sábado, junho 06, 2009

Os queimados

................... "atque intestina perurens
ei misero eripuisti omnia nostra bona?"

(e, queimando minhas vísceras,
de mim miserável roubaste todos os bens?)
Catulo


Corpos queimados aproximaram-se para o jantar. O rosto, tinham-no vermelho, os músculos à vista, salpicados de pontos pretos do tostado. Os globulares olhos que jamais sentiam os intervalos da escuridão, à míngua de pálpebras, pareciam-me dependurados por finas fibras. E com efeito estavam, pois os queimados preferiam mexer o pescoço a arriscar perdê-los – os olhos – num movimento de mirada. Haveria um rumor de boa compleição física se lhes abstraíssemos o acidente das chamuscadas, ou se as disfarçassem sob roupas e chapéus. Mas de roupas só as que se impregnaram em unidade com pele e outros tecidos de traços indefiníveis, e assim mostravam umbigos, crostas, vergões, um ou outro amarelado de ossos, e abstrusos tegumentos de panos íntimos urdidos com pêlos e escroto e lábios.
Vinham alegres, desconhecidos, uma petulante e um faminto, ela cheia de desafios, ele cheio de estômagos.

Ele parecia pobre, mas assim queimado podia ser qualquer coisa. Não pude avaliar mais porque também não falava, e porque mortos de fome há entre os ricos e há entre os pobres. Só não estão entre os elegantes. Não tinha uma das bochechas, embora conservasse intactas as orelhas e toda a cabeleira da nuca. Segurava entre os dentes um cigarro apagado, como se este o houvesse em verdade fumado, e eu não diria que fora outro o ocorrido. Não o convidei para sentar porque prescindiu de protocolos; sentou-se onde lhe aprouve, no exato lugar que lhe caberia. Sim, parecia pobre porque humildemente regozijou-se da mesa posta; carente de etiquetas, fartos sorrisos encheram-lhe a parte subsistente da face e só não bateu palminhas porque no momento certo se lembrou da carne viva e ardida de suas mãos. Serviu-se sem mais, repousando o cigarro, do vinho, do macarrão e do frango. Fungava. Cada gole descia acompanhado de peculiar percussão gutural. Arrotava. Não se permitia pausas na monótona degustação.

Logo o esqueci, eu não o esperava. Mas nem a ela.

Só que ela eu temia. Era calva, mais que ele. Não sabia a que vieram, mas se algo houvesse, ela era quem me diria. Seus dentes eram branquíssimos, via-se através de seus beiços rotos, e o que ficou do nariz conotava um fino nariz, de gente fina como ela deveria ter sido. Ou ainda era, mas não mais a partir dali. Trazia-o empinado, toda cheia de si. A empáfia que se lhe particularizava pelo sorrir altaneiro não era fruto dessa ostentação forçada dos dentes, porque se somava a todo um donaire de mãos gesticulantes e de um fixo olhar aos meus olhos, como se se dirigisse à minha alma e não a mim. Se o fogo também me tivesse dado a forma, talvez a achara bonita, nessa empatia dos que tem a mesma sorte, mas não menos amedrontadora. Somente se sentou quando lhe puxei a cadeira, com o que agradeceu muito veludamente enchendo-me de elogios quanto à minha gentileza. Serviu-se pouco e demorava muito para tocar a comida: preferia falar e ouvir, e o fazia bastante placidamente:

- Que bom vê-lo. Parece-me muito bem, apesar do seu estado. Admira-me que se demore longamente a apreender cada detalhe do nosso, quando o este seu próprio é uma miríade de espantos e belezas. Diga-me que anda bem.

Sabia que seria assim, ela tentando botar-me contra a parede, apequenar-me para que cedesse a algum desígnio desconhecido. Manteria o nível, a boa calma, frustrando-a até que cansasse e se fosse.

- Claro que ando bem. Perdoe-me meus ares de pasmo, sou muito impressionável com toda gente nova que travo contato. Disso às sensaborias sem pejo enveredei: - mas, digam, que acharam do bairro?

- Muitas mudanças na rua, creio que foram quatro caminhões nestes poucos quarteirões.

- Carregando ou descarregando?

