domingo, dezembro 14, 2008

O terceiro homicídio

Recebi um telegrama. Um encontro na Biblioteca Nacional, não num bar na Boca, como sói. É que desta vez é um ministro do Yrigoyen, recém eleito presidente pelo Partido Radical. Achei criativo o lugar do encontro; a Argentina sob os últimos liberais se apegou demasiadamente ao progresso, abriram escolas para refinar nossas crianças, impuseram a Buenos Aires o apelido de Paris sul-americana, cuja elegância se deve seguir ocultando a argentinidade dos portenhos. E assim também as letras, afetadas demais pela prosa francesa, e todos os cafés abarrotados de críticos e leitores cheios de razão – porque apenas repetem os jornais – e de pompa literária. Mas chega-se à biblioteca e tudo se desmancha, duvida-se do interesse argentino pelos livros no vazio de seus corredores, e confirma-se o escandaloso fato, que não é de bom-tom mencionar nesta Paris Meridional, do amor portenho pelo discurso frívolo, cheio de gestos e palavras de efeito.

Nada mais convinha, portanto, à discrição necessária ao meu trabalho e aos que me contratam que a Biblioteca Nacional. Levei meu pince-nez e minha barba intelectual. Uma tradução espanhola de Schopenhauer sob o braço. Schopenhauer é bom: se o vêem com ele sob o braço, terão medo de você, porque parecerá que realmente leu o filósofo, além de meramente o citar. Sentei-me a um canto, fingindo deleitar-me com a leitura. Pouco tempo depois o ministro chegava, ostentando um sorriso nervoso e um livro de Julián Martel. Tentou ser natural, cumprimentando-me como quem encontra do nada um amigo há muito perdido, e manteve esse sorriso o tempo todo, até que a esperança dos radicais parecesse mais verossímil que os dentes prodigalizados por aquela boca.

- Preciso dos seus serviços.

Sou assassino por encomenda, e tenho fama nas altas rodas. Não é segredo que estes tipos de sociedade trabalham de uma forma a segregar-se o máximo dos indesejáveis. As ruas da Recoleta são tão públicas quanto às da Boca, mas não se há de ver com freqüência o morador daquelas andando nestas, e os que vivem próximos ao Riachuelo sempre se sentem mais pobres e mais reles quando pisam nos bairros nobres. Dar conta dessa classe de indesejáveis não é meu trabalho, o sistema já funciona para isso. O meu trabalho é necessário quando os indesejáveis estão nas próprias altas rodas, ou ainda quando são das parcelas contíguas da pequena-burguesia portenha que se alimenta dos restos dos protagonistas sociais. Eu livro o mundo dos impertinentes aos planos privados de ascensão pública. Não sou mau, nem carrego a culpa nos meus ombros. Não passo de uma demanda, de uma necessidade do poder: sou apenas uma das rodas da engrenagem política. Tanto é verdade que não devo ser desconhecido das autoridades policiais. Mas minha prisão não interessa a muita gente; e minha morte exigiria outro igual a mim, mas não tenho notícia de concorrência em Buenos Aires.

- Bernardo Brenman é um empreiteiro de Tucumán. Há algum tempo me procurou oferecendo-me dinheiro. Entregou-me trezentos mil pesos semana passada. Em troca, devo direcionar os gastos da minha pasta para a sua empresa. Mas eu não posso fazer isso, compreende?

- Se ele pagou, você deve fazê-lo.

- O senhor não me compreende, ah ah. – riu alto para dar ares de conversa entre amigos. Ri também para sustentar o jogo – Eu aceitei o dinheiro porque tive medo. Naturalmente que aceitei porque gosto e preciso de dinheiro, ah ah, mas tive medo também. Parece que ele já tinha o mesmo esquema no tempo do Sáenz Peña. Ele já está muito bem familiarizado com os grandes nomes do país, não lhe seria difícil acabar com minha carreira, compreende?

- E o senhor quer que eu o mate, ah ah?

- Ah ah. O senhor é muito direto, ah ah.

- O senhor é quem disse que precisa dos meus serviços.

- O que é isso? Schopenhauer? Bem, seria isso sim.

- Matá-lo?

- O senhor fica com metade do que recebi. Eu preciso que não haja testemunhas da origem deste dinheiro. Então seriam três mortes.

