sábado, novembro 29, 2008

Carta a uma senhorita de Paris

Por Julio Cortázar. Tradução minha.

Andrée, eu não queria acabar morando em seu apartamento na rua Suipacha. Não tanto pelos coelhinhos, antes porque me dói ingressar em uma ordem fechada, já construída até nas mais finas malhas do ar, essas que em sua casa preservam a música da lavanda, o bater de asas de um cisne com poeira, o jogo do violino e da viola no quarteto de Rará. Me é amargo entrar em um âmbito onde alguém que vive belamente o dispôs inteiro como uma reiteração visível de sua alma, aqui os livros (de um lado em espanhol, do outro em francês e inglês), ali os almofadões verdes, neste lugar preciso da mesinha o cinzeiro de cristal que parece o corte de uma de uma bolha de sabão, e sempre um perfume, um som, um crescer de plantas, uma fotografia do amigo morto, ritual de bandejas com chá e as colherzinhas do açúcar... Ah, querida Andrée, como é difícil se opor, ainda aceitando-a com inteira submissão do próprio ser, à ordem minuciosa que uma mulher instaura em sua lânguida residência. Quão culpável é pegar uma tacinha de metal o colocá-la no outro extremo da mesa, colocá-la ali simplesmente porque alguém trouxe seus dicionários ingleses e é deste lado, ao alcance da mão, onde deverão estar. Mover essa tacinha vale por um horrível vermelho inesperado no meio de uma modulação de Ozenfant, como se de um golpe as cordas de todos os contrabaixos se rompessem ao mesmo tempo com a mesma espantosa chicotada no instante mais calado de uma sinfonia de Mozart. Mover essa tacinha altera o jogo de relações de toda a casa, de cada objeto com outro, de cada momento de sua alma com a alma inteira da casa e sua habitante distante. E eu não posso aproximar de um livro os dedos, cingir apenas o cone de luz de um abajur, destampar a caixa de música, sem que um sentimento de ultraje e desafio me passe pelos olhos como um bando de pardais.

Você sabe por que vim a sua casa, ao seu quieto salão solicitado ao meio-dia. Tudo parece tão natural, como sempre que não se sabe a verdade. Você se foi a Paris, eu fiquei com o apartamento da rua Suipacha, elaboramos um simples e satisfatório plano de mútua conveniência até que setembro lhe traga de novo a Buenos Aires e me lance a alguma outra casa onde talvez... Mas não lhe escrevo por isso, esta carta a envio por causa dos coelhinhos, parece-me justo deixá-la a par, e porque gosto de escrever cartas, e talvez porque chove.

Mudei-me na sexta-feira passada, às cinco da tarde, entre névoa e tédio. Fechei tantas malas em minha vida, passei tantas horas fazendo a bagagem que não levava a lugar nenhum, que a sexta foi um dia cheio de sombras e correias, porque quando eu vejo as correias das malas é como se visse sombras, elementos de um chicote que me açoita indiretamente, da maneira mais sutil e mais horrível. Mas fiz as malas, avisei a sua mucama que viria me instalar, e subi no elevador. Justo entre o primeiro e o segundo andar sentia que ia vomitar um coelhinho. Nunca o havia explicado antes, não creia que por deslealdade, mas é natural que alguém não se ponha a explicar às pessoas que de vez em quando vomita um coelhinho. Como sempre me sucedeu estando sozinho, guardava o fato como se guardam tantas vezes o que acontece (ou alguém faz acontecer) na privacidade total. Não me reprove, Andrée, não me reprove. De vez em quando me ocorre de vomitar um coelhinho. Não é razão para não viver em qualquer casa, não é razão para que alguém tenha que se envergonhar e estar ilhado e andar calando-se.

Quando sinto que vou vomitar um coelhinho, ponho dois dedos na boca como uma pinça aberta, e espero sentir na garganta a pelugem morna que sobe como uma efervescência de sal de frutas. Tudo é veloz e higiênico, transcorre num brevíssimo instante. Tiro os dedos da boca, e neles trago segurado pelas orelhas um coelhinho branco. O coelhinho parece contente, é um coelhinho normal e perfeito, só que muito pequeno, pequeno como um coelhinho de chocolate, mas branco, e inteiramente um coelhinho. Coloco-o na palma da mão, levanto-lhe a pelugem com um carinho dos dedos, o coelhinho parece satisfeito de ter nascido e se agita e gruda seu focinho contra minha pele, movendo-o com essa trituração silenciosa e que faz cócegas de um focinho contra a pele de uma mão. Procura comer e então eu (falo de quando isso ocorria no quintal da minha casa) eu o retiro comigo à sacada e o coloco no grande vaso onde cresce o trevo que a propósito plantei. O coelhinho levanta totalmente suas orelhas, envolve o trevo tenro com um veloz molinete do focinho, e eu sei que posso deixá-lo e ir, continuar por um tempo uma vida que não é diferente da de tantos que compram seus coelhos nas granjas.

