quinta-feira, janeiro 14, 2010

Oliver Twist - Capítulo I

De Charles Dickens, tradução minha

Capítulo I - Que trata do lugar onde Oliver Twist nasceu e das circunstâncias que envolveram seu nascimento



Dentre os vários prédios públicos de certa cidade, a qual será prudente por muitas razões privar de menção, e à qual eu não atribuirei qualquer nome fictício, existe um que desdemuito é comum à maioria das cidades, grandes ou pequenas: precisamente, um abrigo da mendicância; e nesse abrigo nasceu - num dia e numa data que não vou perder tempo em repetir, vez que isso não trará ao leitor quaisquer consequências nessa altura dos eventos – o espécime da mortalidade cujo nome está prefixado no caput deste capítulo.


Durante muito tempo, depois que foi lançado neste mundo de tristeza e desdita pelo cirurgião da paróquia, permaneceu como uma questão de considerável incerteza se a criança sobreviveria para sustentar até mesmo um nome. Neste caso, seria mais do que provável que essas memórias não apareceriam nunca; ou, se aparecessem, estando contidas em um par de páginas, elas ostentariam o mérito inestimável de ser a espécie de biografia mais concisa e fiel a perdurar na literatura de qualquer tempo ou país.


Embora eu não esteja disposto a sustentar que ter nascido num abrigo é em si mesmo a circunstância mais afortunada e invejável que possa acontecer a um ser humano, devo dizer que nesse caso particular isso foi a melhor coisa que poderia ter ocorrido a Oliver Twist. O fato é que houve dificuldade considerável em induzir Oliver a assumir por si mesmo o ofício da respiração – uma prática complicada, mas cujo costume se revelou necessário para nossa existência tranqüila; e por um tempo ele ofegava sobre um punhado de mantas, ou melhor, postava-se desigualmente entre este mundo e o próximo, sendo que a balança estava decididamente pendendo para o próximo. Agora, se durante esse breve período Oliver tivesse estado entre vovós cuidadosas, tias ansiosas, enfermeiras experientes e médicos profundamente sábios, ele teria morrido em pouco tempo, inevitavelmente. Havendo ninguém senão uma velha mulher miserável, nebulosa graças a uma quantidade indesejável de cerveja, e um cirurgião da paróquia que lida com coisas tais por contrato, Oliver e a Natureza lutaram entre si. O resultado foi que após algumas brigas Oliver respirou, bocejou e prosseguiu advertindo aos colegas do abrigo o acontecimento de que um novo fardo foi imposto à paróquia, liberando um choro tão alto quanto poderia ser, nas medidas do racional, esperado de um menino que não havia sido dotado daquele apêndice muito útil, a voz, antes desse lapso temporal de três minutos e um quarto.


À medida que Oliver dava essa primeira prova de ação livre e adequada de seus pulmões, a colcha de retalhos que estava descuidadamente jogada sobre o estrado de ferro da cama ia farfalhando; então a face pálida de uma jovem ergueu-se do travesseiro preguiçosamente, e uma voz fraca articulou de modo imperfeito as palavrasMe deixe ver a criança. E morrer’.


O médico estava sentado com o rosto voltado ao fogo, dando à palma de suas mãos alternativamente o calor do fogo e uma esfregada. Quando a jovem falou, ele se levantou, e indo até a cabeceira da cama disse, mais gentilmente do que se poderia esperar:


“Ah, você não fale em morte ainda”.


Que Deus guarde ela! Não fale não!” interpôs a enfermeira, depositando prestamente no seu bolso uma garrafa de vidro verde, cujo conteúdo ela esteve saboreando com evidente satisfação a um canto. “Que Deus guarde ela! Quando ela ter vivido tanto quanto eu, senhor, e tido seus próprios treze filhos, e todos eles morrido, tirando dois aqui no asilo comigo, ela vai saber melhor do agora que fala assim. Que Deus guarde ela! Pense o que é ser mãe, aqui tá o menininho, pense.”


Aparentemente, essa animadora perspectiva dum futuro maternal não deu conta de produzir o efeito devido. A paciente meneou a cabeça e estendeu seus braços ao filho.


O cirurgião o depositou em suas mãos. Ela pressionou os lábios brancos e frios contra sua testa; passou as mãos no rosto; perscrutou agrestemente o lugar; arrepiou-se; caiu para trás... E morreu. Esfregaram seu peito, mãos e têmpora para aquecê-los, mas o sangue parou para sempre. Falaram de esperança e descanso. Eram desconhecidos por tempo demais.


“Acabou, Senhora Qualquercoisa[1] – disse enfim o cirurgião.


“Ah, coitada, então é isso” – disse a enfermeira, recolhendo a rolha da garrafa verde que havia caído no travesseiro quando se inclinou para pegar a criança. “Coitada!”


Não precisa me chamar se o menino chorar, enfermeira” – disse o cirurgião, calçando as luvas decididamente. “Provavelmente ele vai ser incômodo. pra ele um pouco de mingau nesse caso.” Colocou o chapéu e, detendo-se ao lado da cama ao sair, acrescentou, “ela era bonita também; de onde ela veio?”

“Foi trazida aqui ontem à noite” - respondeu a velha - “por ordem do inspetor. Foi achada chorando na rua. Caminhou um bocado, pois os sapatos tavam aos pedaços; mas de onde veio ou para onde ia, quem sabe?”


O cirurgião se inclinou sobre seu corpo e ergueu sua mão esquerda. “A velha ladainha – disse balançando a cabeçasem aliança, veja. Bem, boa noite!”

O médico foi embora para o jantar; e a enfermeira, tendo mais uma vez se dedicado à garrafa verde, sentou numa cadeira baixa perto do fogo, e passou a vestir o infante.


Que excelente exemplo do poder das vestes era Oliver Twist! Assim embrulhado na manta que até agora foi sua única coberta ele poderia ter sido o filho de um fidalgo ou de um mendigo; seria difícil até para o estranho mais orgulhoso assinalar-lhe seu real status na sociedade. Mas agora que estava envelopado numa roupa de chita que amareleceu de tanto prestar o mesmo serviço, ele foi rotulado e etiquetado, e foi posto no seu lugar de uma vez – o de filho da paróquia; o de órfão num abrigo; o de humilde; o de lúmpen esfomeado – para ser algemado e maltratado por , desprezado por todos e sem inspirar compaixão a ninguém.


Oliver chorava com força. Se ele então pudesse saber que era um órfão, abandonado aos favores de sacristões e de inspetores, talvez chorasse ainda mais forte.



[1] Mts. Thingummy, literalmente “Coisapegajosa”, utilizado pejorativamente para um qualquer, cujo nome não se sabe.
Por sugestão do Anderson, aqui tem um link para a versão original da obra.



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