- Mas ainda não compreendi por que o senhor simplesmente não cumpre o acordo.

- O senhor não vê que caso isso venha à tona seria o fim para Yrigoyen? Nosso presidente se elegeu depois de tanta luta popular, depois das greves, e de todo o acordão para a Lei Sáenz Peña. Não posso eu, pelas minhas necessidades monetárias, subtrair-lhe a legitimidade democrática. É preciso não dar poder de fogo aos liberais, o senhor me compreende?

- Perfeitamente. Quem deverei matar?

- Ah ah. O senhor me assusta. Pois bem: deverá matar o senhor Brenman; o senhor Ricardo Castillo Pérez, diretor da repartição responsável pelas concorrências nos gastos ministeriais, que também estava nas tratativas; e um funcionário de Brenman, cujo nome não sei, mas posso lhe indicar o lugar onde encontrá-lo.

- E como o senhor sabe que ninguém mais sabe do negócio?

- Porque todos precisam de discrição nestas horas. Brenman negocia pessoalmente nestes assuntos, não abre o jogo com ninguém nem delega essa função. Somente ele e aquele funcionário, de sua total confiança, estão inteirados no assunto. E é isso que me faz procurar o senhor, preciso da sua experiência e sua discrição. O senhor não pode me faltar.


Aceitei o trabalho. Deveria matar os três. Começaria, por óbvio, no funcionário público, pessoa menos notória, cuja morte não deixaria de sobreaviso os outros dois. Conheço esse tipo de gente: arrivista típico do serviço público, que prefere não dar as caras e assumir responsabilidades para ser sempre mera peça do fisiologismo estatal. Corporativista, carreirista, o que lhe importava era o salário e os meios de incrementá-lo, sem jamais ocupar o topo da hierarquia funcional para isentar-se de dedos apontando-lhe a cara. O homem estava no negócio por promessa de parte daquele dinheiro recebido pelo ministro, o que tornava fácil me aproximar. Fiz-me empregado da empreiteira de Tucumán, entrei em contato com sua repartição. Nem precisei insinuar, ele já me dizia que não era conveniente nos encontrarmos em seu trabalho. Sugeri – sabendo da sua recusa – o hotel onde eu estaria hospedado. Ele me convidou para seu apartamento em San Telmo.

Numa manhã de domingo, sob a névoa de uma Buenos Aires fria, era julho, fui visitá-lo. Morava com a mulher e um filho. Serviu-me café, medialunas e bolo com cremes. Fechamo-nos em seu living e comecei a perguntar sobre as perspectivas de contratos públicos, estradas novas, aumento da rede do metrô, portos por construir. Eu andava pela sala enquanto ele me expunha os projetos do Partido Radical para a Argentina. Parei para olhar um quadro de natureza morta, daqueles artistas que vendem na Plaza de Mayo, iguais a todos as outras telas de folhas e frutas e flores em vasos. Castillo Pérez não parava de me apontar as boas perspectivas para minha suposta empresa. Ele estava era entorpecido nas suas próprias perspectivas de dinheiro sujo, mal dava por mim atrás de seu sofá, puxando o garrote da manga para envolver-lhe o pescoço até o último sufoco. Caiu do sofá sobre a mesa de centro, xícaras se quebraram no chão. No que sua mulher entrou na sala, o mesmo arame impediu-lhe o grito, e a vida. A criança estava na cozinha, entretida em sua comida, que salguei com sonífero. Morreu na própria cama, por causa do travesseiro que pressionei contra seu rosto. A névoa da cidade dissipava e o sol vencia.

Uma semana depois, o ministro deu-me a notícia de que Brenman e seu funcionário estariam em Buenos Aires. Forneceu-me o endereço do apartamento do empresário na capital, na Rua Rivadavia, e disse-me que o funcionário ficaria em um apartamento dois pisos abaixo. Para encontrar Brenman, utilizei o expediente inverso do de Castillo Pérez. Fingi ser funcionário do ministério; aliás, o próprio Castillo Pérez. Fui diretamente à portaria de seu prédio, tarde da noite, anunciei meu nome e que precisava tratar de assuntos de seu interesse junto ao governo. Enquanto o porteiro subia para avisar o empreiteiro, envenenei seu mate. Pessoas que devem são fáceis de matar, pois Brenman de pronto aceitou me receber também em seu próprio apartamento. Quando abriu a porta, assustou-se com minha insígnia da Polícia Federal e minha arma. Avisei-o de que sabia de todo o esquema junto ao ministro, mas que estava disposto a negociar. Rapidamente me convidou a entrar. Quando se virou para me conduzir para dentro, encostei o cano em seus rins gordos e puxei o gatilho. Dei outro tiro à queima-roupa, Brenman já estava no chão, na altura de seu peito. Tomei-lhe as chaves e o tranquei ali dentro.

