Caro leitor,
Primeiro cabe dizer-te por que, nestes tempos de 2009, dirijo-me a ti por tu. Certo é que por questões de estilo o texto poderá parecer mais elegante, um ligeiro arcaísmo para nos deslocar de algum modo do aqui e agora. Dirás que nos torno mais portugueses e menos brasileiros, e pode ser que gostes ou não disso, seja por amor ao nacionalismo ou raiva ao nosso mau uso do vernáculo, como é opinião corrente. Mas de minha parte não nos quero mais ou menos portugueses, eruditos, virtuoses ou o que o valha. Não me fiz a mim jardineiro, mas vagabundo; pouco se me vale de que bunda sai o esterco com que se cultiva a última flor do Lácio.
(Pronto, aí estão a bunda e o esterco. Embora eu tenha uma séria desconfiança de que os elegantes também se virem com suas bundas e seus estercos, creio ter desfeito tua ideia de que o tu é empolamento. Tu és tu, simplesmente; para que mais metafísicas que isso?)
Dirijo-me, pois, a ti e não a você pela inigualável vantagem da elipse. Conheces a vantagem da elipse? Sei que sim. Se fores homem, lembrarás daquela noite em que tudo fizeste primeiro para que pudesses te estabilizar ao lado da mulher desejada; então para que pudesses manter alguma conversa, e por último para que pudesses enveredar por um ou outro assunto mais íntimo. Talvez achasses a mulher receptiva, talvez achasses acabrunhada mas não invencível, e tivesses que falar sobre teu espantoso conhecimento acerca dos números da camiseta de cada um dos Irmãos Metralha – ser o engraçado é sempre fundamental. E ela se ria, enquanto tu sentias o campo se deixando dominar cada vez que o riso findava e o interesse se mantinha em ti e não na amiga. Então jogaste uma ou duas palavras bonitas, falando justamente que ela é... bonita, isso, bonita e nada mais, e dela o riso veio mais tímido. Mas não importa, todos são: avançaste; ela recuou o rosto, lançou a boca para o lado, com os olhos sempre baixos. Quando levantaram, eram taciturnos e expressavam mais pena que ofensa, sem uma palavra. E tu entendeste e foste procurar abrigo em qualquer lençol solitário do teu enxoval. Lembraste agora? Aí está a elipse, senhor tu: vê bem quanta economia nos dá, de quanta chateação nos poupa. Uma palavra sempre pede outra, quando se fala explica-se, e quando se explica nada fica explicado e tudo precisa vir à tona de novo e de novo e de novo. Mas não: basta o olhar e tu já te encontras proscrito. Se, no entanto, fores mulher, apenas te coloca no lugar da mulher acima e tudo fica o mesmo. Melhor, terás ainda mais apreço pela elipse, pois é regra geral entre as mulheres o serem elípticas. Por quê? Queres apreço maior que o de evitar a resmunguice masculina? Ah, perguntas da regra geral. Digo-te que não sei, apenas a sinto, uma teoria sem corolários ou fundamentos, e peço-te que não estranhes, pois estranhar o sentir na posmodernidade é o que é deveras estranho.
Essa é pois a vantagem do tu: se basta no verbo. O você precisa sempre se diferenciar do ele, e eu me cansarei se tiver que lançar o tempo todo você para cada momento em que é a ti que me refiro. Tudo bem, a economia é pouca, são quatro letras por nenhuma, e entre as elipses com certeza preferimos aquelas femininas. Em verdade, compenso o tão longo nada desta carta, como o gordo que come x-tudo com coca-light: queiras ou não, alivia o peso, não desprezemos o nível simbólico das coisas; um tuzinho cá e uma coca-lightizinha lá podem ser a salvação da nossa autoestima. Fica então assim, não por elegância nem por lusitanismo, o que me governa nesta carta é, digamos, a digressão pragmática. Isso! Imagina que levei algumas horas para definir esta carta, e a digressão pragmática soou-me enfim sonora e não se compromete com concisão nem com prolixidade e nem contigo, que neste momento já deve ter rompido comigo.
Não importa. Eu é quem te crio, tu és quem me anula. De sorte que da culpa sou eu quem está isento, igualzinho àquele amigo que te traz o mais horrível dos poemas para a tua severa opinião. Conheces o amigo e sabes de antemão a qualidade dos seus versos. Mas não lê-los é crime, não comentá-los, agravante, descer a lenha, uma crueldadezinha. Vá por mim, lê. Ele criou o teu delito e safa-se inocente, a ti resta apagar os vestígios. Não é do meu consciencioso proceder, minha aura me é muito clara, evito falar mal. Mas tenho crido ultimamente que há muito mais vantagens no coice de cavalo que no afago do cachorro: quantos mil protocolos – e até cuidados poéticos! - não se exigirá o horrendo poeta, que se apresenta a todo mundo antes como escritor que como ele mesmo, para chegar a ti novamente?
Mas que falo? Agora seria a hora de dizer a que vem a carta, e se voltas a ler os parágrafos acima vês que a nada. Quando falei da última flor do Lácio até pensei em expor-te minha teoria da última flor do Lácio e o Apocalipse. Mas é uma teoria banal, que nada diria do português e menos ainda da Bíblia; falaria apenas do caráter de ser o último, mas um falso último, como o pretenso minuto derradeiro do suicida mal-sucedido. E se te escrevesse coisas tais, a única conclusão possível é que escrevo por escrever. Talvez. Mas a menos que seja um contrato ou que se seja um gênio, qualquer escrever é por escrever, inda mais agora em dias nos quais até analfabeto sabe ler.
