Perguntei outro dia: poesia para quê? Se for para dar ao mundo covardes e tiranos, de que serve?
Quem concorda com a pergunta, que já traz em si a resposta de que não serve para nada, e ainda é prejudicial, é porque não refletiu muito sobre covardes e tiranos. Postula-se desde sempre que é melhor não contar com covardes e tiranos, mas tal posição – que é a posição mais cômoda de se tomar – é a de quem à face de um covarde é um tirano, e à vista de um tirano é covarde.
Não se pode negar que tiranos erigiram monumentos históricos que definiram nossos rumos, e muito menos que monumentos da espécie não nos admirem. Tiranos são expressões individuais de uma consciência de época: eles não emergem do nada e contra todos. Pelo contrário, há uma corresponsabilidade de todos na sua existência. Não temo em dizer que existe hoje um tirano no mundo de que não desconfiamos, porque compactuamos com sua tirania – e isso subtrai ao nosso juízo o a possibilidade de julgá-la como tirania. Pode-se tratar de uma totalidade que com mais ou menos violência se impôs acima de suas negações ou pode-se tratar desta ou daquela pessoa, ou o que seja. Tal afirmação posso fazer com pouca pugna, entretanto nomear o tirano é mais difícil, pois também sou produto do nosso tempo.
Com a eventual objeção de que no meu texto anterior citei nomes, identifiquei tiranias com este ou aquele, concordo, pois tratava especificamente da poesia e do poeta, como tratarei novamente mais adiante. Chamar uma totalidade, uma conjuntura, um estado de coisas de tirania seria outra coisa? É outra coisa, com efeito, mas o ponto específico da argumentação do parágrafo anterior permanece intacto: a diferença entre um e outro não é da natureza da totalidade, mas apenas que este ou aquele estado político de coisas (a totalidade) se pode identificar com um nome, enquanto outros são mais impessoais. O nazismo não é Hitler: é um povo, um espaço e uma época inteiros. Aliás, nem alemão o nazismo é, toda a Europa - diz-nos isso, por exemplo, o caso Dreyfus na França, ou, na ficção, Leopold Bloom em Dublin - era xenófoba à época (e é hoje): seu horror com o holocausto é o horror de quem se olhou no espelho e, assustado com o que viu, quebrou o espelho. Nem o helenismo é Alexandre, nem a cruz é César, nem a inquisição é o papa, nem a democracia liberal é... quem? E aí está a nossa covardia perante o tirano: a esquerda, por exemplo, prefere simplesmente negar Stálin, e muitas vezes o próprio comunismo, e assim nega que um tirano tal tenha emergido dela. O fato é que Stálin é filho do marxismo, direta ou indiretamente, mesmo que por vias bastante oblíquas; quando a esquerda o nega nega a própria responsabilidade de evitar novos Gulags. A direita admite aos poucos discursos como os ambientais: mas tem coragem de admitir que desenvolvimento e meio ambiente são inconciliáveis, ou que a fome na África e a aniquilação indígena americana se dá sob sua bênção? Você que me lê também nega a violência que há por trás da democracia liberal na condição de discurso total: você é um covarde.
Por outro lado, frente ao covarde somos tirânicos. Porque não se pode admitir a força da palavra recolhida na sua própria discrição: há que se exigir a ação. Porque frente a tudo uma posição tem que ser tomada, e na hora que se a pede. Por que o medo da teoria e das reflexões e da boa poesia? Sempre há o discurso de que aquele que porventura defende o comunismo tem que aceitar dividir o próprio quarto, abster-se do consumo, pegar em armas e destituir governos. Destituir para quê, se nem sabe contra o que se deve lutar – e correr o risco de matar em nome do mesmo espírito que vige? A vantagem do covarde é que não caminha sobre os terrenos seguros da certeza do homem de ação. O covarde é pessimista: sabe que deve desconfiar dos consensos. O covarde é otimista: sabe que deve confiar no estudo e no ouvir o silêncio das coisas. Mas se exigirá dele, e quem o fará será o tirano que no parágrafo anterior era o covarde, que fale quando o silêncio é pertinente, que aja quando não há nenhuma articulação possível para ações. Para o covarde, o homem sozinho não pode agir, porque a articulação dos homens - no plural - é uma necessidade. Mas a articulação recolhe em si a potência da manipulação de massas: e assim o covarde se suspende sobre o abismo da incerteza – a sua covardia aos nossos olhos. Há a guerra e há a paz, e o covarde sabe que elas não se negam: interdependem-se, sua diferença harmoniza-se consigo mesma, e ele hesita sempre no conflito – Aquiles é heroi que vence Heitor, é heroi que perde Pátroclo.
