sábado, dezembro 30, 2006

Ocaso

Veio uma palavra, veio
veio pela noite,
queria brilhar, queria brilhar
Cinzas
Cinzas, cinzas
Paul Celan
Engravidei
de uma palavra.
Mas abortei(amos).

Foi para o céu,
escarrapachada no chão.

Engravidei
de uma idéia.
Mas a matei(amos).

Foi para o céu,
apunhalada no chão.

Engravidei,
Mas era um ruído.
Evaporou sozinho.

Foi para o céu
desaparecido do chão.

A última vez que engravidei
Foi de um homem mudo.

sexta-feira, dezembro 22, 2006

Desonra

Texto meu escrito para o antigo blog Realismo Superfantástico.

Fato é: houve duelo. Conto-te como foi, e não te importes com o motivo, que motivos de duelos são coisas às quais nem duelistas dão importância. Já houve caso contado, e não raro deve ser, em que se duelaram dois dos mais nobres espadachins da França por questão de onde apor a cerca. Vê bem: querelavam por cinco palmos de terra, nada mais, talvez menos. E achas que tal motivo lhes valeu a luta e o sangue esvaído? Óbvio que não. Razão por razão, a luta por si só já é suficiente, o resto estopim é.

O fato é: houve duelo, e nada mais pode interessar.

As horas eram altas, os duelos já eram proibidos na época. Mas a honra, que em lei da natureza o decreto do homem não se mete, ainda é a honra, e defendê-la é ainda defendê-la. O Espadachim vê o Espadachim e fica certo da vitória. O Espadachim, o outro, devolve a certeza ao Espadachim e o grito de en gard. Ambos, espadas em riste, pelejam então. Sabres cortam o ar refletindo as duas tochas que fracamente alumiam a cancha da batalha, os metais tilintam, os homens gemem e a noite, calada, só assiste à cena. Os inimigos são bons à mesma altura, mas não são precisos mais que segundos.

Touché!

No fim, talvez meio minuto seja pouco para horas, dias e semanas de aflição. Tanto preparo e tudo tão rápido se completa. Decepciona. O Espadachim vivo vê o Espadachim morto e não mais fica certo da vitória. A certeza que nele se dissipa, no morto se cristaliza, já que morreu com o que viveu no último momento. Um fio de sangue escorre pelos veios da terra e a rega com a exuberância da ruína, levando consigo tudo quanto na vida se construiu, talvez aos céus, talvez aos infernos. E se a espada não leva, leva a fé para que se arme no purgatório, se para lá foi.

Algo então de extraordinário ocorre: o vivo vê a si mesmo morto. Toma o lugar do outro, e põe em si vivo o outro morto, desesperando aos arrepios toda a sua alma. E percebe que perdeu tanto quanto o outro venceu; e que o que perdeu, perdeu tanto quanto o que ele mesmo, o vivo, perdia quando o sabre se enterrava por entre as costelas do inimigo. Eram iguais no nome - Espadachins -, eram iguais nas artes de lutar, eram iguais na certeza de vencer, e apenas por terem corpos separados não eram a mesma pessoa. Por tal e qual, eram iguais também na derrota. O Espadachim no qual pulsa ainda o pulso, vê o sangue do morto fazendo-se de si mesmo um com o planeta, e vê que não por honra vive, mas por sorte. Entende, enfim, que o duelo foi inútil, como todos o são. Podes alegar tu que o duelo ao menos lhe ensinou lições, mas inútil o Espadachim continua o tendo, porque, para aprendê-las, não era necessária, por pura fortuna que quiçá algum deus lhe concedeu, a morte do Espadachim outro.

quinta-feira, dezembro 21, 2006

Da traição e da passividade

Trecho de Uilisses, de James Joyce.
(Blazes Boylan se inclina acima do vão interno do carro, com seu chapéu de palha de abas largas de lado, uma flor vermelha na boca. Lenehan de boné de iatista e sapatos brancos intrometidamente destaca um fio longo de cabelo da ombreira do paletó de Blazes Boylan.)
LENEHAN
Oh! O que é que eu estou vendo aqui? Você andou escovando as teiasdearanha de algumas bocetas?
BOYLAN
(satisfeito, sorri) Trepando.
LENEHAN
Uma boa tarefa noturna.
BOYLAN
(erguendo alto quatro dedos largos grossosungulados, pisca o olho) Inflama Kate! Pra cima para mostrar para que veio ou seu dinheiro de volta. (ele estende um dedo indicador) Cheire isso.
LENEHAN
(cheira alegremente) Ah! Lagosta e maionese. Ah!
ZOE E FLORRY
(riem juntas) Ha ha ha ha.
BOYLAN
(salta com segurança do carro e grita bem alto para todos ouvirem) Olá, Bloom! A Sra. Bloom já esta vestida?
BLOOM
(num paletó de lacaio de pelúcia cor de ameixa e calções, meias compridas cor de camurça e peruca empoada) Receio que não, senhor. Os últimos acessórios...
BOYLAN
(atira seis pence para ele) Tome, para comprar gim com soda para você. (ele pendura rapidamente seu chapéu num prendedor da cabeça cornuda de Bloom) Faça-me entrar. Eu tenho um pequeno negócio particular com sua mulher, entende?
BLOOM
Obrigado, senhor. Sim, senhor. Madame Tweedy está no banho, senhor.
MARION (A sra. Bloom)
Ele devia se sentir profundamente honrado. (ela faz barulho ao sair espadanando da água) Raoul querido, venha e me enxugue. Estou na minha pele. Só de chapéu novo e uma esponja pra carro.
BOYLAN
(com um brilho alegre nos olhos) Ótimo!
BELLA
O quê? O que foi?
(Zoe segreda para ela.)
MARION
Que ele olhe, o enfeitiçado! Alcoviteiro! E se flagele! Eu vou escrever a uma poderosa prostituta ou Bartholomona, a mulher barbada, para que ela produza vergões nele de uma polegada de espessura e faça com que ele me traga um recibo assinado e selado.
BOYLAN
(aperta suas mãos) Vamos, eu não posso segurar esta coisinha por muito mais tempo. (ele sai com passadas largas de pernas rijas de cavalaria)
BELLA
(rindo) Ho ho ho ho.
BOYLAN
(falando para Bloom por cima do ombro) Você pode colocar seu olho no buraco da fechadura e se masturbar enquanto eu simplesmente penetro nela algumas vezes.
BLOOM
Obrigado, senhor. Vou fazer isso, senhor. Posso trazer dois camaradas para testemunhar o feito e bater um instantâneo? (ele segura uma jarra de ungüento) Vaselina, senhor? Flor de laranjeira...? Água morna...?
KITTY
(do sofá) Conte pra nós, Florry. Conte pra nós. O que...
(Florry sussurra para ela. Sussurrando murmúrios de palavrasdeamor, lábiolambendo ruidosamente, flopplop.)
MINA KENNEDY
(com os olhos revirados) Ó, deve ser como o perfume de gerânios e pêssegos deliciosos! Ó, ele simplesmente idolatra cada pedacinho dela! Grudados um no outro! Coberta de beijos.
LYDIA DOUCE
(abrindo a boca) Iumium. Ó! Ele a está carregando pelo quarto afora fazendo isso! Cavalgar um cavalo-de-pau. Podiam ser ouvidos em Paris e Nova York. Como bocas cheias de morango com creme.
KITTY
(rindo) Hi, hi, hi.
A VOZ DE BOYLAN
(docemente, roucamente, na boca do estômago) Oh! Fogocelestialgurkbrkarcrast!
A VOZ DE MARION
(roucamente, docemente, se elevando até a garganta) Oh! Uinaskissinapuisbuapuhue?
BLOOM
(com os olhos ultra-arregalados aperta as mãos contra o corpo) Mostre! Esconda! Mostre! Penetre nela! Mais! Se atire!
*************
Outro exemplo da genialidade, exatamente oposto do post (boa aliteração) anterior. Enquanto Proust disseca o homem com um lirismo incomensurável e um rigor estilístico baseado em frases longas e truncadas, perfeitamente encadeadas, Joyce explora o agir e o sentir humano com a linguagem inspirada na própria situação, permitindo-se subverter a realidade - confundido objetividades e subjetividades, que formam uma unidade indissociável - a ponto de descrever cada hora do dia 16 de junho de 1904 sem descrevê-la, isto é, por impressões que a própria sintaxe, que varia durante toda a obra, e a miríade de gêneros literários que encaixou no romance nos deixam. No trecho transcrito, a realidade é alucinada e absurda, própria para um homem de alma atormentada em tarde da noite, embriagado num bordel de Dublin; e, entretanto, temos uma medida ainda mais exata do que é real.

quarta-feira, dezembro 20, 2006

Do sadismo

Trecho de No Caminho de Swann, de Marcel Proust

"A Srta. Vinteuil estava de luto fechado, pois o pai morrera há pouco. Não tínhamos ido visitá-la, minha mãe não quis fazê-lo devido a uma virtude que nela ainda limitava os efeitos da bondade: o pudor. Mas lastimava-a profundamente. Lembrava-se do triste fim de vida do Sr. Vinteuil, absorvido primeiro pelos cuidados de mãe e de babá que prestava à filha, depois pelos sofrimentos que esta lhe causara; ela revia o rosto torturado que, velho, apresentava nos últimos tempos; sabia que ele renunciara para sempre a terminar de passar a limpo sua obra dos últimos anos, pobres esboços de um velho professor de piano, de um antigo organista de aldeia, que imaginávamos de quase nenhum valor, mas que não desprezávamos porque valiam muito para ele e tinham sido a razão de ser de sua vida antes de sacrificá-la pela filha e que, na maioria, nem sequer eram transcritos, sendo conservados apenas de memória, alguns rabiscados em folhas avulsas, ilegíveis, e assim permaneceriam desconhecidos; minha mãe pensava nessa outra renúincia, mais cruel ainda, que o Sr. Vinteuil se vira obrigado: a renúncia a um futuro de felicidade honesta e respeitada para a sua filha; quando relembrava toda essa desgraça suprema do antigo professor de piano da minhas tias, sentia um verdadeiro desgosto e pensava horrizada nessa outra aflição que a Srta. Vinteuil deveria experimentar, bem mais amarga, a de viver cheia de remorsos por ter aos poucos matado o pai. "Pobre Sr. Vinteuil" - dizia minha mãe - "viveu e morreu pela filha, sem ter recebido sua paga. Será que a recebe, depois de morto? E de que forma? Só poderá vir dela."

