No aniversário de C., A. veio visitá-lo. Trazia no pacote de presentes um par de meias azuis. C. nunca gostou de ganhar meias, e A. sabia disso porque ele lhe contara da madrinha pão-dura que só lhe dava ou meias ou um cachecol verde que ela mesma fazia com a lã das blusas velhas do filho. Mas A. não podia comprar com o dinheiro de sua mesada aqueles carrinhos de coleção ou uma bola nova. Comprou as meias numa loja escondida na Galeria Tijucas, só que não era um par qualquer: elas eram mágicas.
- Calce, calce – disse a menina depois que ele abriu o pacote, sorrisinho insosso na cara. Ele não queria porque as unhas do pé não estavam cortadas, então mentiu:
- Mas já estou usando o par que a minha madrinha me deu, veja.
A. insistiu. Mas por que diabos, ele pensou. Não pensou, no entanto, que era um presente estúpido, porque foi de A. que o recebera. O menino, que dela não esperava nada, achou que já era a maior vitória saber que a menina havia pensado nele. Disse que então teria que trocar as calças por uma bermuda para ver como as meias ficavam na canela, de modo que fugiu para o quarto a fim de colocá-las sem perigo de vexame.
- Olha, ficaram lindas! – opinou A.
C., que nunca dera atenção a meias, não sabia dizer se elas ficaram lindas ou não. Mas gostou porque A. gostara. Deu umas voltas exibindo-se à menina, que batia as mãos. Depois, ela disse:
- Olha só, é segredo: são meias mágicas.
- Hã? Como assim?
- Olha, eu tenho meias iguais – apontou para o pé e mostrou as meias amarelas, iguais à do menino a não ser pela cor.
- Sim, mas quê que tem de mágico nelas?
- Não percebeu ainda? Olha em volta, olha. Não tá tudo diferente?
Definitivamente não havia nada de diferente em volta. Nem no pé.
- Ah, seu bobo. Olha, essa meia não calça teu pé, tá vendo? Tá calçando tudo em volta, e teu pé é o que tá fora dela. Ela tá protegendo o mundo do teu chulé e não teu pé do chão ou do frio ou do tênis!
Ele riu. Ela o puxou pelo braço para o quintal para mostrar mais mágicas que as meias faziam. Sob o vão da porta, bateu no umbral:
- Tá vendo aqui? Olha! Você não tá mais saindo de casa, você tá entrando no mundo! Aqui é dentro – pôs o pé na varanda – e aqui é fora – pôs o pé no tapete da sala. É a meia que mudou tudo, tá vendo?
- É verdade! – ele disse rindo para participar da brincadeira. Mas A. levava a sério. Se C. voltasse, ele estaria saindo para a casa, mostrava a menina ao rapazinho incrédulo. Chamou-o para dentro, que era o mundo, e arrancou do jardim uma flor, dando-a ao menino, dizendo:
- Olha só, a rosa me largou e pegou você!
Ele então, para testar a menina, largou a rosa, que foi ao chão. Ela exclamou:
- Ai ai, que flor cruel! Te largou e você ficou no chão!
- Mas eu já tava no chão, tonguinha.
- Tava porque ela não te ergueu, seu bobo.
- E por que então ela tá no chão agora?
- Como você é! Ainda não viu que o chão é que veio até ela? - pegou a rosa – E agora ele a jogou pra ela me segurar!
- Espertinha, tá tudo igual. Essa meia não é mágica não.
- Ah, é?
A. tirou os olhos da flor e fitou os de C. Num salto pra frente, fez tocar na dele a sua boca. O coração do menino virou uma lebre correndo no bosque, e a mão uma pedra imóvel que jamais reage. A. enrubesceu, mas saiu com essa:
- Você me beijou! Você me beijou!
- Eu..., mas, não..., foi..., foi...
- E eu... Eu gostei...
- É? Eu..., você gostou?
- Ah, de onde você tirou coragem, seu atrevido?
- É... As meias! É que elas são mágicas, sabe?
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