Quando o senhor Mifares foi pela segunda vez assistir à Claudia Cardinale no cinema, encantado por tudo que se lhe abundava, levantou d'amores e jogou-lhe uma rosa num suspiro altissonante:
- Se um dia tu'alma pura tiver saudades de mim, teu serafim!, talvez notas de ternura inspirem o doudo amor do trovador!
Na violência apupada da sala, todos deram seu pitaco de uuuu!, shhhh! e filho-da-puta!. Mas, para a tristeza do herói, Claudia Cardinale recebeu a rosa apenas como uma sombra que batia insensível sobre a pele de pano do seu fundilho preto-e-branco. Era isto: uma surda aos apelos que borbotavam do coração fundo mais fundo da paixão picaresca do senhor Mifares. Pois a ortodoxa e cardinal mocinha revestiu-se de um nem-aí; em tudo atenta ao roteiro, fez-se de tonta, sequer vaiou com a canalha, e continuou impassível no papel passado da projeção fílmica. O herói assim triste e desiludido reagiu com o orgulho desmedido de quem flagra uma fraude:
- Ó Claudia, Lenora de meu busto, o cinema nunca mais!.
Por isso que o senhor Mifares, que achava humano o corruptível e conspurcável, gostava mais do teatro. Ia gozar da donzelice perdida de Maria Amelia na pele de uma Silene, devassa rodrigueana. Sabia que se jogasse a rosa a rosa chegava a ela, e se chegasse a ela ela e a peça inteira corriam o risco do fracasso. E sabia que havia sempre uma coxia, que assaltava em sonhos em que se fazia de Dr. Portela no meio das coxas multicomplacentes daquela virgem depoente, cujos perdigotos umedeciam o herói sentado sempre à primeira fileira. Aquela sala sim era uma aventura; ali o senhor Mifares enxergava a espada de Demóstenes a ameaçar as ditas brandas que ameaçavam perder a ternura. O extraordinário, pensava o herói, era o perigo incontornável de a multidão querer virar teatro, e que, no entanto, (e nisso consistia o encanto), não vira jamais acontecer.
O senhor Mifares, no fundo, empertigava-se e morria d'amores com o perigo de que sua rosa tocasse Maria Amelia. Bastava-lhe isso: o medo de virar homem, e como homem botar tudo a perder, na hora em que fosse espectador.