No fundo do salão da Srta. Vinteuil, sobre a lareira, havia um pequeno retrato do seu pai, que ela foi buscar às pressas no momento em que ressoou o rodar de um carro na estrada. Depois, atirou-se sobre um canapé e puxou para junto de si uma mesinha sobre a qual pôs o retrato, como outrora o Sr. Vinteuil pusera a seu lado o trecho que gostaria de tocar para meus pais. Logo entrou a sua amiga. A Srta. Vinteuil recebeu-a sem se levantar, com as duas mãos enlaçadas na nuca e recuou para o lado oposto do canapé como para lhe dar lugar. Mas logo sentiu que assim parecia lhe impor uma atitude que talvez lhe fosse inoportuna. Pensou que talvez a amiga gostaria mais de ficar longe dela, numa cadeira, achou-se indiscreta, e com isso a delicadeza de seu coração se alarmou; retomando todo o espaço do sofá, fechou os olhos e pôs-se a bocejar para indicar que o desejo de dormir era o motivo único de estar assim estendida. Apesar da familiaridade rude e dominadora que tinha para com a amiga, eu reconhecia os gestos reticentes e obsequiosos, os súbitos escrúpulos de seu pai. Em breve se levantou, fingiu querer fechar os postigos e que não conseguia.

- Deixa tudo aberto, tenho calor - disse a amiga.
-Mas é um perigo, podem nos ver - replicou a Srta. Vinteuil.

Mas, sem dúvida, ela adivinhou que a amiga pensaria que ela dissera estas palavras só para provocá-la, para que respondesse com outras que ela, de fato, desejaria ouvir, ma que, por discrição, queria deixar-lhe a iniciativa de pronunciá-las. Portanto, seu olhar, queeu não podia discernir, deve ter assumido a expressão que tanto agradava à minha avó quando acrescetou com vivacidade:

- Quando digo "nos ver", quero dizer nos ver lendo, é perigoso, pois qualquer coisa insignificante que se faça, é desagradável pensar que olhos estranhos nos possam estar vendo.

Por uma generosidade instintiva e uma involuntária polidez, ela calava as palavras premeditadas que julgara indispensáveis à realização completa de seu desejo. E em todos os instantes, no fundo de si mesma, uma virgem tímida e suplicante implorava e fazia recuar um velho soldado áspero e vencedor.

- Sim, é provável que nos olhem a esta hora, nesse campo tão freqüentado - disse a amiga ironicamente. - E depois, que importa? - acrescentou (achando dever juntar um piscar de olhos malicioso e terno a essas palavras que recitou por bondade, como um texteo que sentia ser agradável à Srta. Vinteuil, com um tom que ela se esforçava em tornar cínico). - Se nos virem, melhor.

A Srta. Vinteuil estremeceu e levantou-se. Seu coração, escrupuloso e sensível, ignorava quais palavras deviam vir espontaneamente se adaptar à cena que seus sentidos exigiam. Buscava, o mais longe possível de sua verdadeira natureza moral, encontrar a linguagem própria à moça viçosa que desejava ser, mas as palavras que esta última pronunciara com sinceridade pareciam-lhe falsas em seus lábios. E o pouquinho que ela se permitia nesse campo era dito num tom afetado, no qual seus hábitos de timidez paralisavam suas veleidades de audácia, tudo entremeado de "não estás com frio, não tens muito calor, não queres ler sozinha?"

- A senhorita parece ter pensamentos bastante lúbricos esta noite - acabou por dizer, sem dúvida repetindo uma frase que ouvira antes na boca da amiga.

No decote de seu corpinho de crepe, a Srta. Vinteuil sentiu que a amiga lhe dava um beijo, soltou um gritinho, fugiu, e as duas se perseguiram aos saltos, fazendo revoar as largas mangas como asas e gorjeando e chilreando como dois pássaros amorosos. Por fim, a Srta. Vinteuil caiu sobre o sofá, coberta pelo corpo da amiga. Mas esta encontrava-se de costas para a mesinha onde estava o retrato do velho professor de piano. A Srta. Vinteuil compreendeu que a amiga não o veria se não lhe atraísse a atenção, e lhe disse, como se apenas agora tivesse reparado nele:

- Oh, este retrato de meu pai que nos olha, não sei quem o pôs aí, já falei mil vezes que não é este o seu lugar.

Lembrei que estas eram as palavras que o Sr. Vinteuil havia dito a meu pai a propósito de uma partitura musical. Esse retrato lhes servia habitualmente para profanações rituais, pois a amiga lhe respondeu com estas palavras que deviam fazer parte de suas respostas litúrgicas:

- Ora, deixe-o aí mesmo, ele não se acha mais aqui para nos aborrecer. Imagina como não haveria de lamentar-se, o macaco velho, e querer pôr-te um xale, se te visse agora com a janela aberta.

A Srta. Vinteuil retrucou com palavras de suave censura: "O que é isso? O que é isso?", que demonstravam sua boa formação, não que fossem ditadas pela indignação que semelhante modo de falar de seu pai pudesse lhe causar (evidentemente, esse era um sentimento que já se habituara a calar em si mesma, sabe-se lá à custa de quais sofismas?), mas porque eram como que um freio que, para não se mostrar egoísta, ela mesma punha no prazer que a amiga procurava lhe dar. E, além disso, essa moderação risonha em responder a tais blasfêmias, essa censura hipócrita e terna, pareceriam talvez à sua índole franca e generosa uma forma particularmente infame, uma forma adocicada daquela perversidade que ela procurava assimilar. Porém não pôde resistir à atração do prazer que sentiria em ser tratada com doçura por uma pessoa tão implacável em face a um morto indefeso; saltou sobre os joelhos da amiga e lhe estendeu castamente a testa para ser beijada, como o teria feito se fosse sua filha, sentindo deliciada que ambas alcançariam nesse modo o limite da crueldade, roubando o Sr. Vinteuil, até na sepultura, a sua paternidade. Sua amiga lhe pegou a cabeça entre as mãos e lhe deu um beijo na testa com a docilidade que lhe era facilitada pelo grande afeto que lhe votava, e o seu desejo de oferecer um pouco de distração à vida agora tão triste de pobre órfã.

- Sabe o que eu gostaria de fazer com esse velho pavoroso? - disse ela pegando o retrato.
E murmurou ao ouvido da Srta. Vinteuil algo que não pude perceber.
- Oh, você não se atreveria.
- Não me atreveria a escarrar em cima disso? - disse a amiga com uma brutalidade intencional.

Não ouvi mais nada, pois a Srta. Vinteuil, com um ar abatido, sem jeito, ocupado, honesto e triste, veio a fechar os postigos e a janela, mas sabia agora, por todos os sofrimentos que durante a vida inteira o Sr. Vinteuil suportara por causa da filha, o que, após a morte, recebera dela em paga.

E contudo, desde então pensei que o Sr. Vinteuil tivesse podido assistir a essa cena, mesmo assim nçao teria perdido a fé no bom coração da filha, e talvez não estivesse de todo enganado. Certamente, nos hábitos da Srta. Vinteuil a aparência do mal era tão completa que seria difícil ver sua realização perfeita senão numa natureza sádica; é de preferência à luz da ribalta dos teatros do bulevar, do que sob a lâmpada de uma verdadeira casa de campo, que se pode ver uma moça fazer a amiga cuspir sobre o retrato de um pai que só viveu para ela; e somente o sadismo pode dar um fundamento, na vida, à estética do melodrama. Na realidade, afora os casos de sadismo, talvez uma moça possa cometer faltas tão cruéis como a da Srta. Vinteuil à memória e contra as vontades do pai morto, mas não os resumiria expressamente em um ato de um simbolismo tão rudimentar e tão ingênuo; o que sua conduta teria de criminosa seria mais velado aos olhos dos outros e até a seus próprios olhos, pois ela faria o mal sem confessá-lo. Mas, para além da aparência, no coração da Srta. Vinteuil, o mal, ao menos no começo, sem dúvida não era exclusivo. Uma sádica feito ela é uma artista do mal, o que uma criatura inteiramente má não poderia ser, pois o mal não lhe seria externo, antes lhe pareceria muito natural; não se distinguiria dela, até; e a virtude, a memória dos mortos, a ternura filial, como não as cultuasse, não sentiria nenhum prazer sacrílego em profaná-las. As sádicas do tipo da Srta. Vinteuil são seres tão puramente sentimentais, tão naturalmente virtuosos, que até o prazer sensual lhes parece algo de maldoso, privilégio dos malvados. E, quando permitem a si mesmos se entregarem a eles por um momento, é na pele dos maus que tentam se pôr e de fazer entrar seu cúmplice, de modo a ter um instante de ilusão de estarem se evadindo de suas almas escrupulosas e brandas para o mundo desumano de prazer..."


Isso é o limiar da perfeição do romance que se ocupa dos mais sutis detalhes da complexidade humana. Vale um culto, uma homenagem, e, na tradição das mitologias, e aqui estabeleço o mítico ser do escritor, o sacrifício de um filho.

terça-feira, dezembro 19, 2006

Rosebud

(Versão definitiva)
To Citizen Kane
A rose that shall forever be
under sands of the hourglass;
from the far and unglorious past,
'til the fading eternity.