Entre o primeiro e o segundo andar, Andrée, como um anúncio do que seria minha vida em sua casa, soube que ia vomitar um coelhinho. Em seguida tive medo (ou era estranheza? Não, medo da mesma estranheza, por acaso) porque antes de deixar minha casa, somente dois dias antes, havia vomitado um coelhinho e estava seguro por um mês, por cinco semanas, talvez seis com um pouco de sorte. Veja você, eu tinha resolvido perfeitamente o problema dos coelhinhos. Plantava trevo na sacada de minha outra casa, vomitava um coelhinho, colocava-o no trevo e ao cabo de um mês, quando suspeitava que de um momento a outro... então presenteava o coelho já crescido à senhora de Molina, que acreditava em um hobby e se calava. Já no outro vaso onde crescia um trevo jovem e propício, eu aguardava sem preocupação a manhã em que a coceguinha de uma pelugem subindo me fechava a garganta, e o novo coelhinho repetia desde essa hora a vida e os costumes do anterior. Os costumes, Andrée, são formas concretas do ritmo, são a quota de ritmo que nos ajuda a viver. Não era tão terrível vomitar coelhinhos, uma vez que se havia entrado no ciclo invariável, no método. Você desejará saber por que todo esse trabalho, porque todos esses trevos e a senhora de Molina. Seria preferível matar em seguida o coelhinho e... Ah, teria você que vomitar somente um, tomá-lo com os dedos e colocá-lo não mão aberta, aderido a você pelo mesmo ato, pela aura inefável de sua proximidade apenas rota. Um mês isso leva, um mês é o suficiente, pêlos compridos, saltos, olhos selvagens, diferença absoluta. Andrée, em um mês é um coelho, faz-se um coelho de verdade; mas o minuto inicial, quando o tufo morno e agitado encobre uma presença inalienável... Como um poema nos primeiros minutos, o fruto de uma noite de Iduméia: tão de alguém como alguém mesmo... e depois tão diferente, tão ilhado e distante em seu mundo branco plano do tamanho de uma carta.

Me decidi, contudo, a matar o coelho assim que nascesse. Eu viveria quatro meses na sua casa: quatro – talvez, com sorte, três – colheradas de álcool no focinho. (Sabe você que a misericórdia permite matar instantaneamente um coelhinho dando-lhe de beber uma colherada de álcool? Sua carne, logo, fica melhor, ainda que eu... Três ou quatro colheradas, e daí o banheiro ou um pacote somando-se aos resíduos).

Ao cruzar o terceiro andar o coelhinho se movia em minha mão aberta. Sara esperava lá em cima, para ajudar-me a carregar as malas... Como explicar-lhe que um capricho, uma loja de animais? Envolvi o coelhinho com meu lenço, coloquei-o no bolso do sobretudo, deixando o sobretudo aberto para não oprimi-lo. Só se movia. Sua consciência miúda devia estar-lhe resolvendo fatos importantes: que a vida é um movimento para cima com um click final, e que é também um céu baixo, branco, envolvente e cheirando a lavanda, no fundo de um poço morno.

Sara não viu nada, fascinava-a demais o problema árduo de ajustar seu sentido de ordem à minha mala-roupeiro, meus papéis e minha displicência perante suas elaboradas explicações onde abunda a expressão “por exemplo”. Só pude me fechar no banheiro, matá-lo agora. Uma fina zona de calor rodeava o lenço, o coelhinho era branquíssimo e creio que mais lindo que os outros. Não me olhava, somente de agitava e estava contente, o que era mais o mais horrível modo de me olhar. Tranquei-o na gaveta vazia e voltei para desfazer as malas, desorientado mas não infeliz, não culpado, não lavando minhas mãos para livrá-las de uma última convulsão.

Compreendi que não podia matá-lo. Mas nessa mesma noite vomitei um coelhinho preto. E dois dias depois um branco. E na quarta noite um coelhinho cinza.



Você amará o belo armário do seu dormitório, com a grande porta que se abre generosa, as prateleiras vazias à espera de minha roupa. Agora os tenho aqui, aqui dentro. Verdade que parece impossível, nem Sara o creria. Porque Sara não suspeita de nada, e o que não suspeita não procede da minha horrível tarefa, uma tarefa que leva meus dias e minhas noites num só golpe de ancinho e vai me calcinando por dentro e endurecendo como essa estrela de mar que você pôs sobre a banheira e que a cada banho parece encher a alguém o corpo de sal e açoites de sol e grandes rumores da profundidade.

