quarta-feira, abril 30, 2008
A moça que se transformou em passado
Ela sorriu e teve orgulho. E depois, pensando no assunto, odiou ser tratada no pretérito perfeito. Precisava morrer antes.
Riu, satirizando-se.
I have a dream
"We hold these truths to be self-evident: that all men are created equal."
Martin Luther King
Um sonho teve a mim.
Me concebeu acho que morto
- ou sem forças ou morto
ou uma estátua inconcebível
no centro de uma cidade.
O sonho me sonhou nu
e invisível entre rostos iguais,
cujos olhos viam tudo igual
a registrar surpresas que
não podiam surpreender.
Mas era um sonho este
sonho que teve a mim.
E acordado o sonho teve
uma cidade inteira para pôr
o que de mim tinha engendrado:
Um eu sonhado, simulacro
que tinha tanto de verdade
que na vigília, na cidade,
não tinha voz nem imagem
nem a ninguém distinguia.
segunda-feira, abril 28, 2008
O velho revolucionário
A história das revoluções poderia ser narrada alegoricamente como a lenda de um antigo tesouro, que, sob as circunstâncias mais várias, surge de modo abrupto e inesperado, para de novo desaparecer qual fogo-fátuo, sob diferentes condições misteriosas.
Hannah Arendt
O velho revolucionário andava encolhido em sua parca verde-oliva pesada de condecorações e distintivos de patentes militares que achava meio absurdas. Ostentava-os sem jamais haver pegado em armas na vida - era no máximo um estrategista, ainda que se olhasse mais como a um intelectual de retórica privilegiada. Sim, um sedutor político, epíteto do qual gostava em seus íntimos segredos da vaidade. De qualquer jeito, subterfúgios como a propaganda, que o engendraram nessa imagem forte e viril, poderiam ser aproveitados, em nome da boa causa, do corpo doente e desvairado de capital livre e braço escravo, como escrevera certa vez para o célebre discurso da Tomada do Piratininga que o companheiro Costa, o Morubixaba, bradou ao se referir ao capitalismo.
Agora que seu pulmão lhe limitava as perspectivas de dias a viver, riu do Morubixaba, riu do título de Pajé com que as pessoas lhe chamavam, do Cacique que era o Fernando, e desses nomes todos que, num momento de enteomania carnavalesca, deram-se na consumação da Revolução em loas ao espírito nacional. Rir assim das coisas caras e grandiosas era um capricho que nunca se permitira por forte autocensura e em solene respeito pela vitória sobre o reino da falsa e fantástica liberdade que só fazia embrutecer as mentes do povo. Mas agora, entre tosses, não sentia culpa nenhuma.
O velho Pajé andava para aproveitar os últimos ventos do inverno. Fazia frio no sul do país que ele e os companheiros conceberam. As rugas do rosto agora imberbe e sua recém adquirida discrição fariam dele um anônimo naquela rua de Rubrurbe, não fosse a pompa de sua parca oficial que mostrava que ele fora alguém importante. Mas havia o respeito (“mas será respeito?” - se perguntava) que impedia os inoportunos de se aproximarem. E, além disso, sempre existia aquela dúvida se ele era mesmo o tal Pajé da Revolução, nem do governo participava agora. Mudara, pois: o peito inflado e os ombros largos esvaeceram numa caricatural corcunda que o apequenava.
Fumava e tossia. E o vento que lhe batia nas costas com violência lhe arrancou o cachecol uma vez. Tudo para que o pulmão lhe matasse mais rapidamente. Depois de alguns passos a parca, esse resquício de imagem publicitária que sentia não ter liberdade em não escolher para vestir, pesou. Como amainasse o vento, pela primeira vez não a quis, e então a abandonou num banco de praça sem exibir vestuário militar nenhum por baixo. Só uma puída blusa de lã que enfim o fez confundível com o povo. O povo que salvara e do qual sempre tinha que se diferenciar com essa bizarria para glorificar-se.
Acabara de sair do Colégio Nacional, onde recebera uma homenagem das crianças. Elas repetiram os cânticos laudatórios da vitória, discursaram as frases feitas no espírito da Revolução, execravam o mundo que explorava o trabalhador.
- Aprenderam bem... a repetir. – Disse o intelectual, triste consigo mesmo.
Parou na frente de um café tão velho quanto ele. Teve vontade de conversar nalguma mesa sobre um livro do McEwan que havia comprado no mercado negro. Mas ali dentro as pessoas eram amistosas demais, felizes demais, prosaicas demais.
Sentiu saudades de quando elevava a voz – sem tossir – com coisas que já foram subversivas, naquele mesmo lugar. Ninguém acreditava então no que poderia ocorrer, e ele se sente estúpido por ter acreditado que realmente ocorreria.
E sentia falta do capitalismo? Não. As pessoas, afinal, querem só comer. E isso ele lhas dera.
segunda-feira, abril 21, 2008
Pieguices
Ah, que coisa inútil é acordar.