La lengua de las mariposas

Tendo saído do que se convencionou chamar academia, quando em realidade se trata do ginásio, local onde modelamos nosso corpo para a adequação estética dum padrão consensual – o qual seria hipocrisia criticar, haja vista que dele também partilho, sob o pretexto de buscar saúde, numa valorização excessiva a uma vida sem significados, sofri inicialmente um momento de euforia, natural para quem pratica esportes logo após interrompê-los, para chegar a um estado de moleza total do corpo, uma fatiga que ultrapassa o mero cansaço: trata-se daquele torpor físico que o estarrece por completo simultaneamente à presença de uma certa comichão que o diz para não parar, embora você seja incapaz de continuar. Você cai escarrapachado no colchão, impossibilitado, no entanto, de dormir.

Mais ou menos era esse o estado em que me encontrava quando mergulhei num filme em minha sala. E julgo agora que minha paradoxal apatia é efeito do filme! Tal é a admiração que me causou, a emoção que descobri viva quando pensava estar já endurecida pela trajetória que o acaso traçou ao longo da vida. Embasbaquei-me.

Não importa se exagero. Encantei-me. O que o faz valer à pena.

sexta-feira, dezembro 15, 2006

Kierkegaard

Os segundos se sucedem e dão ao anterior desde já o teor de passado: tudo fica eqüidistante, a uma distância infinita, na medida do jamais alcançável. Desde o livro que acabo de largar sobre a mesa, cujas letras pequenas me fazem doer os olhos, que tentam apreendê-las sem o costumeiro auxílio do pince-nez deixado não sei onde, até o vergão disciplinador que meu pai fez marcar em minhas nádegas no dia em que ousei em público tocar minha genitália, tudo é terminantemente passado, tudo sou eu e segue à minha frente a determinar meus passos e a dar a medida do meu desespero.

Vivi tempo suficiente para consolidar meu eu e enfrentar esse desespero dando a ele a melhor e mais nobre configuração possível: a de desesperadamente ser eu mesmo, com a fé que em mim é peculiar. Mas mesmo com tantos anos que se contam em meus papéis, creio que não consegui passar ao largo de toda crise, sempre recorrente, o que prova minha tese de que o desespero é a doença mortal – não porque mata, mas porque à nossa morte o levamos - e só na eternidade é que dele podemos nos curar.

De que a Europa vai à bancarrota tenho certeza. Nossos sacerdotes pregam uma fé sem significado, destituída de valor intramundano porque sem sentido aparente, dirigida ao nada e passada de gerações a gerações pela comodidade da tradição, que não costumamos questionar ou sequer dela dar-nos conta. Os jovens de hoje são uns arruaceiros sedutores, estetas signatários de alguma associação metafísica do mais vil hedonismo, tão vazio quanto pode ser uma vida vazia de decisões.

Os ingênuos intelectuais de nossa época insistem no romantismo que nos iguala a nada, e não na fé que atesta o absurdo da existência mas que a ela confere um porto seguro em que posso atracar, aceitando o fato de que existo e por tal é dever meu assumir para mim esta existência. É preciso que nos apropriemos de nós mesmos, sendo nós cada vez eu. Pobres senhores! Sentem-se parte funcional de um todo espacial e temporal, alienando-se ao mundo por não se reconhecerem uma unidade total, um eu. Mal sabem que derrelitos ao mundo e ao tempo, encontram-se seu eu com o dever de sê-lo nestas dimensões, das quais não participam, senão que os têm como constituintes de si mesmos!

Se sou desesperado, é porque as decisões são sempre minhas: ouso escolher.

domingo, dezembro 03, 2006

Não busco um futuro,
essa máquina de desenganos.
Não planto nem planejo.

Se eu me for agora,
Antes que perca meus humanos
direitos
, ainda valerei uma reza.

Soneto antigo

De um lado trevas, d’outra parte luzes,
Tijolos crus, os afrescos suaves,
Combinam-se rosários e cruzes,
Ocultam-se temores nessas naves.

-Tu, padre, que na igreja me conduzes,
Dize-me, pois me medram tais entraves
No meu livre pensar (tu não me induzes):
Por que está Deus entre os temas mais graves?

-Deves temê-Lo, filho! Pensa assim!
Sua onisciência vê teus pecados,
Não queiras penas! Sê dentre almas puras!

-Temê-Lo? Como se incute isso a mim?
Enfrentá-Lo-ei, pois, se vê meus atos!
Como temer quem me espreita às escuras?

sábado, novembro 25, 2006

ESTUDOS ONTOLÓGICOS

Projeções

O livro deitado sobre a sacola,
A caneta, o desodorante, o cortador de unha.
Ao meu lado, o vigor de sua independência
Com a minha, no pequeno logos deste quarto,
Jamais verão ou saberão que os observo,
E, no entanto, são tão parte de mim,
Quanto tudo o que de sentido lhes foi dado
Pelo ser que me contém.

Vigoram ainda, repousados na minha contemplação.
E enquanto dados a mim, sempre assim.

Tenho medo de saber:
Coisas tão inertes são meus órgãos.

sexta-feira, novembro 03, 2006

Tempo de sonhar

Nos estágios perturbadores do sono, justamente aqueles em que a mente se aviva de sua pequena hibernação, permitindo-se deturpar qualquer regra do mundo físico e representar o próprio corpo livre dos grilhões da substancialidade, em que nada dizem as propriedades e impropriedades da minha matéria – posso voar, ser incapaz de andar ou ainda enfiar no estômago comida suficiente para encher barrigas de elefantes, sempre há a possibilidade de sofrer certo terror, não tanto por entrar em tais estágios, mas precisamente por deles sair. Eis que, acordado, descubro certas verdades de mim mesmo que só meu sonho faz perceber.

Se é verdade que os sonhos se constroem de elementos empíricos que captamos durante o dia, ou durante os últimos dias, fico ainda atinando com o que pode ter sido o substrato fático que fundou todo o temor que sofri noite passada. De antemão já tenho uma idéia pré-concebida, e acho que é nela que basearei o arrimo condutor de toda minha divagação acerca do que, por assim dizer, vivi: meus dias, e creio que de todo mundo, são pautados por horários previamente estabelecidos, horários esses que se fazem lei porque não indicam compromisso de mim comigo mesmo, vez que envolve outros que comigo têm conhecimento de tal horário, ou que me o impuseram. Todos os dias trabalho de tal a tal horas, compareço à academia em tal hora para sair em tal, janto com tal mulher naquela hora agendada, chegando sempre no mínimo quinze minutos mais cedo para jamais deixá-la ser a primeira a esperar.

Em relação ao tempo, não me impressiona que horas fechem-se exatamente num dia, dias num mês e meses num ano. Isso é facilmente explicável: o tempo do homem foi construído para formar um sistema perfeito que se fecha em números redondos. Não há dias com 28,3 horas, ou meses com 19,282 dias, e sim todo dia tem 24 horas, toda hora tem 60 minutos, todo minuto carrega 60 segundos e assim por diante. Também não me impressiona que os parâmetros dessas medições sejam astrofísicos, o dia correspondendo ao movimento de rotação da Terra, o ano ao de translação, com a compensação do dia 29 de fevereiro no ano bissexto em razão de uma mínima divergência entre os dois movimentos, que por não serem intencionalmente construídos não se obrigam, como o calendário humano, a serem exatos, já que algum parâmetro tem que ser escolhido sem arbitrariedades. O que me impressiona é que o homem proclama o poder da razão para vindicar a liberdade, e com isso abre para si um leque infinito de possibilidades, no mais das vezes às quais permanece indiferente em favor da comodidade da tradição e das crenças herdadas, e mesmo assim continua ligado àqueles fatores astrofísicos – o dia e a noite são os parâmetros que indicam a necessidade do sono – e outros biológicos, e, o que agrava essa situação, cria mais fatores de necessidades – o relógio, o calendário e a idade – dos quais irremediavelmente não foge.

Meu sonho caminhou exatamente nessa direção. Não posso precisar detalhes, jamais pude; sequer posso falar de razões históricas (existem razões históricas para sonhos?) de estar, em certo momento, no meu apartamento, olhando ao visor do meu celular a fim de saber as horas. O telefone nada dizia, senão alguns incômodos pontos de interrogação. Precisava das horas, não para fazer alguma coisa, mas porque, por alguma razão, sabê-las nos deixa seguros. Meu relógio de pulso estava sem pilhas. Olhava o calendário e via uma enorme seqüência de números e letras, mas era impossível determinar qual era o dia em que eu estava. Meu computador mostrava um certo horário, porém tinha eu a certeza de que aquilo era um engodo, já que aqueles números não tinham qualquer correspondência com o dia claro que penetrava a janela. Olhei-me no espelho e cuidei de guardar um mínimo de compreensão de que aquele era eu. No entanto, um eu sem tempo era-me demasiadamente penoso, e não demorei muito a concluir que perdia a identidade porque não me localizava em qualquer conjuntura ou contexto, embora meu corpo estivesse seguramente ali. O que me envolvia perdia sentido, pois não tinha certeza se era tempo de lidar com as coisas ao meu redor, e mal podia crer que o espaço do meu apartamento estava justaposto com espaço de fora, porque a mim parecia que o lugar onde eu estava passava por um tempo completamente diferente do tempo de todo o resto do mundo; de modo que nunca poderia ir ao encontro de outros lugares que não aquele em que eu estava.

E poderiam existir os outros? Duvidei, porque ou eu estava ao passado de todos, ou ao seu futuro, e um encontro seria prodígio de filmes de ficção – coisa que meu sonho não era. O tempo, ou melhor, a falta do tempo criou uma enorme muralha entre mim e o que estava à minha mão; senti, finalmente, que era hora – ou qualquer outra palavra que possa dar essa noção, já que hora não existia mais ali – de deparar-me com o nada.

