quinta-feira, maio 25, 2006

Durma bem

que é isso de imprimir
a noite em tuas pálpebras?

domingo, maio 21, 2006

Os escribas

Então! Caíste dos céus,
Lúcifer, filho da aurora!
Então! Foste abatido por terra,
Tu que prostravas as nações!
(Isaías, 14;12)
Chegado à tenda onde os escribas do reino de Judá ceavam, Isaías baixou os olhos ao chão, prostrou-se em honra ao Senhor, e disse:

“Amaldiçoados sois vós, que da pena
de tinta molhada vos alimentais,
como também do papel escrito.
Assim dirá o Filho: exaltados serão
os que se humilham! Vós, porém,
que vos exaltais, humilhados sereis.
Depositeis seiscentas e sessenta e seis mil
letras em seiscentas e sessenta e seis
tábuas, e sereis setecentas
e setenta e sete vezes escaldados!
E quem de vós mais majestosamente o fizerdes,
terá na mesma medida o pior dos
assentos na casa de Satanás!
E quem de vós menos de vós mesmos
escreverdes, terá, na medida mesma,
o incauto corpo coberto de vermes
no momento do último estertor!
Disse-me o Senhor: o servo que em santo prado
enterrar-vos, a vós que quereis ocupar
Seu santíssimo trono de único Criador,
terá sua tenda queimada, estéreis serão seus
filhos, e morta a sua linhagem para todo o sempre.
Eis que ao homem na terra só é dado escrever
a Revelação que o anjo do Senhor inspira,
jamais alguém poderá dominar a Criação.
Vós, portanto, que com a tinta de vossas penas
crieis mundos e homens novos em vossos papéis,
sois indignos hoje, e abalados são os
caminhos que vossos pés pisam pela ira
do Senhor, Deus dos exércitos.”

sábado, maio 20, 2006

Circunstancialmente...

"Jamais pensei que a morte a tantos destruíra."

T. S. Elliot, in The Wasteland, trad. Ivan Junqueira

Ínfimo conto sobre a queda da bola de borracha vermelha

Inércia, pura inércia, e de repente zás! A força motriz: a bola rola rola e rola. O plano não-inclinado da mesa e o equador da esfera num íntimo contato de coeficientes de atrito da borracha e da fórmica, o pansexualismo dos objetos. Irresistível e abrasivamente, como a carne afoita pela outra carne, os pólos vão se alternando, a fórmica sustenta o rolo infinito em sua condição finita de mesa... Então o gozo. A bola chega ao limiar do plano, ninguém mais a apóia! A gravidade, enfim. O chão, a colisão imperfeitamente elástica. Desesperadamente, apaixonadamente, inutilmente, a bola arrebatada volta aos ares tentando amar de novo a mesa, e não a alcança. Resta-lhe o chão somente. Onde pára e espera e volta à inércia. Pura inércia.

terça-feira, maio 16, 2006

Quem sabe o que diz, que diga

"Ai, mamãe,
Seu pedido Deus abençoou!
Sua fé foi muito forte,
e o presídio da Ilha Grande acabou!"

Bezerra da Silva

segunda-feira, maio 15, 2006

Sodoma

Queimem-se os pederastas e as tribofilistas! Degredem-se os dados à prática da cunilíngua e da felação! Mostro-te o retrato da minha cidade e tu me dizes que é que se passa. Tens razão, nada disso é mais que a parada da vergonha gay. Benditas senhoras – digo delas “frustradas”? – mães de família, porta-estandartes da moral e dos bons costumes, sejam bem-vindas: arrombem minha vida com suas panelas de fundo riscado com aquele movimento emblemático da sua mediocridade, sou seu servo.
Acusado de sodomia. Punido com demissão. Justa causa reconhecida por sentença judicial. Tenho dinheiro, sabes como é, não apelei, meu tempo urge, tenho o que fazer. O argumento: represento a empresa, vedada a mim a prática de atos que a degradem – mau procedimento, enfim. Revoltas-te? Puxa, não o faças. Fica sabendo que minha sodomia – não a neguei jamais – revolta muito mais essa gente: tua indignação é coisa pouca.
Em realidade, outro motivo muito mais aprazível fez-me aquietar com a coisa toda. Contaram-me que a empresa anda mal. Veja só, sou ateu, mas às vezes as divindades nos percebem e conosco brindam à vingança. Perdeu muitos clientes, sabes como é, eu os tinha conseguido. Não que eu fosse o mais importante e o melhor dos executivos, não isso, mas o que eu consegui era bem significativo. Não vai falir, não, logo volta como antes, só que o puxão de orelha já é de bom tamanho. E o filho do patrão, pupilo meu? Ih, esse ficará perdidinho. Tu sabes como ele é meio lerdo, e eu sempre lá p’r’uma forcinha. Dava um bom petisco, mas era do lado certo o garoto.
Sabes de uma coisa? Se o Ferreirinha soubesse como eu captei tantos clientes abriria uma boate gay. Jamais me demitiria. Consegues imaginá-lo chefe disso? Nem eu. O que tem de preconceito tem de honesto esse homem. Devias ter visto a odisséia que foi convencer o patrão a baforar charutos com clientes p’ra agradá-los. Treinou comigo, a sós (quando soube da minha sodomia ele deve ter tido espasmos só de pensar que ficou sozinho comigo no escritório! Crêem eles que não nos damos valor, não é?). Tossiu tanto... Legítimo Cohiba, o bom gosto eu lhe infundi.
É uma pena ter saído de lá, penso às vezes. Tinha um jovem, sabes como é, tão simpático. Isso é o que mais me dói. Mas fazer o quê? Disse a ele que não nos veríamos mais. Chorou; chorei. Não dá. Ele tem futuro, eu já sou cobra criada. Obrigo-me a preservá-lo.
Concordo contigo. Isso um dia ainda há de nos destruir a todos. Fazer o quê? Não tive ninguém que me advertisse a partir; não tenho filhas a salvar, muito menos mulher para se transformar em coluna de sal. Mas te digo, meu amigo: não são nem dez os que se salvarão do enxofre divino! Não há por quem possa o velho patriarca interceder diante do Deus e sua imensa intolerância. Se não a sodomia, qualquer outro mal será inventado para julgá-los. Nunca compreendi as revelações sagradas. E quem as fez, acertou?
Também acho.

domingo, maio 14, 2006

Até tu

E tudo à merda se encaminha. E encaminhando-se assim, tão afoita, ao estrume, que dizer da humanidade acometida com síndromes meta-individuais não-nominadas de fetiche ao fétido? Chamá-la doida é impossível, que doidos são os que da massa divergem demasiadamente. Ela mesma não pode desviar-se da própria essência, ainda que a essência venha mudando com os anos. Ela é a massa e os doidos, mas mais aquela que estes. A essa pulsão-quase-sexual da humanidade ao que fede não podemos atribuir a loucura. Se não, correremos o risco de morarmos todos, ou quase, na Casa Verde do nobre alienista.
Aquilo sobre o que todos os homens têm entendimento: balela. O primeiro mandamento, os conselhos de Cristo às favas! Cláudio, o rei da Dinamarca! Por quê? Não, não é o amor que cria a vida. Talvez seja; mas que bem mais desprezível e volúvel possuímos, não acha?
Patrimônios da humanidade, monumentos do saber e do deus. Muito caros. Aprendi na história mais sobre o sangue que na medicina. Que é mancha, não alimento. Que é anti-natural o natural fluxo intravenoso: interrompamo-lo como fez as vinte e três punhaladas de Brutus. Tu quoque, Brutus, fili mi! Pois veja você. Eia! É assim que se deve viver!
Vivamos.