sexta-feira, dezembro 12, 2008

No cárcere de Argel (revisado)

Acusado injustamente em minhas viagens de embaixada de D. João I pelo Marrocos, condenaram-me ao cadafalso em Fez. Diziam que a condenação de cristãos à morte superava em muito o número de seus crimes, mas creio que descortinavam nossas intenções por algum brilho oblíquo de nossos olhos. Os mouros, como cães prenunciando o dilúvio, têm alguma ligação com o inexplicável, um contato íntimo com divindades que mal podem compreender, eles apenas os sentem, todos estes milhares de Alás diferentes que parecem existir. Por milagres tais, na indizível leitura de seus cotidianos, sentem eles também todos os nossos desejos e nossas aspirações.

A notícia chegou aos meus ouvidos antes que as mãos do carrasco alcançassem meu pescoço, e minha pele corada pelo sol do deserto me deu a vantagem de ser um dissimulado mouro que empreendeu fuga pelas areias rumo a Argel, onde meu irmão comercializava linho e azeite. Já havia passado mais tempo no deserto que em minha própria casa, e, sem entretanto perder o fio da identidade que ainda era a minha, sabia as direções a tomar em meio as dunas eternamente cambiantes da eternamente desigual e injusta paisagem do Sahara.

Meti-me, na quarta noite, numa caravana de cameleiros mercadores que nada sabiam da minha sentença de morte. Sei que não deram falta por mim em Fez, tão banais eram as forcas, e sempre havia um novo cristão a perseguir em meu lugar na forma sangrenta que os mouros tinham de brincar. Assim, não havia ninguém em meu encalço, e, caso houvesse, vender-se-ia facilmente pelo ouro que carrego.

No vigésimo dia, já próximos ao litoral, fomos assaltados por bandidos com insígnias terrivelmente famosas. Os mercenários que nos acompanhavam deles deram conta, mas quando descobriram que dentre os mortos encontrava-se o filho dum emir não houve dúvidas em atribuir a culpa ao estrangeiro. Mal despontou no horizonte a guarda real fui amarrado. Tudo foi tão rápido que cheguei a Argel e antes que pudesse dizer palavra tive minha sentença de prisão perpétua decretada.

De todas as cidades da África, diz-se que nenhuma pena é mais cruel que a de Argel. Qualquer um que seja submetido à sua justiça preferirá o cadafalso de Fez, as fogueiras de Castela ou a antiga crucificação dos romanos. Mas eu ainda tinha a esperança de que a prisão perpétua, chegasse ao conhecimento do meu irmão, fá-lo-ia prontamente pagar meu resgate, e logo eu estaria na Lusitânia com os pés lá cravados para nunca mais sair. Ou então, enquanto vivo, sempre há a chance de fuga, eis que a prisão é inevitavelmente menos inexorável que a morte. Levaram-me à jaula num porão fedorento, onde passei a noite com um prato de comida que jamais pude identificar o que é. Dormi encolhido a um canto mais por cansaço que por oportunidade. Acordei com o sol batendo quente em meu rosto, a porta da minha cela aberta diretamente para uma rua repleta de azevinhos. Sonoras águas correm por aquedutos na sarjeta das ruas, larguíssimas e desoladas, embora incrivelmente belas. As pedras escuras que as pavimentam tem fina sintonia com o verde-escuro dos arbustos. Pontos vermelhos cá e ali das drupas pontilham as veredas pelas quais caminhava, de um cruzamento a outro, todos eles perfeitamente retos e amplos, cujos centros mantêm uma praça circular com fontes e coretos.

Ladeiam as ruas altos prédios com cúpulas de vidro e ouro, e minaretes com escadas externas em caracol. Todas as quadras tem um palácio assim no meio, rodeado de incontáveis casas: de uma esquina a outra se contam uns quinhentos metros de logradouro. O barulho da água a correr pelos aquedutos começou como um som agradável naquela época. Homens, sim, havia. Mas somente homens, não vi mulheres. O primeiro que cruzou por mim ao me ver baixou os olhos, com uma expressão que misturava comiseração e solidariedade em relação a mim. Todos andavam assim, e ainda andam, como que atordoados pela imponente cidade que a todos apequena.

Não é difícil descobrir por quê. Cada quadra tem suas casas e seu palácio ao centro, cada cruzamento sua praça, todas as ruas seus azevinhos e suas negras pedras polidas que ao fim da tarde refletem o sol diretamente em nossos olhos. E o céu acima é um invariável céu sem nuvens cujos astros descrevem rigorosamente a mesma trajetória todos os dias. Não há ventos, dilúvios ou tempestades de areia. Nem brisas, chuviscos e poeira. Não há mudança nenhuma na cidade, a não ser nos homens que perambulam por seu labirinto de ruas perfeitamente perpendiculares. Os dias aqui são demasiadamente homogêneos, de modo que perscrutar a memória de todos os anos vividos nesta cidade é ver nada além do mesmo imperioso dia. Como se eu, na velhice em que relato, desde meu derradeiro dia de fuga para Argel, tivesse vivido apenas este dia, ou um dia estendido em que a única mudança perceptível ocorreu em mim. E por pouco tempo até a resignação absoluta.