Não sei se exagero ou se o que digo era precisamente o que senti durante o sono, já que, como me expliquei anteriormente, isso aqui se trata de uma divagação que elaborei justamente quando do sonho saí. Tudo o que se passou não deve ter durado alguns minutos, porque logo ouvi a porta do apartamento se abrir e em seu batente aparecer a figura do meu colega, portando um enorme relógio em seu pulso, ao qual imediatamente recorri para, enfim, ter ciência da hora certa.

Disso tudo poderia eu retirar uma conclusão mais ou menos lógica, mas não sei se calmante: o tempo não é o que construímos, é aquilo em que nos construímos. O relógio, o calendário, a idade, tudo isso são necessidades humanas porque o homem é antes de tudo isso algo que se dá no tempo. No meu sonho, faltavam-me relógios e calendários, pelo menos os que significassem algo. E entretanto eu tinha tempo: dando-me conta da situação em que me encontrava, decidi-me pela necessidade de saber o horário e, por tal, aguardava alguma informação. Isso nada mais é do que me encontrar numa ocasião dada pelo meu passado, vivendo um presente que espera o futuro que escolhi como destino e que pautava o meu lidar naquele lugar onírico: quando me decidi por saber o horário, antes de sabê-lo já vivia num tempo, e querer sabê-lo apenas determinou tudo o que eu fazia. Medir o tempo dessa atividade, ou melhor, o lapso de tempo da minha ação, é invenção decorrente do fato de que somos temporais, não o contrário.

domingo, outubro 22, 2006

A este blog, ao orkut, ao wikipedia, ao youtube, ao msn.

Toca-me o silêncio com voz clara;
ao ar me quedo observan
CONVOCA-ME O COMPUTADOR.

Militar engendrado no baixo escalão,
salto por cima da verdade.

quarta-feira, setembro 27, 2006

Ontologia da cidade: o prédio comercial

O
P
R
É
D
I
O
COM
ERCIAL
É UMA POESIA DE CONCRETO
SEM VERSO E MUITA PEDRA B
RITA. NO MAIS É PROSA, É TEO
RIA VERBORRÁGICA ACERCA D
O CÂMBIO FLUTUANTE. É IMPE
SSOAL: É O VERBO HAVER E A P
ARTÍCULA SE. O PRÉDIO, CONFE
SSO, É POESIA DE SUJEIRA E SEM
TINTA: É A RACHADURA: É A PRI
SÃO QUE SE ESCOLHE: É VAZAM
ENTO. É UMA POESIA DE BUKOW
SKI. O PRÉDIO COMERCIAL ARRANHA O
CÉU, CORTA O HORIZONTE, É UMA PERS
PECTIVA QUE O OLHO NÃO TEM. É UMA
MONTANHA, OU UM PAREDÃO? É UMA F
ALÉSIA QUE CONDUZ À MORTE NO MAR
DE ASFALTO. O PRÉDIO COMERCIAL É O
SENTIDO DO ELEVADOR EM MOVIMENT
O. É UM POSTE QUE CRESCEU, É A PALA
VRA PRÉDIO NO SENTIDO MAIS VULGAR
DO VOCABULÁRIO CONTEMPORÂNEO. U
M FALO É PRÉDIO QUANDO COPULA, UM
PRÉDIO É A CABEÇA CUJO SUPORTE É UM PESCO
ÇO COM TORCICOLO ESPASMÓDICO. O PRÉDIO P
OR EXCELÊNCIA COMERCIAL É O AEROPORTO D
O TERRORISMO. NÃO ULTRAPASSE SEUS UMBRA
IS COM SEU CORAÇÃO E COM O SONETO DO AMO
R TOTAL NA MEMÓRIA. O PRÉDIO COMERCIAL É A
NTRO, É O ÁPICE DO SUCESSO, É NINHO DE COBRA
S, É O SONHO DE CONSUMO E ROTEIRO DE VIAGEM
DO WORKAHOLIC. O PRÉDIO COMERCIAL É A POES
IA EM SEU NÃO-SER, É DESUMANO E ATEMPORAL,
MAS É MORTAL: MATA OS HOMENS E OS HOMENS
O MATAM. O PRÉDIO COMERCIAL É QUASE A CIDA
DE GRANDE, NÃO FOSSE A CIDADE GRANDE O SHO
PPING CENTER, EMBORA HÁ QUEM DIGA QUE O SH
OPPING CENTER É PRÉDIO COMERCIAL, DO QUE DI
SCORDAMOS. PRÉDIO COMERCIAL É GRAVATA E P
ALETÓ E TAILLEUR, É O MEIO-DIA, A MEIA-VIDA, V
IDA DE CÃO, É UMA COISA HORRENDA E TÃO LINDA.

Que título cabe aqui?

Eram cacos estilhaçados de um vidro verde
Que partiam derme e epiderme. A pele
Partida, rota, em cacos.
O plasma sangüíneo no caos da fuga
Do seu regular fluxo intravenoso
Para lá dos epitélios tegumentares.

Eram sinais de luta, máculas de hematomas
Na alva tez da moça morta. O tapete
Maculado, fétido, emético.
A bonita moça e viscerada, rasgada no ventre
Desde a boca dos quádruplos lábios
À caixa que guarda todo sentimento.

Era uma vida esvaída na ponta da garrafa
Na sala onde jazeram tantos outros mortos;
No féretro de barro cru que abriga móveis
E as íntimas lutas fatais.

Cena do crime: antecâmara do paraíso.
Ímpetos que revelam os ciúmes
Gravando no obituário seus escopos.
Os amores revelam os amores
Desventurados como cegos, inatingíveis
E incontroláveis como feras.

Um poço de descontentamento
E culpa, de que não mais se foge.
Enclausurado na mão homicida
O peso de uma imortal lembrança
Não evapora. Não se esvai
Sequer o desejo de fazê-lo de novo
Incansavelmente desesperado.

domingo, setembro 17, 2006

Vesperal

Um poema de Helder Macedo

Desoladora, vã certeza minha
efémera presença que termina
o rosto e a vida em imperfeita linha
fronteira absurda que me não confina.
Pela luta de corpo em que me iludo
um perene sentido eu anuncio.
Mas na manta carnal onde me escudo
tacteio as dobras dum só frustre cio.
Aos mil olhos febris do céu velado
ergo o meu gesto de razão e regra.
Cresce a fria canção, espanto fechado
na mágoa em riste que me o sangue empedra.
O súbito destino se organiza
da voz que sou e, do finito vulto,
secreta, anula, transfigura e frisa
o nada ser do meu anseio oculto.
Aglutinado sou. Lá fora a noite.
Mas nada vai nascer ou vai morrer
em rumos para além, onde me afoite,
da pausa tensa a que me obriga ser.
E só na raiva lisa de existir
eu me prolongue, necessário modo,
despedido de mim, a descobrir
o caminho de mim para o meu todo.
Destino pleno que me a vida exuma
ante o mundo o intente no desforço
do vinculado ser para que assuma,
conscrito ao humano todo, dele escorço,
a minha impessoal identidade.
Serei a minha ausência e o seu indulto
reinventando a minha liberdade
como um sarcasmo, um passatempo e um culto.

Que a boa admiração que tenho por esse texto não seja tão-somente inveja!

terça-feira, setembro 12, 2006

Falência

Diziam que não funcionaria
e deveras longe não foi.
Morreu quando nem vida tinha:
era um desenganado que vivia.
Foi o terrível olho da descrença?
Foi a boca fechada de indiferença.
Quando o motor único do destino
- movimentos débeis a um vetor incerto –
esperança chama-se,
apenas o até quando o alimenta.

Posto que é chama,
posto que o tempo venta,
chegou aqui para acabar
recusando termos que inventa
a língua:
não chafurdo na lama,
não me estrangulo, sem ar.
Morro apenas
como um natimorto:
as glórias que jamais tive
negaram-me o direito de dizer que existi.

quarta-feira, agosto 30, 2006

Verdal - parte 2.1

TIRÇO, ELENO e CIRINO – Trabalhadores avulsos da Faz. Santa Clara
NEGUINHO – Rapaz órfão trabalhador da Faz. Santa Clara
JOSUÉ e ALEMÃO – trabalhadores e capangas da Faz. Santa Clara
CORONEL LOMBARDO – dono da Faz. Santa Clara
D. ROSA – mulher de Coronel Lombardo
D. CISSA – cozinheira
DANDARA – cozinheira e filha de D. Cissa
CORO – mulheres dos trabalhadores


(Crepúsculo. Em último plano, os fundos da casa da fazenda. Em primeiro plano, as casas de madeira dos empregados. À frente, uma fogueira e um panelão, de onde emerge uma fina fumaça. À sua volta, TIRÇO, ELENO, CIRINO e JOSUÉ descansam tomando chimarrão).


ELENO

Toma cá outra cuia que te ofereço.

CIRINO

(Pegando a cuia)
Grato.

ELENO

Cuidado, que está transbordando.

CIRINO

Tirço, sentes o vento frio que bate,
a exigir que cobramos nossos filhos
de blusas que não podemos comprar;
vindo do sul e ao norte transportando
das flores polens para a vida, para
novos campos de algodão cultivar?

TIRÇO

De que serve tudo isso? Viver é
sofrer, nada mais! Por que a vida refaz-se?
Para somente refazer-se de novo,
e de novo, e sem fim. E nada mais!

ELENO

Exagerais os dois! Nem frio é tal zéfiro,
mas apenas adota o frescor do outono;
nem ruim é a vida, embora difícil.

JOSUÉ

Nem pareceis homens! Como mulheres
falais. Eleno, pranteiam os dois
qual dengosinhas, qual fazem costureiras
e cozinheiras.

ELENO

E essas meretrizes!

JOSUÉ

Sim, e essas meretrizes, que adormecem
ardidas das virilhas, mas por bom
merecimento: desejam por dinheiro
darem-se, ao invés de, como direitas
moças, casarem-se e dos seus maridos
ocuparem-se, como diz a regra.

TIRÇO

Tu não tens de que se queixar mesmo!

(De uma das casas sai Dandara, que passa à frente do grupo, todos olham sua bunda)

JOSUÉ

Cheirosa!