- Ah, que dizer? Pareciam quase cheios. A esta hora, creio que estavam a partir com as tralhas. Essa gente sempre muda, não?

- Ah, sim. Ou não se contentam, ou é o noticiário que fala de uma garganta dum amante infiel cortada, e quando não, um grasnar de um corvo lhes desperta qualquer temor supersticioso, como um sinal divino de que aqui ainda não é Israel.

- Não se iluda, eles nunca mudam. São como você.

- Engana-se você, minha querida: mantenho-me, crio raízes. Não sei que disseram, mas aqui estou desde a enchente. Ganhei um mundo, ele é meu; percorro velhas estradas, mas todas minhas.

- Velhas estradas suas. Então é assim que prefere chamar...

Chegou meu irmão. Escalou seu banco à ponta da mesa. Suas imensas olheiras diziam-me que logo enxotaria os dois da sala. Surpreendi-me, porque preferiu ignorá-los. Apenas deu-me um aceno e pegou algumas sobrecoxas para comer com a mão.

- Amanhã cedo, à olaria – disse.

- Amanhã cedo, à olaria – respondi.

- Bom.

Bastou que viesse a olaria à tona para que a mulher começasse uma lengalenga, um leguleio antilegalista, uma ladainha antirreligiosa, num fascismo epistemológico que a tudo reduz a duas ou três teorias e palavras-chave sem força alguma porque perdidas em conceitos chãos, cujo nascimento em esplendor e na mais pura sedução lhes dá o fado da obtusidade dos comentaristas do porvir, estes comentaristas do porvir que haviam se sentado à minha mesa, comer do meu pão, para que eu – eu! – fosse alguma coisa que jamais fui. Falava erguendo o tom, perdendo a compostura, até chegar a indignação pura e simples, colocando abaixo toda a impostação temoribunda da sua chegada.

-...homens suarentos, que se dissolvem na própria argila, a ter as mãos na viva carne pelo fogo que amolda os blocos, embrutecidos na ignorância da mera produtividade, absorvendo com os olhos o bafejo infernal dos fornos, perdendo-se na marginalidade esquecida de seu vocabulário de duas ou três frases feitas com voz rouquenha subtraída de qualquer melodia, puro fartum, puras bestas ante bestas impassíveis de puro desprezo e pura lógica lucrativa!

- No vácuo da razão, o grito – disse então meu irmão.

- Mas vocês jamais ouvem!

Pois então eram casas sem tijolos o que queriam! - pensei - e para todos e cada um, sempre no seu direito, ah, sempre no seu direito.

Pensei mas não disse, porque nesta hora um caroço de azeitona pousou no macarrão. Tinha saltado da bochecha vazada do esfomeado, que por ali perdia metade do que comia. Comia, pois, por quatro: a fome era de dois, o aproveitamento de meio. Sorriu dando de ombros, mostrando (fora esquecido) que compartilhava a mesma mesa. A queimada, num arroubo irresistível, arrancou de meu irmão suas blusas e as jogou a um canto da sala. Suprema humilhação, já que os braços curtos do meu irmão jamais permitiriam que ele as vestisse de novo sozinho. Foi quando vi que suas palavras – as do meu irmão e as dela – acabaram.

Eram o silêncio, olhos, e a sonora gulodice. E seu clímax de arrotos.

- Pronto. Sabemos que não há remédio. Amanhã voltamos, nós e o nosso cutelo – foi o que enfim falou o queimado.

Era ele então que deveria ter temido desde o início. Um repentino murro do meu punho o acertou no rosto. Caiu, e então foram chutes infindos no coitado.

A queimada correu para sempre. O queimado, levei-o ao fogão a lenha. Fiz que comesse todas as cinzas – recupere o que perdeu, recupere, demônio! Regurgitava e debatia-se, um olho lhe caiu da cara, um grito sufocou-se em arrotos, e então o que lhe restava de um antigo corpo ruborizava-se até enfim entrar em completa combustão espontânea.

Um comentário:

Cilene Tanaka disse...

O narrador é meio esquizofrênico: "de repente,um punho meu acertou seu rosto". As imagens lembram o Thriller do Michael Jackson e a sua forma de descrição lembra...lembra...lembra...talvez um porvir, talvez um devir. Seja como for, o inédito é sempre assustador...