Desci dois andares para então dar conta da última parte do meu trabalho. Ninguém respondeu às minhas batidas na porta. Forcei a fechadura, a porta, aberta, cedeu. O apartamento estava vazio, nada mais havia que um espelho enorme na parede ao fundo do hall de entrada. Vasculhei todas as salas e quartos, e o que encontrei foi apenas um jornal com um anúncio marcado. O anúncio dizia que aquele mesmo apartamento estava disponível para alugar.

Precisava, no entanto, terminar meu trabalho. Não poderia manchar meu nome deixando-o por realizar. Certo de que nova audiência com o ministro seria tarde demais, pois logo descobririam Brenman, resolvi empreender algumas diligências para me informar rapidamente. Desci à portaria, o porteiro suava frio, respirava com dificuldades. Perguntei-lhe o que tinha, disse-me que estava mal do estômago. Nada soube dizer sobre eventual funcionário de Brenman naquele prédio. Sobre o apartamento do anúncio, falou-me que o imóvel já havia sido alugado por um senhor chamado Alfredo Ugarte, e que as chaves estavam na portaria aguardando sua chegada.

Algo não estava correto. Por um momento, temi que me enredassem numa caçada. Eu deveria matar alguém sem nome, cujo endereço era aquele apartamento. E aquele apartamento estava alugado a Alfredo Ugarte. Mas eu conhecia Ugarte, que certamente não era funcionário de nenhuma empreiteira. Ugarte tem nome e rosto, e bem familiares, ao contrário da vítima contra a qual fui contratado. De volta ao apartamento, olhei novamente ao espelho. O ministro precisava da morte de todas as testemunhas da sua corrupção e eu era o seu instrumento. Eu, com toda a minha fama, com meu nome, com meu prestígio no serviço sujo da política. Não houve falhas na minha trajetória, tudo fiz de modo que sempre os favores me fossem devidos, por mais dinheiro que me pagassem. Eu era protegido por meus feitos, que poderiam derrubar metade desta capital. Não era agora que eu falharia. Todas as testemunhas seriam mortas, bem como quis o ministro, que me pediu que eu não lhe faltasse. Havia, então, uma coisa a ser feita. Em frente ao grande espelho, toquei o cano da arma no meu coração. E agora puxarei o gatilho. Porque eu, Alfredo Ugarte, testemunha das corrupções portenhas, não posso pretender ser maior e mais longevo que a minha própria reputação.

5 comentários:

Andrício de Souza disse...

Felipe,

Li a coluna do Ruy Castro de hoje e não percebi qualquer semelhança.

Rapaz! Será que é um plágio subliminar?

Quem me plagiou foi o Saramago. Disso eu tenho certeza. O livro dele "Ensaio sobre a cegueira" é plágio claro do meu "Ensaio sobre a cegueta".

Está no blog: http://www.eunaosouvirgemmaria.com/2008/08/clssicos-sei-2-jos-saramago-ensaio.html

Continue lendo meu blog! Fará muito bem para seu intelecto.

Agora me dê licença para ler o seu.

Abraço,

André

Andrício de Souza disse...

Você acha que tem alguma possibilidade concreta do moço ter me plagiado? De qualquer forma, lhe agradeço e vou mandar um e-mail para a Folha requisitando mil reais.

Viu. Me responde pelo meu e-mail: andreursipedes@gmail.com

É mais fácil conversar por lá.

Abraço!

Andrício de Souza disse...

O ombudsman da Folha respondeu:

Caro Sr. André:
Obrigado pelos seus comentários, que estou encaminhando para o colunista Ruy Castro para que lhe responda diretamente.
Um abraço,
Carlos Eduardo

Cristiano disse...

Massa bagaraio. O conto lembra o estilo de escrita do Dostoievski no Crime e Castigo. Tcherto?

Anônimo disse...

Ah ah.