DANDARA

(Balança o cabelo com ar de desdém)

Mas não para ti, insolente!

(Dandara sai do lado oposto de onde apareceu)

JOSUÉ

(Dirigindo-se a TIRÇO)

Tenho sim! E essa mulher que nem bola
me dá? Ara! Ela vai lá se engraçar
com o Coronel! Tivesse eu dinheiro
e a desonraria completamente!

CIRINO

Acaso não tens mulher, Josué?

JOSUÉ

Olhai quem fala! Não foste tu mesmo
que deixaste a mulher ao teu fogão
p’ra cortejar a senhora dona Rosa
ao inquieto cricrilar dos gafanhotos?

CIRINO

A ti não cabe dizer de mim mesmo!

JOSUÉ

Nem a ti de mim, capiau ingrato!
Tem mais respeito para com teu chefe!
Não fui eu quem o contratou, benigno,
impedindo que teu filho faleça
faminto enquanto colhes algodão?

CIRINO

Pois somente ao Coronel obedeço!

JOSUÉ

(Levantando-se)
Mas por mim foste contratado, ingrato!

TIRÇO

(Levantando-se e interpondo-se entre CIRINO e JOSUÉ)
Parei com infrutíferos discursos,
homens. Pois cá na fazenda sois de paz,
como bons colegas de profissão.
Ainda que a um se atribua o meio
pelo qual houve o contrato de emprego,
sois de um só e mesmo patrão empregados!
Queiras ou não, Josué, contratar-nos
foi somente ato teu como preposto
do Coronel. Queiras ou não, Cirino,
Josué é sim teu chefe, e o é
de todos nós, como determinou
o senhor Coronel Jorge Lombardo!

ELENO

Bem falaste, Tirço, mal se exaltam
os ânimos por aqui. Fiquei calmos,
pois, vós, e tomei vosso chimarrão.

(Neguinho vem da casa da fazenda)

Não é Neguinho que lá se aproxima?

TIRÇO

É sim, se não me enganam os meus olhos.

JOSUÉ

Já posso prever a que se tributa
a sua chegada a essa roda de cuia.
O Coronel voltou, e é dever meu
assessorá-lo com seu alazão.

(Neguinho chega à roda. Dirige-se a Josué)

Podes poupar tuas palavras, homem!
Creio que já conheço o teu recado.

NEGUINHO

Pois então vá e ajude o Coronel.
Sabes que somente a ti ele confia
as rédeas de Pelego, seu cavalo.

JOSUÉ

Vou sim. Uma boa noite aos senhores!

ELENO, TIRÇO e NEGUINHO

Boa noite!

(Sai JOSUÉ)

CIRINO

(à parte)
É o que a ti não desejo...


TIRÇO

Cirino, que insanidade se abateu
sobre ti? Se tu tivesses travado
duelo contra ele, mesmo a vitória
te derrotaria. Expulso serias,
e o inverno todo sem um níquel mísero
passarias, a olhar vazia a mesa
a qual teus filhos lamberiam tristes
à procura de migalhas de pão
esquecidas, por acaso, nos dias
em que a essa mesa podias prover.

CIRINO

Guardo dúvidas se a honra que tenho
não seria mais cara que viver!
Pois até a meus filhos, bem educados
como homens, um pai morto em duelo
defendendo a honra da própria família
vale mais que a humilhante servidão!
Não jurou fidelidade ao altar,
defronte do padre santíssimo, minha
mulher a um homem, acima de tudo?

NEGUINHO

Não, não toques nesse assunto, por favor!
Ai de mim, que tenho a língua indomável!

CIRINO

Que escondes?

ELENO

Nada, Cirino! Neguinho
é um baita de um piromaníaco inventor
de historietas sem sentido algum!

(Dirige a NEGUINHO um olhar repreensivo)

NEGUINHO

Ah, Eleno! Tu não queres saber mesmo?
O que guardo também a ti concerne;
tanto quanto a Tirço, mas este... rá!
prefere o dessaber à verdade!

TIRÇO

Que travessura é essa agora, rapaz?

NEGUINHO

Travessura, sim! Mas não por mim feita!

CIRINO

Ah, que te arranco os olhos, preto sujo!

NEGUINHO

Tanto quanto tu, tição apagado!

ELENO

Chega, Neguinho! Senta e toma tento!

NEGUINHO

Ah, pois! Bufa Cirino, esse briguento;
posas de pai meu, e pai nunca tive;
e até Tirço o cenho franze: adeus!

(Gira em seu próprio eixo e faz menção de partir)

CIRINO E TIRÇO

(Tirço segura Neguinho pelos ombros)
Senta!

NEGUINHO

Não sento!

CIRINO

(Empunhando uma vara em brasa)
Senta!

NEGUINHO

Tá bom, sento!

ELENO

E sossega, rapaz! Tu vai contar
o que sabes, ou terá que se ver
com as esporas de nossas botinas!

NEGUINHO

E agora eu sou cavalo, então, senhores?
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terça-feira, agosto 29, 2006

Rosebud

To Citizen Kane


A rose that shall forever be:

an unknown self
burried under
the hourglass sand;

since the unglorious past
'til the fading eternity.

quinta-feira, agosto 24, 2006

Soneto

Alarga tua boca com prazer
Ao rir de mim que me percebo incerto.
Ri de meu choro, de meu peito aberto,
De um riso meu, do que me faz sofrer.

Ri, mas com todo dente descoberto,
De tal modo que as gentes, ao te ver,
Vejam o que te faz escarnecer:
Eu vago e impreciso, insano e liberto.

E vai rindo sempre do indefinido
Que sem cessar fui. E quando bastante
Tua infalível boca tiver rido,

Olhar-te-ei eu com pena, intimorato.
Porquanto tudo fui, sendo inconstante,
E nada foste tu, sendo tão exato.

segunda-feira, julho 31, 2006

Textos inacabados e inacabáveis

Narciso, a que miras?
Joaquim, por que choras?
Guilherme, o que queres?

Bebidas?
Jogos?
Mulheres?

Livrar-te do mundo
Não podes.
Além do teu corpo
Não vais.
Ser algum outro
Jamais.

Narciso, pra quem vives?
Joaquim, onde vives?
Guilherme, vives?

Sim. No interior, pro pai.

Não não vives no interior
A não ser de ti.
Não não vives pro pai
Ele vive pra ti.
Não não vives

Se da morte retiras teu pão
E do pão à morte voltas.


***************

Amnésia. Pura amnésia e Jorge Prata não sabia
mais como a cidade funcionava. Pervagante em pedras
e cacos do mundo ligados entre si pelo cimento;
o sinal revelava-se verde quando então ele queria
andar, mas avermelhava-se todo o tempo em que
parava junto com os mil carros que por aqui passam
diariamente. Jorge Prata ouvia sons de batucadas
rivalizando com comícios e macacos me mordam
se não era ele um primata primitivo tentando absorver
tantos elementos que não se traduzem nas primeiras
percepções. E quando tinha já muito andado finalmente
compreendeu o que era aquilo quilômetros atrás, mas
andava em ruas completamente novas das de quilômetros
atrás e tinha que de novo compreender o mundo todo.
Jorge Prata era um só contra todos, sem guias, e não se
sabe por quê, já que Jorge Prata vive na cidade há tanto tempo.
Pode ter sido o que ele comeu, a sua barriga pesada,
enquanto todo mundo era uma pluma de leve e fluía
com muito mais naturalidade por esquinas e meio-fios.
Ah, Jorge Prata, que foi que lhe aconteceu? Jorge Prata
divisando finalmente nuvens, que entretanto sempre estiveram
ali sobre a cidade. Um ou dois ossos quebrados,
um pequeno riacho de plasma e hemácias que vertia
de sua boca. Jorge Prata foi atropelado e na posição
em que ficou pôde ver o céu. Nunca correu o perigo
mas por Deus que a cidade estava incrivelmente
estranha e por isso Jorge Prata vê-se agora vendo
nuvens enquanto as aglomerações ininteligíveis
chamam os anjos das sirenes que farão, enfim,
aquela maldita canção de campanha política ficar quieta
ou não se fazer ouvir.

domingo, julho 23, 2006

Penso e passo
e posso prever:

morro e nasço
com o tempo.

Parte frágil,
pensamento;

fácil parte,
corpo puro.

Nasço e morro
com o vento.

Simples sopro
e corpo duro.

sábado, julho 22, 2006

O homem que não existe

O homem não é homem
É um número
No mais das vezes, preocupação
De vez em quando, orgulho

O homem não é homem
É uma massa
Não é uma pessoa
É um sexo, uma raça

O homem não é homem
Não sente, não chora
O homem é dinheiro
Se não: “vá embora!”

O homem não é homem
É uma ilha
Isolado de tudo, de todos
Do pai, da mãe, da filha

O homem não é homem
É uma seqüência de genes
Quase um macaco, um rato!
É vagina, é bunda, é pênis

O homem não existe
Porque não sabe mais
O que o homem é:
Ele mesmo ou um outro eu

sexta-feira, julho 07, 2006

Verdal

A noite cobria os céus com seu negro manto, e lá do alto os seus milhões de furinhos proporcionavam ainda sutis visões da dourada luz, a que se chamavam estrelas. A majestosa Lua, a bela bola que anda por sobre os homens e finge lutar contra a noite, quando em verdade é esta que lhe dá o sentido da existência, está lá plenamente, com todos os seus mais imperceptíveis detalhes; enfatuada, intimorata, toda-prosa, fazendo do firmamento uma feliz e agradável platéia para os beijos melífluos e cálidos dos jovens incautos pelas rubescentes paixões. Era a tarde que se despedia rubra, deitando no horizonte seu pomo de fogo, trazendo com sua ida os doces cantos da cigarra e o fresco ar do crepúsculo, que agitava os alegres cachos de Dandara. Era uma canção de ninar aos puros aquele manto negro dos céus; era uma bebida afrodisíaca às brilhantes espáduas mulatas da mulher de olhos aquilinos de predadora langorosa, de encantamento fácil, fortuito e fulminante aos diversos varões que se aventuram pelas trevas acolhedoras. Nada mais refletia a Lua tanto quanto aquelas negras íris de Dandara, que no negrume próprio do fim do ocaso se alia às estrelas e, como lanterninhas dos meninos caçadores de insetos, acende dois pontos de fogo, como um ardil da beleza contra os contempladores.