De dia dormem. São dez. De dia dormem. Com a porta fechada, o armário é uma noite diurna somente para eles, ali dormem sua noite com sossegada obediência. Levo comigo as chaves do quarto ao partir para o meu serviço. Sara deve crer que desconfio de sua honradez e me olha com dúvida, vê-se todas as manhãs que está para me dizer algo, mas ao final se cala e eu fico tão feliz. (Quando limpa o quarto, das nove às dez, faço barulho no salão, coloco um disco de Benny Carter que ocupa toda a atmosfera, e como Sara é também amiga de saetas e pasodobles, o armário parece silencioso e, acaso assim esteja, é porque para os coelhinhos transcorre já a noite e o descanso).

Seu dia começa a essa hora que segue ao jantar, quando Sara leva a bandeja com um leve tilintar das colherzinhas do açúcar, me deseja boa noite – sim, me deseja, Andrée, o mais amargo é que me deseja uma boa noite – e se fecha em seu quarto e logo estou eu sozinho, só com o armário condenado, só com meu dever e minha tristeza.

Deixo-os sair, lançarem-se ágeis ao ataque do salão, cheirando vivazes o trevo que meus bolsos ocultavam e agora há no tapete efêmeros pontinhos que eles alteram, removem, acabam em um momento. Comem bem, calados e corretos, até esse instante nada tenho a dizer, olho-os somente desde o sofá, com um livro inútil na mão – eu que queria ler todos seus Giradoux, Andrée, e a história argentina de López, que você tem na prateleira mais baixa -; e comem o trevo.

São dez. Quase todos brancos. Levantam a cabeça leve para os abajures do salão, os três sóis imóveis de seu dia, eles que amam a luz porque sua noite não tem lua nem estrelas nem faróis. Olham seu triplo sol e estão contentes. Assim é que saltam pelo tapete, às cadeiras, dez manchas levianas se trasladam como uma constelação movente de uma parte a outra, enquanto eu queria vê-los quietos, vê-los aos meus pés e quietos – um pouco o sonho de todo deus, Andrée, o sonho nunca cumprido dos deuses -, não assim insinuando-se atrás do retrato de Miguel de Unamuno, em torno do vaso verde claro, pela negra cavidade da escrivaninha, sempre menos de dez, sempre seis ou oito e eu me perguntando onde andarão os dois que faltam, e se Sara se levantasse por qualquer coisa, e a presidência de Rivadavia que eu queria ler na história de López.

Não sei como resisto, Andrée. Você recorda que vim descansar em sua casa. Não é culpa minha se de vez em quando vomito um coelhinho, se esta mudança me alterou também por dentro – não é nominalismo, não é magia, somente que as coisas não se podem variar assim de repente, às vezes as coisas mudam brutalmente e quando você esperava a bofetada pela direita -. Assim, Andrée, ou de outro modo, mas sempre assim.

Escrevo-lhe de noite. São três da tarde, mas lhe escrevo na noite deles. De dia dormem. Que alívio este escritório coberto de gritos, ordens, máquinas Royal, vice-presidente e mimeógrafos! Que alívio, que paz, que horror, Andrée! Agora me chamam pelo telefone, são os amigos que se inquietam pelas minhas noites de retiro, é Luis que me convida para caminhar ou Jorge que me avisa de um concerto. Quase não me atrevo a dizer-lhes que não, invento prolongadas e ineficazes histórias de saúde ruim, de traduções atrasadas, de evasão. E quando volto e subo no elevador – esse trecho, entre o primeiro e o segundo andar – formulo-me noite a noite irremediavelmente a vã esperança de que não seja verdade.

Faço o que posso para que não destruam suas coisas. Roeram um pouco os livros da prateleira mais baixa, você os encontrará dissimulados para que Sara não se dê conta. Você queria muito seu abajur com a base de porcelana cheia de mariposas e cavaleiros antigos? Só se percebe o trinco, toda a noite trabalhei com um cimento especial que me venderam numa casa inglesa – você sabe que as casas inglesas têm os melhores cimentos – e agora me coloco ao lado para que nenhum o alcance outra vez com as patas (é quase bonito ver como gostam de ficar parados, nostalgia do humano distante, talvez imitação de seu deus andando e olhando-os áspero; além disso você terá percebido – em sua infância, quem sabe – que se pode deixar um coelhinho em penitência contra a parede, parado, as patinhas apoiadas e muito quieto por horas e horas).