A bem da verdade, há algum tempo venho pensando em escrever cartas. E justamente pelo nobilíssimo motivo de escrever. O problema de se ter ideia é ter que desenvolvê-la. Pensara numa carta, e lá estava ela toda bela, encaixadinha em frases rápidas e espirituosas, literalizadas com um modesto cosmético da literatura, eventualmente num papel ornado de filigranas e cheiros amadeirados. Pensara-a assim, vagando num fundo preto, sem mundo ou contexto, toda perfeita, toda feita, girando como carro novo em feira automotiva. Porém, e este porém é mais um no entanto, que me parece mais forte, cartas não são assim. Elas tem destinatário, elas tem assunto, elas tem as notas sentimentais de um coração quebrado ou de um vencedor exultante, e o pior, elas tem letras, e no caso seriam as minhas letras, o que é bastante problemático. Assim, para concebê-la, começaria pelo destinatário, e o método seria de exclusão. Excluí primeiro os que não leem português e os que não gostariam de ler uma carta minha, em segundo lugar as que ficariam constrangidas se a recebessem, em terceiro os famosos, as sumidades, os numes e Deus, para não desviá-los dos seus talentos, em quarto uma amiga que me recusou seu endereço, em quinto outra que não me recusou mas que se receber pensará ser uma carta de amor, em sexto os ombudsmen de jornais, porque eu acho todos os jornais perfeitos e irrepreensíveis, por último aqueles que pudessem me responder e mostrar que não entenderam nada do que eu havia escrito. Fui procedendo a esta exclusão, mas me vi um tanto ingênuo: já no quesito não gostar de receber uma carta minha não sobraria ninguém. Não o digo por autocomiseração; pensa bem: temos e-mail, Orkut, Twitter e o escambau, tudo feito para o bate-rebate no pá-pum e ponto final. Sem danos, sem exposições, sem perdas de tempo, totalmente elípticos. Afinal, já concordamos quanto à vantagem de ser elíptico, e a única mostra dessa vantagem nessa carta, como vês, é o tratar-te por tu ao invés de por você...
Então te inventei, és meu destinatário. Não te dei rosto, não te dei sexo, não te dei pai nem mãe. Mas te dou esta carta, que, se não é boa, pelo menos te faz um ser único na humanidade, o meu destinatário. E justamente por seres assim como és, não tenho assunto para tratar contigo, de modo que resolvi assim o segundo problema da resolução da carta. Não vou falar sobre nada! Podes imaginar quanta liberdade há nisso? Sinto-me num prado imenso e verdejante, dez mil homens caem à minha esquerda, dez mil à minha direita, e a obrigatoriedade do diploma de jornalismo cai à minha frente, mas eu não sou atingido. Outros mais caem, o Congresso de pé porque é malandro, na USP tropeça a democracia (mas calma: nunca cai o chavão da escola pública, gratuita e de qualidade...), um Air France cai no Atlântico, os Estados Unidos derrubam a Espanha e um homem do Taleban com uma porrada de afegãos, Michael Jackson apenas termina uma queda há muito começada enquanto a crise somente a inicia. Mas eu continuo no meu prado imenso e verdejante, preferindo a tudo o tédio, a todos tu, a algo o nada. Avatar da apatia, nem me sinto sentir nem me venço exultante, apenas fico.
Satirizo? Pois bem, satirizo, se te contentas dizê-lo para me desdizer. Mas advirto-te que não disse rigorosamente nada desde o início, e se queres dizer que satirizo para me desdizeres, desdizendo o nada que disse, dirás exatamente o contrário do que pensas dizer. Entendes? Careço da verve de sátiro, pelo menos desde o dia em que esqueci minhas pernas de bode ou cavalo - os autores divergem neste ponto - em alguma vida passada das minhas mentempsicoses. Ora, satirizo! Então me queres Horácio, Swift ou Pope? Queres umas Cartas Chilenas ou uma Arte de Furtar? Não sejas tonto ou tonta, que aqui não há tamanhos luxos, e creio que procedes mal em qualificar algo de sátira para desqualificá-lo; nela fica o melhor das letras. E eu, avatar da estultice, nem me faço sátiro nem me boto cômico, apenas isso: fico.
Fico numa carta de nada a ninguém, de quem me despeço com um expansivo abraço e os melhores votos de sucesso e felicidade, com o perdão do encerramento brusco.
(Aí está: quero-me uma Sherazade que suspende algo que é coisa nenhuma).
Com carinho e até a próxima,
2 comentários:
Já se tornou lugar-comum dizer que a leitura é uma atividade dos solitários, bem como a escrita. Não se tornou isso à toa, porque lugares-comuns existem por algum motivo. O motivo desse é que muitas pessoas realmente querem se isolar quando lêem ou escrevem. Porém, não todos.
Acho que a tua carta é um possível exemplo da exceção. Em busca de um tu, você (tu?) encontra primeiro um ninguém. Poderia te dizer "ei, você, que tal me escrever umas cartas?", mas será que você me escreveria mesmo? Quando o ninguém se torna um alguém, a questão "será que alguém quer me ler?" vira "será que quero que alguém me leia?". Esse é o impasse do escritor. A coragem do poeta que mostra aos outros o que escreve parte daí. Ele quer um tu-alguém, não mais um tu-ninguém.
Enfim, é isso.
Até mais!
Declaro-me destinatária, e convicta. Um dia respondo. Não aguarde.
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