E nas vagas impressões da noite, quando toda imagem é um semblante fugaz que apenas se interpreta pela lembrança do que aquilo poderia ser durante o dia, Dandara sai da casa cantando com uma voz indefinível, de que ora se dizia rouquenha, ora um fluido som de flauta doce que enchiam os ouvidos de sonhos.

- Ô, boi, que há nesse canto de pasto?
Ô, boi, o que é que lá se perdeu?
-Foi a boiada que trouxe de arrasto
Meu amor que, pisoteado, aqui morreu.


E lá se ia Dandara alegre e cantadora espalhar seu perfume de jacintos pelo ar da Fazenda Santa Clara, onde era filha da cozinheira, cozinheira, e amante.

- Mas, boi, p’ra que chorar a tristeza?
Ô, boi, tem tanto amor no pasto pra ver!
- Amor como aquele, nem muita reza,
E nem pasto andado vai devolver.

A música que vibrava cada folha das aroeiras que margeavam o estreito caminho para o grande espelho do Lago de Santa Clara, lugar onde as estrelas do céu miravam-se e invejavam a própria imagem refletida, como milhares de pequenos Narcisos afogados, tinha uma toada bem tristonha. No entanto, mesmo que a melopéia inspirasse profunda melancolia, os dentes de Dandara anunciando-a, a música, aos ares abrilhantava e fazia contente todo o ser da pequena mata que escondia o lago.

Na orla daquela profunda poça d’água, sentou-se a mulata, as saboneteiras todas à vista. Com sua lanterninha de pilha, suas mãozinhas procuravam as avezinhas nas árvores todas, que fugiam da ofuscante luz com um revoar barulhento e tranqüilizante. Arriou sua saia leve de moça viçosa, sem anáguas, para molhar os pezinhos na água. Se houvesse luz, ver-se-ia a parte interna daquelas coxas tão lisas e ilesas, macias e convidativas como uma bandeja de morangos bem vermelhos embebidos no mais fino champanhe. E cada gotinha que escorria pelas suas pernas açucaradas, com uma nitidez irrevogável, percebeu a dimensão da sua sorte de ter nascido líquida, para percorrer cada pontinho daquela pele deliciosa, que se comportava como a melhor das anfitriãs.

Daquele triste canto, Dandara passou a assobiar uma alegre cantiga da sua infância. Começou a pensar no viril rapaz que vinha lhe convidar para passear na cidade e tomar sorvete, nos seus fortes braços e como lhe trazia segurança a maneira com que ele pegava em sua mão. Lamentou o tamanho de sua castidade, o que também era algo de bom e de único para um mancebo da sua idade perante uma simples empregada de fazenda. Talvez porque, afinal, ele não era tão rico assim. Sorriu ao pensar em seus hábitos gentis para com ela, na higidez do seu caráter e na bela camisa de excelente linho com que se apresentou da última vez, adotando as cautelas de estilo ao devidamente pedir autorização para Dona Cissa, sua mãe, para levá-la ao centro. E sorriu mais uma vez, e menos inibida, quando viu que ele respondeu à altura - um belo punho fechado de encontro ao nariz do maldizente - quando, pela sua refinada educação, lhe chamaram de maricas.

Os devaneios tão agradáveis em que mergulhou Dandara quase a fizeram esquecer o motivo de ela estar ali. De todo o modo, seu freqüente e intenso apetite, digamos, decorrente de sua sensualidade já congênita, logo se fez presente ao primeiro rumor de passos vindos do longe para a sua direção.

Não demorou muito, e aquele mesmo chapéu de sempre, de um couro branco meio de mal gosto, apareceu saltitante, ao que já seguiu a figura bem apessoada que o sustenta.

- Ah, já tá aqui, minha pretinha!

quarta-feira, junho 28, 2006

O conto do caixote

O líquido, por sua natureza, assume a forma do recipiente em que está acondicionado. Um homem anda sólido pela rua, e o sólido, por sua natureza, tem forma própria independentemente do espaço que ocupa. Um homem sólido anda solitário pela rua. O solitário, e aqui talvez não entrem questões de natureza, é um homem sólido que anda só, ou vive só, ou, no ror, é uma voz que não se entende ou não faz por onde. Não entra no conceito do solitário o fato de o ser por opção ou por desprezo alheio. Ser sólido, no entanto, é imposição das forças criadoras.
Havia falado em líquido. O homem tem nas mãos uma garrafa. Uma garrafa é um recipiente, de plástico ou de vidro, usado para acolher líquidos, bebíveis ou não. Possuem um corpo bojudo e oco, onde fica o líquido, que por ser líquido assume a forma desse corpo bojudo e oco. Possuem também um orifício, por onde o líquido entra e sai, porque o líquido também tem a característica de fluidez. Esse orifício fica na extremidade de algo a que se dá o nome de gargalo, que na garrafa corresponde a um estreitamento oco do corpo bojudo e oco que termina exatamente no orifício supra mencionado.
A garrafa acondiciona um líquido alcoólico, que por ser líquido assume a forma de sua forma. Por ser alcoólico, podemos entender que é um líquido em que, dentre as substâncias que o compõem, está o álcool etílico.O álcool etílico, por ser álcool, possui uma hidroxila ligada diretamente a uma partícula de carbono; e por ser etílico, contém em sua estruturação etila. Considerando que nessa garrafa temos um rótulo, sólido, com a inscrição “Velho Barreiro”, que indica ser o líquido uma cachaça, já que “Velho Barreiro” é uma marca muito conhecida de cachaça no nosso país, podemos então concluir que o líquido composto de álcool etílico é bebível, porque a cachaça é feita para beber, e não combustível. Em termos científicos não haveria diferença, pois no organismo do nosso solitário sólido homem esse líquido sofrerá, como um combustível, o processo de combustão, pelo qual a substância, após absorvida pelo tal organismo, será combinada com oxigênio numa reação exotérmica, que libera muita energia, do qual temos invariavelmente como resultado o gás carbônico. Em termos corriqueiros, por outro lado, a diferença é enorme: ser bebível significa que poderá ser consumido pelo homem, categoria na qual se inclui o sólido solitário homem da nossa história; já ser combustível significaria que esse líquido teria outras funções, que não vem ao caso no momento.
Falei então do solitário homem sólido com forma própria andando na rua com uma garrafa cujo conteúdo é um líquido alcoólico bebível, que por ser bebível sairá do orifício da garrafa para a boca do homem, entrando no organismo sólido e um pouco oco onde sofrerá combustão. E já sabemos o que tudo isso significa.
Temos, portanto, bons pressupostos para a nossa história.

O sólido homem tinha casa, teto, família, herança, carro e uma empresa. O sólido homem era homem correto e de bem, com brios invioláveis e bons contatos. O sólido homem era o homem dos sonhos do estudante de direito. O sólido homem é o corpo em corpo da sólida imagem (e como imagem, etérea) do homem bem-sucedido.
Um dia um bêbado velho com uma garrafa quase vazia de aguardente nas mãos mijou no pneu de seu carro. No carro do sólido homem!
Coincidência do destino: o bêbado era famoso em certas instituições citadinas, os distritos policiais, onde havia se hospedado várias vezes. Coincidência, isso? Sim, porque o sólido homem avistou um senhor policial logo ali e logo logo acenou. O bêbado foi levado.
Ficha extensa: o bêbado era velho de idade, mas mais velho de picardias.
O bêbado, senhores, era um bandido.
E não um coitado, dos maus. Até matado já havia. E esquartejado, depois de ter estuprado, em quarenta e três pedaços, todos sólidos molhados de líquido vermelho, e os colocado num saco de lixo de quarenta litros e devolvido o morto à sua família.
E a física orgulhou-se de mais uma lei: vários sólidos independentes e amontoados comportam-se como líquidos: tomaram a forma do saco de lixo.
E o bêbado foi de novo para o distrito policial. Que tinha um brinquedo novo.
O bêbado foi colocado num caixote em formato cúbico. De um metro e vinte de lado. O bêbado tinha articulações, o que veio muito a calhar, pois facilitaram sua entrada e acomodação no caixote. Fosse duro, e só uma esquife resolveria.
O bêbado passou vinte e quatro horas no caixote. Vinte e quatro horas correspondem a um dia. Um dia no caixote. E como velho que é velho e que se comporta como velho, morreu. Cheirando a álcool.
- O velho fez por onde!
Fez.

Essa é a história do nosso sólido solitário homem com uma garrafa contendo líquido alcoólico na mão. Mal contada, bem sei. É que os pressupostos que expliquei são inúteis. Faltou que eu dissesse que apesar de todo homem ser sólido, sólidos homens poucos são. Faltou dizer que a língua tem traquejos que deturpam os conceitos físicos, e o sólido vai além da condição dos corpos. Faltou entrar em conjecturas, mui lúcidas, da realidade que se desdobra em mais de bilhões de realidades, de bilhões de julgamentos levianos que ao fim se revelam um só. De que a imagem do sólido no imaginário de todos nós é a mais pura das imagens, e que imagens são mais perigosas do que a sua etérea natureza faz supor. Faltou dizer que o homem é naturalmente mau, que é naturalmente bom, que é corrompido pelo meio, que o meio o faz crescer. Mas mais faltou dizer que o caixote subverteu a solidez do sólido, como a garrafa confirmou a liquidez do líquido. O bêbado saiu quadrado, de pulmões paralisados e corpo rijo. Seu estertor foi dado com bafo, com um mínimo bafo que ele pôde dar. Mas suas vítimas sofreram bastante. Faltou dizer que nada se compensou. Faltou dizer que o bêbado tinha uma cara que todos conhecem, porque todos já a montaram antes mesmo de ele montar suas estripulias. Faltou dizer também que o sólido homem também já tem uma cara conhecida, porque todos sabem quem é a vítima disso tudo. Faltou dizer que nada mais resta a ser feito: todos já sabem. O bêbado não precisa matar e a filha do sólido homem não precisa morrer. O passado que ninguém viveu já deu a eles a condição de sólido frágil homem e bêbado mau inumano.

