quarta-feira, setembro 27, 2006

Ontologia da cidade: o prédio comercial

O
P
R
É
D
I
O
COM
ERCIAL
É UMA POESIA DE CONCRETO
SEM VERSO E MUITA PEDRA B
RITA. NO MAIS É PROSA, É TEO
RIA VERBORRÁGICA ACERCA D
O CÂMBIO FLUTUANTE. É IMPE
SSOAL: É O VERBO HAVER E A P
ARTÍCULA SE. O PRÉDIO, CONFE
SSO, É POESIA DE SUJEIRA E SEM
TINTA: É A RACHADURA: É A PRI
SÃO QUE SE ESCOLHE: É VAZAM
ENTO. É UMA POESIA DE BUKOW
SKI. O PRÉDIO COMERCIAL ARRANHA O
CÉU, CORTA O HORIZONTE, É UMA PERS
PECTIVA QUE O OLHO NÃO TEM. É UMA
MONTANHA, OU UM PAREDÃO? É UMA F
ALÉSIA QUE CONDUZ À MORTE NO MAR
DE ASFALTO. O PRÉDIO COMERCIAL É O
SENTIDO DO ELEVADOR EM MOVIMENT
O. É UM POSTE QUE CRESCEU, É A PALA
VRA PRÉDIO NO SENTIDO MAIS VULGAR
DO VOCABULÁRIO CONTEMPORÂNEO. U
M FALO É PRÉDIO QUANDO COPULA, UM
PRÉDIO É A CABEÇA CUJO SUPORTE É UM PESCO
ÇO COM TORCICOLO ESPASMÓDICO. O PRÉDIO P
OR EXCELÊNCIA COMERCIAL É O AEROPORTO D
O TERRORISMO. NÃO ULTRAPASSE SEUS UMBRA
IS COM SEU CORAÇÃO E COM O SONETO DO AMO
R TOTAL NA MEMÓRIA. O PRÉDIO COMERCIAL É A
NTRO, É O ÁPICE DO SUCESSO, É NINHO DE COBRA
S, É O SONHO DE CONSUMO E ROTEIRO DE VIAGEM
DO WORKAHOLIC. O PRÉDIO COMERCIAL É A POES
IA EM SEU NÃO-SER, É DESUMANO E ATEMPORAL,
MAS É MORTAL: MATA OS HOMENS E OS HOMENS
O MATAM. O PRÉDIO COMERCIAL É QUASE A CIDA
DE GRANDE, NÃO FOSSE A CIDADE GRANDE O SHO
PPING CENTER, EMBORA HÁ QUEM DIGA QUE O SH
OPPING CENTER É PRÉDIO COMERCIAL, DO QUE DI
SCORDAMOS. PRÉDIO COMERCIAL É GRAVATA E P
ALETÓ E TAILLEUR, É O MEIO-DIA, A MEIA-VIDA, V
IDA DE CÃO, É UMA COISA HORRENDA E TÃO LINDA.

Que título cabe aqui?

Eram cacos estilhaçados de um vidro verde
Que partiam derme e epiderme. A pele
Partida, rota, em cacos.
O plasma sangüíneo no caos da fuga
Do seu regular fluxo intravenoso
Para lá dos epitélios tegumentares.

Eram sinais de luta, máculas de hematomas
Na alva tez da moça morta. O tapete
Maculado, fétido, emético.
A bonita moça e viscerada, rasgada no ventre
Desde a boca dos quádruplos lábios
À caixa que guarda todo sentimento.

Era uma vida esvaída na ponta da garrafa
Na sala onde jazeram tantos outros mortos;
No féretro de barro cru que abriga móveis
E as íntimas lutas fatais.

Cena do crime: antecâmara do paraíso.
Ímpetos que revelam os ciúmes
Gravando no obituário seus escopos.
Os amores revelam os amores
Desventurados como cegos, inatingíveis
E incontroláveis como feras.

Um poço de descontentamento
E culpa, de que não mais se foge.
Enclausurado na mão homicida
O peso de uma imortal lembrança
Não evapora. Não se esvai
Sequer o desejo de fazê-lo de novo
Incansavelmente desesperado.

domingo, setembro 17, 2006

Vesperal

Um poema de Helder Macedo

Desoladora, vã certeza minha
efémera presença que termina
o rosto e a vida em imperfeita linha
fronteira absurda que me não confina.
Pela luta de corpo em que me iludo
um perene sentido eu anuncio.
Mas na manta carnal onde me escudo
tacteio as dobras dum só frustre cio.
Aos mil olhos febris do céu velado
ergo o meu gesto de razão e regra.
Cresce a fria canção, espanto fechado
na mágoa em riste que me o sangue empedra.
O súbito destino se organiza
da voz que sou e, do finito vulto,
secreta, anula, transfigura e frisa
o nada ser do meu anseio oculto.
Aglutinado sou. Lá fora a noite.
Mas nada vai nascer ou vai morrer
em rumos para além, onde me afoite,
da pausa tensa a que me obriga ser.
E só na raiva lisa de existir
eu me prolongue, necessário modo,
despedido de mim, a descobrir
o caminho de mim para o meu todo.
Destino pleno que me a vida exuma
ante o mundo o intente no desforço
do vinculado ser para que assuma,
conscrito ao humano todo, dele escorço,
a minha impessoal identidade.
Serei a minha ausência e o seu indulto
reinventando a minha liberdade
como um sarcasmo, um passatempo e um culto.

Que a boa admiração que tenho por esse texto não seja tão-somente inveja!

terça-feira, setembro 12, 2006

Falência

Diziam que não funcionaria
e deveras longe não foi.
Morreu quando nem vida tinha:
era um desenganado que vivia.
Foi o terrível olho da descrença?
Foi a boca fechada de indiferença.
Quando o motor único do destino
- movimentos débeis a um vetor incerto –
esperança chama-se,
apenas o até quando o alimenta.

Posto que é chama,
posto que o tempo venta,
chegou aqui para acabar
recusando termos que inventa
a língua:
não chafurdo na lama,
não me estrangulo, sem ar.
Morro apenas
como um natimorto:
as glórias que jamais tive
negaram-me o direito de dizer que existi.