Mas não era só o tédio do tempo que arrasa os cidadãos desta cidade. Quando cheguei, os homens – um aqui e outro já lá longe, e depois de um tempo outro aparecia – andavam e andavam, todos aparentemente agindo por uma causa comum mas não partilhada, e todos tão centrados nesta causa que a máxima empatia era aquele mesmo olhar de comiseração, que logo aprendi a devolver na mesma medida. As casas das quadras não diziam nada, não pareciam oferecer nada, e aquele palácio ao centro tinha um ínfimo acesso por entre elas e era tão quieto e tão impassível que sua beleza passou a significar somente um desespero pela falta do viço que meus estereótipos me fizeram esperar de um palácio como aquele. Mas andava, como todos, à próxima quadra e ao próximo palácio e a próxima quadra e o próximo palácio eram ponto por ponto, sem pôr nem tirar, iguais ao que havia na quadra anterior. E assim a próxima e a outra e até hoje todas pelas quais percorri. Que podem ter sido a mesma: as ruas retas esconderiam um círculo disfarçado por – imaginei – um jogo de espelhos favorecido pelo sol que abrasa a nossa nuca.

A incrível composição da cidade e o absurdo que ela representa me fizeram desrespeitar a introspecção dos meus concidadãos. Instei um deles, com um chacoalho um tanto violento, a me dizer o que era aquilo. O homem foi de uma solicitude inesperada – e depois aprendi que todos deverão ser assim aqui, como eu próprio, e todos mais dia ou menos dia também serão interpelados com a mesma violência por algum neófito, e darão a mesma resposta que recebi. Perguntado onde estou, o que era aquilo, aquelas quadras, aquelas praças, aquelas ruas, aqueles palácios, o nome – a coisa mais inútil de se saber – daquela cidade, tudo ao mesmo tempo, respondeu-me placidamente:

- É novo aqui, bem-vindo. Ninguém deu nome a esta cidade, mas não se preocupe, tudo de que necessita nela você acha, em quaisquer destas casas. Elas são a nossa necessidade. Da cidade, há quem dela já saiu, ninguém sabe como. O que dizem é que se deve querer muito, e então se descortinará a saída. É isso que procuro agora. É isso que todos procuram, e é isso o que você provavelmente vai fazer.

Ali compreendi a prisão perpétua de Argel.

- Você é também um condenado? – perguntei.

- E também injustamente, por mais crimes que tenha feito ou que nenhum deles tenha algum dia perpetrado.

Pediu-me licença e continuou naquela efeméride do seu automatismo adquirido sem que o cego desejo de sair daquele lugar suspeitasse.

E o que pensei – agora o cego desejo era o meu – foi que bastava caminhar sem descanso. Se todos os cruzamentos fossem verdadeiramente iguais, teríamos que postular um espaço infinito na superfície da terra, o que é impossível. Este detalhe me engendrou o plano de centrar minha atenção peregrina justamente nos cruzamentos: o primeiro cuja distância do anterior fosse maior que a distância padrão do intervalo entre as esquinas seria o indicativo que a cidade não era a mesma, que não haveria próximo cruzamento, mas uma estrada, talvez especialmente curta, até a Lusitânia.

Por outro lado, o primeiro obstáculo para o meu plano não era a cidade, mas eu mesmo. O trabalho exigia que eu sobrevivesse, precisava de casa, banhos e comida. O meu interlocutor, porém, estava certo: cada casa tinha tudo que precisava. O banho com água quente, o carneiro assado (as coisas eram assim, não havia fogo), sucos e doces. Havia cama de penas e cachimbos e narguilés com fumos de vários aromas e ópio, que queimavam com as baforadas, sem que os fogueasse. Havia linho, tecidos das Índias, sal, pimenta, almofadas e até cítaras e flautas. Tinha em minhas mãos ungüentos de qualquer cheiro, óleo para os banhos, jóias de ouro e incensos calmantes, e pastas de ervas pra calos e feridas.

No entanto, a primeira coisa de que dei por falta foi o vinho, injúria dos mouros e sangue dos cristãos. Logo notei ausência de outras coisas. Quando quis entalhar madeira para ter uma bengala que me servisse de apoio nas andanças, não havia madeira nem ferramentas; quando quis marcar as esquinas por que já havia passado, não havia estiletes ou tintas; não havia palha ou papel para fazer fogo por fricção. A cidade estava a julgar que minhas necessidades eram só as que ela podia prover, nenhuma outra. Ou o meu amigo mencionara as necessidades em que pensamos quando esquecemos, na pressa de fugir, que temos outras.