Faltou dizer que o sólido homem um dia falsificou a assinatura do seu pai. Mas essa última falta, sempre faltará.

sábado, junho 24, 2006

Marquetingue

Ttttt
Shlef
Ttttt
Shlef
Andando.
Ssshhh
Hhhsss
Respirando.
Because of you. Because o outro lado da rua.
Ttttt
Shlef
Ignorante ignorada anda ingênua, mão com mão com rebento do rebento. Avó e neto do outro lado da rua.
O que significa downtown a quem downtown é apenas o-centro. N'o-centro, vindos do subúrbio, fazendo seus próprios ttttt e shlef e ssshhh e hhhsss e olham amedrontadas pessoas com medo. Simplicidade.
Diferentes. Sucessivas barrigas rebentadas para o par formar familiar. A perpetuação da espécie e da ignorância.
Os pensamentos falam como. Bocas
Bocas
Palavras
O que as bocas da velha senhora de pele velha falam que sua boca não pode dizer. Velhe pela, otas folhas, língau cunfondadis.
Confundidas.
Um mundo tão velho quanto os sulcos da sua pele. E tão novo. Ttttt shlef do outro lado da rua. Olhos alumbrados. Mundo novo como a mão do neto agarrado pode ser.
Uma abordagem um susto um medo de dizer não um não sei o que faço agora. Técnicas do marketing moderno.
- Marquetingue?
Ela não iria entender. Quié isso mermão? Censor supereguista alienado. Nada mais que a realidade, mermão. Não conseguiria entender jamais.
Financiadoras, franquias, factorings, fomentos, falimentares, faturas, falências, fundações, firmas, faturamento-recorde, folha-de-pagamento, fichas-de-compensação, formulários, fiança, fideicomisso, fateusim.
Felação, fornicação, foda.
Hã?
Because ttttt of shlef you
Ssshhh
Hhhsss
Respiração, passo, pensamento.
- A senhora não quer tomar um cafezinho conosco e conhecer nossas propostas? Terá tudo que precisa.
Não quer e não precisa. Mas quererá e precisará. Isso é marketing!
Entre esgotos a céu aberto e ruas de chão batido onde o passo não é ttttt mas mais surdo um ddddd não há homens de boné vermelho da Finasa Financiadora oferecendo propostas irrecusáveis nas esquinas a quem quer que passe de preferência uma velha sulcada com seu neto ignorante mas não mais ignorada ingênua que não sabe como agir porque não pisa (ttttt shlef) em terreno conhecido entre protocolos já estabelecidos e bem definidos impossibilitada de dizer não porque não sabe o que fazer. Não dizer não.
Não!
- Tá bom.
Marketing e o segredo do sucesso. Um parasita ensinou ao outro que corpo forte se defende, embora tenha sangue.
Milhões de corpos fracos.
Hemoglobina do mercado.
Continuo tttt shlef
Andando.
E ssshhh hhhsss
Respirando.
Pulmões e pernas que eu tenho desse lado da rua. Sei bem fazê-lo downtown. Mas a malbecausedita musicofyou que me grudou na cabeça!

quarta-feira, junho 21, 2006

Poema anal (ou letra para um funk)

Sitibundo
Pela bunda
Do teu mundo
Levantada,

Se te pego
Nua em pêlo
No teu rego
Assanhada,

Te esculacho
Te arregaço:
O teu facho
Eu apago.

sábado, junho 17, 2006

Bloomsday

Minhas mãos medrosas sofrem com a grandeza tirânica da minha cabeça. Como o dedicado cardeal Wolsey sofrendo com os caprichos conjugais de Henrique VII. Traidoras. Olho a bunda redonda da menina que passou ao meu lado, e minha boca é preguiçosa enquanto imagino orgias. Casanova? Meu corpo é mais prudente que minha mente. Segurança do banco de madeira.
Um homem passa e suas mãos batem no bolso de trás. Tranqüilo: ainda a carteira ali. A alma dele ali também, toda a vida dele em volta daquele bolso glúteo. A minha também, desesperadamente também. Desalmados que passam vendendo óculos escuros de marca roubados. “Não, eu não uso óculos escuros, obrigado”. Vá embora que não quero você. Tchau. Tchau! Livre.
Leio um livro grosso. Tanta preguiça nos meus olhos. E minha cabeça tirânica ainda quer ser grande. Hoje, eu consigo dez páginas! Fraco triunfo de pessoa fraca. Quantos livros eu já li? Mais de cem, talvez. Coisa pouca, não lembro de nada. O Graciliano Ramos escreveu e eu li, e depois esqueci. Hoje eu lembro que o antecedeu Jorge Amado, e depois veio Érico Veríssimo. Informações inúteis. Como saber que ontem foi o Bloomsday e eu estou no Brasil sonhando com Dublin.
Tanta coisa eu já pensei e poderia dizer a essa rodinha de velhos aqui atrás. Tanto absurdo que falam. Eles não entenderiam. A seleção não empatou em 2002. Eles não sabem? E se eu entrasse nos meandros da economia para dizer que nem tudo é culpa do governo. E que viados não são doentes. Talvez tenha algum velho inteligente, e eu só me acho esperto porque não digo nada a ninguém. Todo meu sustentáculo de papel evita o vento; não coloco as coisas a perder. Segurança e auto-estima.
Um lábio carnudo comendo cabelos vermelhos. Um desejo só, passa logo. Outra passa, com pernas gordas e cheias de furos. Lipócitos acumulando gordura contra a pele. Eu teria vergonha de usar uma saia curta se tivesse as pernas dela. Mas a calça de tricolina xadrez daquela outra eu quero pra mim. Passei da décima página, posso olhar um pouco mais. A menina não é bonita, mas aquela. Moda. Feios bonitos diferentes. A diferença que o padrão tolera e padroniza. Escandalosos ontem, corriqueiros demais hoje. Também nem tanto, o básico eu vejo sempre e mais. Importante é não sair demais das coisas consagradas. Ser triste é bonito. Ser alegre só com roupas esvoaçantes e cabelos descolados. Importante é pisar em terras conhecidas.
Pessoas caminham bastante, falam pouco. O chão de pedras brancas – que pedra é essa? Só os velhos aqui atrás falam muito. Creio que são surdos, só pode ser isso. Ou sobreviventes da queda de Babel, lingüistas incomunicáveis em monólogos a três. Só sei o que é mármore e granito e ardósia e pedra brita. Que pedra é essa? O chão não escapa, pelo menos na maioria das vezes. Isso explica tudo. Andam mais do que falam porque com os ouvidos e os pensamentos tudo é diferente. São sempre fugidios, ariscos com palavras alheias. A gente pisa e o chão sempre lá. A gente fala...
Uma perna, duas muletas. Bêbado, eu acho. Viu-me. Hey, cara preto, o que é que você faz aqui? “Tem dois reais pruma ajudinha? É pra passagem”. Um e oitenta a passagem, pegar trocado demora muito. Um e oitenta pra passagem, vinte centavos pra se ver livre logo. Dou-lhe alma? Sabe do quê? Almas só servem para nos prender. Dê os cinqüenta, vai. As oncinhas pintadas a ele e eu livre!
Tiro a tartaruga marinha. Dou-lhe. Ganho um sorriso e fico com os cinqüenta. Afinal, eu ainda quero ficar preso e garantir a única essência que conheço de mim.
- Ô, vou te contar um segredo, mas você não pode contar pra ninguém.
- E pra quem que eu vou contar?
Nem sei quem você é. Pára de cuspir, desdentado! Simpatia, eu sou simpático, eu sou amável. 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8, 9, 10.
- Eu sou cantor.
E eu sou escritor. Você com essa voz e eu com essa letra. Há, há!
- Ah, é? – respondo.
- É sim, mas não conta não.
Ele me toca. Velhos amigos. Metempsicoses e vidas passadas, não sei nada disso. Quem não arrisca, não perde.
- Mas se você é cantor, aí sim que tem que contar.
Cantor contar, serei poeta.
- Não, que me chamam lá pro Ratinho. Daí eu vou ser assaltado em São Paulo.
Ara! Gente ruim. Assaltar esse pobre diabo!
- Ah, bom – concordo, dizer o quê?
- Mas eu tô juntando dinheiro pra fazer uma lanchonete. Aí eu canto.
Lá se vão meus dois reais. Ele continua:
- Eu tô vendo pra fazer uma lanchonete. Dois mil-e quinhentos. Vou emprestar, olha aqui.
Tirou uma porção de notas fiscais de mercado do bolso. Propaganda de cartão de crédito. É dali que ele vai montar a lanchonete com dois mil e quinhentos reais. Santo? A multiplicação dos peixes. Continue conversando.
- E onde vai ser o bar?
- Bar nada! E eu sou gente de cantar em bar? Vai ser uma boate.
Claro.
- Cuide então do dinheiro, que te roubam.
- Roubam nada. Olha aqui, não tenho uma perna. Quem vai me roubar?
Lógico. Mas antes ele estava com medo de São Paulo. Pessoas excêntricas. Será um gênio?
- Sabe, eu tenho uma irmã que trabalha na Unimed. Pergunta lá pelo José.
- José é você?
- É sim. É eu. Mas meu nome de cantor é outro.
- Ah, nome artístico. Tá certo. Qual que é?
- Joelton.
Belíssimo.
- Joelton. Você vai ouvir. Joelton na televisão. Conhece Zezé di Camargo?
- Sei quem é.
- Então, canto que nem ele.
Puxa vida! Pego um autógrafo?
- Parabéns!
- Um dia vou tá lá na chácara dele comendo um churrasco.
- Legal.
Um douto representante da camada de cabelos espevitados e jaquetinha bonita passa por nós. Olha-nos espantado. Coisa estranha, não?
Orgulho-me da minha simpatia com o José. O choque do meu sorriso com o desprezo blasé dos outros.
- ... São Paulo.
- Hã?
- Porque quando eu tiver lá, não vou esquecer de Curitiba não. Eu sou paranaense, volto pra cantar aqui. Imagine. O Ratinho não é paranaense?
Meneio a cabeça: é sim.
- Ele nem volta pra cá. Eu não. Não vou virar a cabeça.
Canso. Quero gente inteligente e calada comigo. Atendo, de mentirinha, o celular. Ah, sim, já vou.
- Valeu, cara! Boa sorte. Eu tenho que andar.
- Vá lá. Você é bonito. E não por causa dos dois aqui que você... E com esse livro aí, estuda bastante. Vai se dar bem. Aí você compra um CD meu.
Vaticínio consolador, realmente. Deixo do pudor, agora te considero indesejável, tchau. Faço questão de cumprimentá-lo mão com mão. Lavado de seu cuspe. João Batista batizando Cristo. Redimo-o. Vá e seja feliz. Vou, sobre o chão seguro, entre pessoas desconhecidas, tão aconchegantes.