Às cinco da manhã (dormi um pouco, estendido no sofá verde e acordando a cada corrida felpuda, a cada tilintar) coloco-os no armário e faço a limpeza. Por isso Sara encontra tudo certo ainda que às vezes tenha visto nela algum assombro contido, um ficar-se olhando um objeto, uma leve desbotado do tapete, e de novo o desejo de me perguntar algo, mas eu assoviando as variações sinfônicas de Franck, de maneira que nada acontece. Para que contar-lhe, Andrée, as minúcias desventuradas de esse amanhecer surdo e vegetal, em que caminho sonolento levantando hastes de trevo, folhas soltas, pelugem branca, me batendo contra os móveis, louco de sono, e meu Gide que se atrasa, Troyat que não traduzi, e minhas respostas a uma senhora distante que estará se perguntando já se... para que seguir com tudo isso, para que seguir esta carta que escrevo entre telefones e entrevistas.

Andrée, querida Andrée, meu consolo é que são dez e não mais. Faz quinze dias que retive na palma da mão um último coelhinho, depois nada, somente os dez comigo, sua noite diurna, e crescendo, já feios, e nascendo-lhes o pêlo comprido, já adolescentes e cheios de urgências e caprichos, saltando sobre o busto de Antínoo (é Antínoo, não, esse rapaz que olha cegamente?) ou perdendo-se na sala de estar onde seus movimentos criam ruídos ressoantes, tanto que dali devo tirá-los por medo que Sara os ouça e me apareça horripilada, talvez com camisola – porque Sara tem de ser assim, com camisola – e então... Somente dez, pense você essa pequena alegria que tenho no meio de tudo, a crescente calma com que percorro de volta os rígidos céus do primeiro e do segundo andar.



Interrompi esta carta porque devia assistir a um trabalho de comissões. Continuo-a aqui em sua casa, Andrée, sob uma surda grisaille do amanhecer. É realmente o dia seguinte, Andrée? Um espaço em branco da página será para você o intervalo, apenas a ponte que une minha letra de ontem e minha letra de hoje. Dizer-lhe que nesse intervalo tudo se perdeu, onde você olha a ponte eu fácilmente ouço se quebrar a cintura furiosa da água, para mim este lado do papel, este lado de minha carta não continua a calma com que vinha eu lhe escrevendo quando a deixei para assistir a um trabalho de comissões. Em sua cúbica noite sem tristeza dormem onze coelhinhos; acaso agora mesmo, mas não, não agora. No elevador, logo, ou ao entrar; já não importa onde, se o quando é agora, se pode ser em qualquer agora dos que me restam.



Já basta, escrevi isto porque me importa provar-lhe que não fui tão culpado na ruína inevitável de sua casa. Deixarei esta carta esperando-a, seria sórdido que o correio a entregasse numa manhã clara de Paris. À noite virei os livros da segunda estante; eles já os alcançavam, parando ou saltando, roeram as lombadas para afiar os dentes – não por fome, têm todo o trevo que lhes compro e ameixa nas gavetas da escrivaninha. Romperam as cortinas, o estofado das poltronas, a moldura do auto-retrato de Augusto Torres, encheram de pêlos o tapete e também gritaram, estiveram em círculo sob a luz da lâmpada, em círculo e como que me adorando, e de repente gritavam, gritavam como eu não creio que gritem os coelhos.

Quis em vão tirar os pêlos que estragam o tapete, alisar a moldura da tela roída, encerrá-los de novo no armário. O dia sobe, talvez Sara se levante logo. É quase estranho que Sara não me importe. É quase estranho que não me importe vê-los saltar na busca de brincadeiras. Não tive tanta culpa, você verá quando chegar que muitos dos destroços estão bem consertados com o cimento que comprei em uma casa inglesa, eu fiz o que pude para evitar-lhe que se zangue... Quanto a mim, do dez ao onze há como um eco insuperável. Você vê: dez estava bem, com um armário, trevo e esperança, quantas coisas se podem construir. Já não com onze, porque dizer onze é seguramente dizer doze, Andrée, doze que será treze. Então está o amanhecer e uma solidão fria na qual cabem a alegria, as lembranças, você e acaso muito mais. Está esta sacada sobre Suipacha cheio de aurora, os primeiros ruídos da cidade. Não creio que lhes seja difícil juntar onze coelhinhos salpicados sobre a calçada, talvez nem se fixem neles, atarefados com o outro corpo que convém levar rapidamente, antes que passem os primeiros estudantes.

2 comentários:

Lu disse...

ah, e vc tá muito prosaico...
rs

Anônimo disse...

opeseeals
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greeguash