E que isso vem a calhar à poesia? Por tudo que se fez constar, sabe-se que a poesia não faz de ninguém melhor. Porque desde há muito ela se desvinculou de qualquer necessidade pedagógica – ao contrário, por exemplo, dos poemas de Homero, elevados à sacralidade pelos gregos até que Arquíloco e sua lira a contestasse com nova totalidade, e então que Heráclito tirasse a voz dos deuses e das musas dos versos e neles identificasse o puramente humano: na poesia, na boa poesia, há o não-dito, o silêncio, as impossibilidades, a covardia, o conflito – o tirânico e seu contrário, sim e não. Por fim Platão, ao expulsar os poetas de sua República, não os expulsa, mas expulsa quem deles diz portarem a criação; a palavra é palavra na incompletude, por isso é sempre simulacro das coisas de seu céu ideal, resguarda sempre recessos de sombra. “Instituída em lugar do ausente, quem a toleraria na clara presença do que se declara?”, diz Donaldo Schüler.
Palavras não criam nada. Palavras não fazem de ninguém melhor. Diversamente pensam os cabalistas: no princípio era o Verbo. Deus cria com fórmulas verbais: fiat lux! - declara – e eis a luz. Na Torá tudo que existe está dito, o que revela que a linguagem tem natureza divina e pode dizer tudo. Interpretar a Torá é enveredar por um texto absoluto que encerra em si todas as coisas do mundo. O Golem nasce de fórmulas verbais de homens que aprenderam a dominar a criação, ou parte dela. A luz existe porque existe a palavra luz. Este seria o domínio dos poetas? O de criar, e fazer brotar da palavra a coisa, e não aquela desta? Se é, a poesia é perigosa. Toda letra na história da criação tem sua razão de ser, toda ela manifesta a natureza da divindade, e sua combinação é divina. A criação advém de tal articulação: mudá-la é criar monstros, aniquilar o tempo, inverter os espaços. O poeta tem uma arma na poesia: manejá-la é destruir o mundo. E quem pode nos garantir que a tristeza não seja obra dos poetas covardes? E a fome dos tiranos, os maus poetas? Escrevi certa vez, tentando imitar o estilo bíblico: “Eis que ao homem da terra só é dado escrever a Revelação que o anjo do Senhor inspira, jamais alguém poderá dominar a Criação.Vós, portanto, que com a tinta da vossas penas crieis mundos e homens novos em vossos papeis, sois indignos hoje, e abalados são os caminhos que vossos pés pisam pela ira do Senhor, Deus dos exércitos”.
Assim, além de não fazer de ninguém melhor, a poesia ainda pode modificar o projeto de Deus para o mundo, e é claro que sempre para pior, pois o poeta não pode ser perfeito. Ou seja, qualquer resposta que se dê tentando justificar a poesia contra a dúvida do seu para quê, ela será insuficiente. Como defendê-la, contra toda a evidência de que ela realmente não serve para nada?
A poesia não serve para nada, e pour si muove! Existe, apesar de tudo. E talvez existirá ainda, e talvez seja eterna. Se a poesia sobrevive ao seu para-quê e impõe-se contra toda acusação de sua inutilidade, é porque a pergunta em si precisa se justificar. Para que para-quês? Hannah Arendt perguntou uma vez: “a que é útil a utilidade?”, ou “de que serve a serventia?”. A poesia, portanto, serve para pôr em cheque a própria necessidade de justificar-se, ou ainda, fará com que nunca essa necessidade se satisfaça, para que o para-quê seja eterno. E com isso consegue nos colocar no abismo da incerteza, do desassossego, do conflito, ou nos angustia a tomar posições, a agir. Torna-nos cientes da nossa própria covardia frente ao já-sempre-sabido, e eventualmente nos impele a sermos tirânicos e fazer emergir uma nova totalidade, ou assumir explicitamente os nossos princípios silenciados. A poesia, seja na sua timidez, na sua discrição, ou na pobreza de sua grandiloquência, impõe-nos perguntas. Uns acham que as respondem, outros as multiplicam.
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