sexta-feira, junho 09, 2006

De esporros e assédios morais

Maçãs tensas,
retesadas sobrancelhas.
Sobre as celhas
o pastoso tegumento.

Escondem as paredes
O chão e o teto do trabalho
Pulsões irrefreáveis.

Hierarquiza-se o grito.
O pavilhão que o acomoda
Amedronta-se.

As paredes da intimidade,
Secretíssimas, escondem a paixão
da ira imanifestável.

quinta-feira, junho 01, 2006

Afasto o véu do ar para encontrar-te
e encontro a mim mesmo
atônito:
duvido do ar que afasto.

Incompreensível orbe,
iracundas urbes.
Mundo, que mundo?, que nos rodeia
e me rodeia e me rodeia e me rodeia...

quinta-feira, maio 25, 2006

Durma bem

que é isso de imprimir
a noite em tuas pálpebras?

domingo, maio 21, 2006

Os escribas

Então! Caíste dos céus,
Lúcifer, filho da aurora!
Então! Foste abatido por terra,
Tu que prostravas as nações!
(Isaías, 14;12)
Chegado à tenda onde os escribas do reino de Judá ceavam, Isaías baixou os olhos ao chão, prostrou-se em honra ao Senhor, e disse:

“Amaldiçoados sois vós, que da pena
de tinta molhada vos alimentais,
como também do papel escrito.
Assim dirá o Filho: exaltados serão
os que se humilham! Vós, porém,
que vos exaltais, humilhados sereis.
Depositeis seiscentas e sessenta e seis mil
letras em seiscentas e sessenta e seis
tábuas, e sereis setecentas
e setenta e sete vezes escaldados!
E quem de vós mais majestosamente o fizerdes,
terá na mesma medida o pior dos
assentos na casa de Satanás!
E quem de vós menos de vós mesmos
escreverdes, terá, na medida mesma,
o incauto corpo coberto de vermes
no momento do último estertor!
Disse-me o Senhor: o servo que em santo prado
enterrar-vos, a vós que quereis ocupar
Seu santíssimo trono de único Criador,
terá sua tenda queimada, estéreis serão seus
filhos, e morta a sua linhagem para todo o sempre.
Eis que ao homem na terra só é dado escrever
a Revelação que o anjo do Senhor inspira,
jamais alguém poderá dominar a Criação.
Vós, portanto, que com a tinta de vossas penas
crieis mundos e homens novos em vossos papéis,
sois indignos hoje, e abalados são os
caminhos que vossos pés pisam pela ira
do Senhor, Deus dos exércitos.”

sábado, maio 20, 2006

Circunstancialmente...

"Jamais pensei que a morte a tantos destruíra."

T. S. Elliot, in The Wasteland, trad. Ivan Junqueira

Ínfimo conto sobre a queda da bola de borracha vermelha

Inércia, pura inércia, e de repente zás! A força motriz: a bola rola rola e rola. O plano não-inclinado da mesa e o equador da esfera num íntimo contato de coeficientes de atrito da borracha e da fórmica, o pansexualismo dos objetos. Irresistível e abrasivamente, como a carne afoita pela outra carne, os pólos vão se alternando, a fórmica sustenta o rolo infinito em sua condição finita de mesa... Então o gozo. A bola chega ao limiar do plano, ninguém mais a apóia! A gravidade, enfim. O chão, a colisão imperfeitamente elástica. Desesperadamente, apaixonadamente, inutilmente, a bola arrebatada volta aos ares tentando amar de novo a mesa, e não a alcança. Resta-lhe o chão somente. Onde pára e espera e volta à inércia. Pura inércia.

terça-feira, maio 16, 2006

Quem sabe o que diz, que diga

"Ai, mamãe,
Seu pedido Deus abençoou!
Sua fé foi muito forte,
e o presídio da Ilha Grande acabou!"

Bezerra da Silva

segunda-feira, maio 15, 2006

Sodoma

Queimem-se os pederastas e as tribofilistas! Degredem-se os dados à prática da cunilíngua e da felação! Mostro-te o retrato da minha cidade e tu me dizes que é que se passa. Tens razão, nada disso é mais que a parada da vergonha gay. Benditas senhoras – digo delas “frustradas”? – mães de família, porta-estandartes da moral e dos bons costumes, sejam bem-vindas: arrombem minha vida com suas panelas de fundo riscado com aquele movimento emblemático da sua mediocridade, sou seu servo.
Acusado de sodomia. Punido com demissão. Justa causa reconhecida por sentença judicial. Tenho dinheiro, sabes como é, não apelei, meu tempo urge, tenho o que fazer. O argumento: represento a empresa, vedada a mim a prática de atos que a degradem – mau procedimento, enfim. Revoltas-te? Puxa, não o faças. Fica sabendo que minha sodomia – não a neguei jamais – revolta muito mais essa gente: tua indignação é coisa pouca.
Em realidade, outro motivo muito mais aprazível fez-me aquietar com a coisa toda. Contaram-me que a empresa anda mal. Veja só, sou ateu, mas às vezes as divindades nos percebem e conosco brindam à vingança. Perdeu muitos clientes, sabes como é, eu os tinha conseguido. Não que eu fosse o mais importante e o melhor dos executivos, não isso, mas o que eu consegui era bem significativo. Não vai falir, não, logo volta como antes, só que o puxão de orelha já é de bom tamanho. E o filho do patrão, pupilo meu? Ih, esse ficará perdidinho. Tu sabes como ele é meio lerdo, e eu sempre lá p’r’uma forcinha. Dava um bom petisco, mas era do lado certo o garoto.
Sabes de uma coisa? Se o Ferreirinha soubesse como eu captei tantos clientes abriria uma boate gay. Jamais me demitiria. Consegues imaginá-lo chefe disso? Nem eu. O que tem de preconceito tem de honesto esse homem. Devias ter visto a odisséia que foi convencer o patrão a baforar charutos com clientes p’ra agradá-los. Treinou comigo, a sós (quando soube da minha sodomia ele deve ter tido espasmos só de pensar que ficou sozinho comigo no escritório! Crêem eles que não nos damos valor, não é?). Tossiu tanto... Legítimo Cohiba, o bom gosto eu lhe infundi.
É uma pena ter saído de lá, penso às vezes. Tinha um jovem, sabes como é, tão simpático. Isso é o que mais me dói. Mas fazer o quê? Disse a ele que não nos veríamos mais. Chorou; chorei. Não dá. Ele tem futuro, eu já sou cobra criada. Obrigo-me a preservá-lo.
Concordo contigo. Isso um dia ainda há de nos destruir a todos. Fazer o quê? Não tive ninguém que me advertisse a partir; não tenho filhas a salvar, muito menos mulher para se transformar em coluna de sal. Mas te digo, meu amigo: não são nem dez os que se salvarão do enxofre divino! Não há por quem possa o velho patriarca interceder diante do Deus e sua imensa intolerância. Se não a sodomia, qualquer outro mal será inventado para julgá-los. Nunca compreendi as revelações sagradas. E quem as fez, acertou?
Também acho.

domingo, maio 14, 2006

Até tu

E tudo à merda se encaminha. E encaminhando-se assim, tão afoita, ao estrume, que dizer da humanidade acometida com síndromes meta-individuais não-nominadas de fetiche ao fétido? Chamá-la doida é impossível, que doidos são os que da massa divergem demasiadamente. Ela mesma não pode desviar-se da própria essência, ainda que a essência venha mudando com os anos. Ela é a massa e os doidos, mas mais aquela que estes. A essa pulsão-quase-sexual da humanidade ao que fede não podemos atribuir a loucura. Se não, correremos o risco de morarmos todos, ou quase, na Casa Verde do nobre alienista.
Aquilo sobre o que todos os homens têm entendimento: balela. O primeiro mandamento, os conselhos de Cristo às favas! Cláudio, o rei da Dinamarca! Por quê? Não, não é o amor que cria a vida. Talvez seja; mas que bem mais desprezível e volúvel possuímos, não acha?
Patrimônios da humanidade, monumentos do saber e do deus. Muito caros. Aprendi na história mais sobre o sangue que na medicina. Que é mancha, não alimento. Que é anti-natural o natural fluxo intravenoso: interrompamo-lo como fez as vinte e três punhaladas de Brutus. Tu quoque, Brutus, fili mi! Pois veja você. Eia! É assim que se deve viver!
Vivamos.