, ainda é a honra, e defendê-la é ainda defendê-la. O Espadachim vê o Espadachim e fica certo da vitória. O Espadachim, o outro, devolve a certeza ao Espadachim e o grito de en gard. Ambos, espadas em riste, pelejam então. Sabres cortam o ar refletindo as duas tochas que fracamente alumiam a cancha da batalha, os metais tilintam, os homens gemem e a noite, calada, só assiste à cena. Os inimigos são bons à mesma altura, mas não são precisos mais que segundos.

Touché!

No fim, talvez meio minuto seja pouco para horas, dias e semanas de aflição. Tanto preparo e tudo tão rápido se completa. Decepciona. O Espadachim vivo vê o Espadachim morto e não mais fica certo da vitória. A certeza que nele se dissipa, no morto se cristaliza, já que morreu com o que viveu no último momento. Um fio de sangue escorre pelos veios da terra e a rega com a exuberância da ruína, levando consigo tudo quanto na vida se construiu, talvez aos céus, talvez aos infernos. E se a espada não leva, leva a fé para que se arme no purgatório, se para lá foi.

Algo então de extraordinário ocorre: o vivo vê a si mesmo morto. Toma o lugar do outro, e põe em si vivo o outro morto, desesperando aos arrepios toda a sua alma. E percebe que perdeu tanto quanto o outro venceu; e que o que perdeu, perdeu tanto quanto o que ele mesmo, o vivo, perdia quando o sabre se enterrava por entre as costelas do inimigo. Eram iguais no nome - Espadachins -, eram iguais nas artes de lutar, eram iguais na certeza de vencer, e apenas por terem corpos separados não eram a mesma pessoa. Por tal e qual, eram iguais também na derrota. O Espadachim no qual pulsa ainda o pulso, vê o sangue do morto fazendo-se de si mesmo um com o planeta, e vê que não por honra vive, mas por sorte. Entende, enfim, que o duelo foi inútil, como todos o são. Podes alegar tu que o duelo ao menos lhe ensinou lições, mas inútil o Espadachim continua o tendo, porque, para aprendê-las, não era necessária, por pura fortuna que quiçá algum deus lhe concedeu, a morte do Espadachim outro.

2 comentários:

Beatrix Miranda disse...

gostei muito. acho que é a velha e eterna ânsia humana por sentir que podemos escapar à sina fatalista da morte sendo, de alguma forma, superior, mesmo que ao matar morra-se em parte também. o grande erro é que, como disseste, o que nos diferencia dos outros é não partilharmos o mesmo corpo. e por acaso a denominação Espadachim para ambos mostra que sem mais recursos de diferenciação, como nomes próprios, é difícil distinguir um do outro - não se sabe quem morreu e quem viveu, e no fundo não importa. a considerar-se a insignificância do que somos, a honra de cada um desempenha um papel reconfortante, um motivo pelo qual percorrer todo longo o caminho que leva a um só destino.

G. Tomé disse...

Muito bom.
Suas vírgulas são sua espada.

forte abraço.