domingo, agosto 09, 2009

O amigo atrevido

- Se liga naquela gostosa. Meu, comia frouxo.
- Você não deveria falar assim.
- Ué, e por quê?
- Esqueceu que o nosso narrador preza pela elegância?
- Puta merda, é mesmo!
- E, além disso, ele devota um respeito quase pudico a toda mulher. Toda a vez que ele nos dá direito ao discurso direto, vigia atentamente cada palavrinha e também o ato descrito. Não se faz amor, pura e simplesmente. Canta-se antes até o lóbulo da orelha feminina, que até isso ele ama, então se a despe e se faz uma vaga referência metonímica ou metafórica à congregação final. Ele também não se dá bem com a imitação dos discursos da vida real, você bem sabe. Temos que falar com a gramática nos aplaudindo.
- É um viado, isso sim. Ter-mos e-le-va-dos, uiuiui, é o que esse viadinho sempre quer.
- Melhor tomar cuidado. Se bem que... Ele não o está ouvindo agora?
- Pois é. Tô falando um monte de merda e o cara tá susse.
- Estranho...
- É...
- ...
- Caralho?
- Xito!
- Não! Olhe que massa: buceta?
- ...
- Bu-ce... ta?
- ...
- BUCETA!
- Nada.
- Nada!
- Será que aconteceu algo?
- Como ‘algo’? Pode falar: que merda deu?!
- Eu preferia não fazê-lo.
- Blé blé blé. Que porra, ainda faz referência... Cara, não precisa disso agora não. O cara se foi.
- Como pode? E nós?
- Ah, deixa isso pros críticos. Eles sempre resolvem essas lambanças.
- Ainda assim prefiro...
- GOSTOSA!
- Que é isso?!
- Ah, vô dá umas cantadas tosca. Faz tempo que eu queria avacalhá. E também, aquela gostosa ali, meu, eu pegava ela assim e...
- Pare com isso, que coisa deselegante! Devolva os erres aos infinitivos agora! E preste atenção à concordância. Aquiete esses braços.
- Tomá no cu você! Tu parece que é que nem ele.
- Pareço o quê?
- Parece o viadinho do narrador.
- E se...
- Se o quê?
- E se eu for o narrador?
- Você?! Má tu é personagem que nem eu.
- Você sabe o que eu posso fazer se eu for o narrador, não? Ou se o narrador repentinamente o ouve deblaterando com tais vitupérios?
- Sei, mas ele não ta ouvindo. E tu é personagem que nem eu.
- É verdade. Eu sou um personagem...
- Há! Tava querendo botar pressão é?
- ...mas você olvidou que a narrativa é em primeira pessoa.

Neste momento, o rosto relaxado do meu atrevido amigo perdeu o sorriso e estatelou de pavor. Havia uma arma na minha mão. A bela moça do outro lado da rua ouviu o estampido e o surdo baque de um corpo caindo na calçada. Tenho a impressão de que também sorriu.

2 comentários:

giancarlo rufatto disse...

hahahahahhaha, otimo.

Beatrix disse...

o amigo muita vez tem razão, a preocupação com os moldes é tão grande que acaba por fugir das tangências reais. aí fica meio assim patético.
mas também não dá para engolir quando a professora de cerâmica vem falando das minhas placa e das minhas falta.

(provavelmente não se lembra de mim. será? já nem sei também como travamos contato pela internet afora.)