segunda-feira, agosto 31, 2009

São Jerônimo e a delação premiada

São Jerônimo (347-419/420) traduziu, na Palestina, uma carta do Papa Epifânio reverenciada por seu estilo e elegância, para um monge chamado Eusébio de Cremona. A carta fora escrita em grego, língua que Eusébio não dominava, e este pedira a Jerônimo que a traduzisse simplificando as formas, de maneira que a pudesse entender. Jerônimo, o grande tradutor da Vulgata, assim o fez, considerando e tendo assim acordado que a tradução era para uso particular e seria mantida como documento privado.

Ocorre que a tradução vazou dezoito meses depois, e suas cópias caíram na mão de seus inimigos - Jerônimo era um polemista profícuo e irascível, o que lhe rendeu muitos inimigos na comunidade clerical. Em vista disso, viu-se obrigado a defender-se. O primeiro argumento é que a tradução era para uso privado, e sua posse por outrem, assim pública, só poderia ser fruto de fraude e traição, isto é, delação indevida que ressaltava ninharias como o fato de ter o tradutor colocado "caríssimo amigo" no lugar de "honorável senhor" e coisas do gênero.

A defesa de Jerônimo, na Carta a Panmaquio, escrita no ano 395, é um libelo claro contra a traição e a delação. Como se sabe, dedos-duros nunca tiveram boa reputação no decorrer da história - o caso de Joaquim Silvério dos Reis ilustra a brasileira, enquanto Judas ilustra a cristã. Não se reserva a tais personagens papel digno de canto em qualquer tematização de episódios tais. Quando se lê o curto trecho escrito por Jerônimo contra a traição, tem-se a impressão que o direito processual penal de hoje em dia se arvora num tecnicismo pragmático de punição pela mera criminalização da conduta na lei, sem qualquer consideração da dimensão ético-política, e ainda das estruturas latentes de poder e de configuração social das personalidades, na condenação penal de um homem. Quando se vale, pelo pragmatismo, da figura da delação premiada - na qual o dedo-duro participante menor de uma organização criminosa revela as atividades ilegais ou seus principais responsáveis em troca de benesses na própria punição - temos a realização de um direito desvinculado da política e do campo da honra e da palavra, a que pouco importa a criação de laços sociais e estruturas paralelas de poder que, por mais que sejam criminalizados, não podem ser relegados a uma mera condição de párias sociais. E isso em virtude da simples constatação de que a articulação entre homens é o princípio básico da política e da movimentação social.

Pois é em estimulando a traição que o direito se fecha na sua letra morta, já que assim sufoca as possibilidades de mudanças e reversões da ordem. Limita, assim, em favor da realidade posta, as tentativas de seu aprimoramento rumo à realização de um programa de radicalização democrática (este mesmo que parecia estar no fundamento da existência da ordem jurídica). Tudo em nome de uma estrutura econômica desigual que, para ser mantida, acabará, pelos canais constitucionais normais (e formalmente "democráticos"), desdemocratizando-se - como de fato tem ocorrido - para contenção das levas marginalizadas do campo produtivo das nações.

Mas mais do que minhas palavras, a eloquência do belo texto de Jerônimo fala por si. A tradução é minha, porém de segunda mão, eis que baseada nas traduções de Paul Carroll e de Daniel Ruiz Moreno para o inglês e o espanhol, respectivamente.

De início, antes de defender minha tradução, quero perguntar a estes homens que chamam a inteligência de maldade: onde vocês obtiveram sua cópia da tradução? Quem lhes deu-a? Com que cara ousais apresentar aquilo que comprastes a preço de um crime? Que haverá de seguro aos homens se não se pode manter segredos nem entre as paredes de seus aposentos ou dentro de seus cofres? Se eu levasse tais acusações aos tribunais, eu vos faria cair sob o peso das leis, que estabelecem castigos mesmo aos delatores em favor do fisco. A informação trazida pode servir-lhes, aos tribunais, mas estes condenam o traidor. Ou melhor, aprovam o resultado da ganância, mas desaprovam o motivo por trás da delação. Não faz muito tempo, o imperador Teodósio condenou à morte Heséquio, cônsul contra quem o patriarca Gamaliel (ou Gamamiel) promoveu batalhas, porque tivera a posse de alguns documentos oficiais subornando a um notário. E nas histórias antigas lemos que um mestre-escola que traiu os filhos dos faliscos foi entregue amarrado aos próprios meninos traídos, pois o povo romano não aceitaria uma vitória por meio da desonra oferecida. E quando Pirro, rei de Epiro, estava ferido em seu acampamento, seu médico foi ter com o inimigo e ofereceu-se para envenená-lo. Mas Fabricio, o rei adversário, considerou esse ato uma desgraça e devolveu o traidor acorrentado ao seu senhor, pois não aprovaria um crime mesmo que a vítima fosse seu inimigo. Isto que as leis públicas e mesmo os inimigos respeitaram, o que se tem por sagrado mesmo no meio das batalhas e das espadas, não o questionamos entre os monges e sacerdotes de Cristo. Pode algum dentre eles atrever-se agora, franzindo as sobrancelhas e estalando os dedos, arrotar palavras como estas: "Que importa se um monge subornou ou se valeu de algum outro ardil? Ele apenas fez o que se adequava a seus propósitos". Bela defesa do crime! Como se aquilo que fazem os bandidos, ladrões e piratas não é feito conforme seus propósitos! Pois é certo que Anás e Caifás, quando seduziram o miserável Judas, apenas faziam o que acreditavam lhes convir.

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