Depois pensei que tanto quanto a comida e o banho, a mulher era uma necessidade ao homem. E não havia como tê-las: mulheres sofriam lapidações e não prisões perpétuas. Pensei assim, mas por ainda estar preso à minha realidade anterior. Naquela cidade, a mulher seria um estorvo à incessante busca pela saída. Busca que logo transformou esta palavra, outrora fonte de desvarios juvenis, numa vazia evocação que assemelhava todas as palavras: não as usava mais, se não para responder ao fortuito chacoalho de um novo cidadão, que, pela mesma vontade de não me desviar da busca, era rigorosamente a mesma que recebi nos meus primeiros dias. De modo que, já no hábito das quadras iguais, as palavras – mulher, deserto, Lisboa, Homero – significavam todas a mesma coisa: que tive uma vida fora dali. E se você lê estas linhas, não é porque as escrevo, mas porque alguém me resgatou nas lembranças do mundo e me traduziu numa forma em que ainda os significados existem.

E se compartilha dos significados, também imagina o tédio imenso do tempo aqui. O silêncio lá de fora aqui se tornaria ruído, e o meu silêncio seria chamado de barulho de água correndo nos aquedutos. Os dias só mudavam nas escolhas dos perfumes a usar, dos fumos a fumar e das comidas a comer. E também dos rostos com que se cruzar. Os rostos, mas não os olhares: sempre os mesmos olhares de quem partilha aquela mesma situação que era a minha, aquela solidariedade impotente que também se espelhava em meus olhos. Alguém poderia aventar que uma resignação far-nos-ia reunir, ser convivas de mesas, trocar histórias e fazer histórias naquela cidade. Enfim, mudá-la por nossa própria força e convivência. Mas ninguém era capaz disso: cada interação seria um passo a menos rumo à saída.

O que fiz por alguns dias, para tornar um diferente do outro, era imaginar coisas de que precisasse e que a cidade não poderia me dar. Imaginei espadas e cimitarras: mas ninguém precisa disso. Imaginei governos e regras: inúteis. Imaginei bibliotecas, o Pentateuco e o Livro de Jó, o Corão, as Mil e Uma Noites e a Odisséia: deleites frívolos ou inspiração para um fanatismo estúpido. Imaginei carros e camelos: mas eles encurtam o mundo e fazem perder sua dimensão. A cidade vencia ao me mostrar que nada além dela me servia. Mas quando pensei em minha família e em meus amigos, não consegui ver a inutilidade, e isso a cidade não tinha. Percebi que a cidade me dominava: me fazia viver, e só viver, para aceitar sua força sobre mim, sua imutabilidade indiferente a toda angústia que eu pudesse ter. Era claro: se não havia fogo e estiletes, tintas e ferramentas, era justamente para que ela se mantivesse sempre da mesma forma, e que eu não pudesse jamais mudá-la. E isso se confirmou quando vi que as plantas não eram vivas, mas uma imagem sólida e resistente aos meus golpes. O movimento era contra a cidade, que só se permitia o correr das águas e a sucessão da noite ao dia e deste àquela.

Mudei então minha estratégia. Primeiro resolvi entrar em um dos palácios, o que eu nunca pensara para não me desviar das ruas. A única coisa que havia em suas naves e seus vãos eram os ecos de meus passos. Passei tempos que julgo ser vários anos investigando cada sala (eram quinhentas, pelas minhas contas, provavelmente erradas) de dois palácios. E eram iguais, e eram vazios, e não escondiam a saída. Então atentei para a água dos aquedutos, cujo correr destoava da imobilidade da cidade. Pensei que se eu seguisse sua corrente, que era como ratos fugindo das embarcações naufragantes, alcançaria os muros e os pórticos da cidade. E foi incrível como não havia notado isso antes: as águas corriam ao redor das quadras. Os aquedutos jamais se comunicavam. E era inexplicável sua corrente: a cidade era perfeitamente plana, que força impelia as águas?

Não me restou senão voltar ao primitivo plano das andanças sem fim. As quais andei até hoje, vendo a cidade infinita parada na mesma hora em que cheguei. Eu é que não parei, envelheci. E hoje sinto - como os mouros sentiram os crimes que fiquei por cometer - que descobri a saída, e a quero muito. Mas sinto também que é meu último dia. O que no fim das contas é a mesma coisa.

Um comentário:

Anônimo disse...

belíssimo! admirador das cidades invisívels, eu não poderia deixar de admirar tb Árgel e sua bem construída fortaleza do tempo, estanque