Tenho lido, com alguma demora para melhorar meu inglês, o livro Gulliver's Travels, de Jonathan Swift. O livro pode ser lido sob duas perspectivas principais: a primeira é a daquele que parte do desenho da Disney, procurando um livro de aventuras marítimas. Nesse ponto, o livro é no máximo agradável, mas nada muito surpreendente; a menos não para nós, que na era do cinema e da animação já presenciamos aventuras as mais fascinantes. Até porque o livro é um festival de dii ex machina, o que se justifica na segunda perspectiva. Esta, que leva em consideração que Swift pretendeu realizar uma obra satírica que ri tanto das narrativas de viagens marítimas exageradas que abundavam no século XVIII quanto da própria condição humana do homem europeu na política moderna, torna o livro uma peça rara. Todos os males da política ocidental são relatadas por Gulliver, o narrador, do modo mais circunstancial; quero dizer, os escândalos, já que tão recorrentes no cotidiano político e social ocidental, são relatados como naturais ao homem de razão. Assim, Gulliver fala para os povos que visita, sem atribuir-lhes a menor gravidade, de corrupções, de invenções de guerra (pólvora e armas em geral), da matança bélica, da mentira, de leviandades, da nobreza suja, do jogo, da prostituição. (Sim, a sátira, desde pelo menos Aristófanes é um negócio bem moralista). Se os habitantes desses diferentes e desconhecidos países estranham como Gulliver chama tais coisas de 'wonders of Europe', nosso viajante põe tal opinião na conta de sua ignorância e de seu atraso. Veja-se, por exemplo, o trecho que traduzo abaixo, porque ler em inglês me dá uma baita vontade de traduzir. Ele é retirado do capítulo 5 da quarta parte, a parte em que Gulliver conhece a terra dos Houyhnhnms (leia-o como estivesse relinchando), cavalos racionais e falantes, que vivem em uma comunidade pacífica e contida em suas paixões. Ao fundo do escrito, vê-se uma concepção bastante liberal do direito, calcada na propriedade, como esperaríamos de uma mente liberal da Grã-Bretanha do início do século XVIII. O conflito que ele estabelece se dá justamente por esse fundamento jurídico, uma e outra parte reivindicando justamente a propriedade. Não obstante, importa aqui ver como desde os apologistas antigos o direito é visto como um serviço de retórica para provar o falso, sendo a verdade que lhe é oposta tida como correspondência platônica, não o desencobrimento do ser, diria Heidegger. Importa, portanto, como mostrou Todorov ao analisar a Conquista da América, tentando assumir o ponto de vista indígena, mostrar como a mentira - "the thing which was not", segundo os Houyhnhnms, na falta de palavras para designá-la - não é conceito universalizável, e, deste modo, a verdade que lhe corresponde tampouco o é. O segundo ponto que me interessa no trecho é a existência de uma justiça comum em oposição à justiça técnica, o que evidencia que a justiça é antes um tema político que de experts e que a técnica está subordinada a algum ato originário, uma violência arbitrariamente consensual como fundamento primevo e recalcado do direito, e que dentre outras funções tem a de separar o cidadão da verdade de sua causa, de sua possibilidade de desencobri-la, descobri-la, argui-la; enfim, dizê-la ("é contra todas as regras das leis que se permita a qualquer homem que ele fale por si mesmo"):
Ele [o mestre de Gulliver dentre os Houyhnhnms] acrescentou que ouvira demais sobre o assunto da guerra, tanto nesta quanto em algumas conversas anteriores. Naquele momento, havia outro ponto que o deixava perplexo. Eu tinha dito que alguns de nossos tripulantes deixaram seu país por terem sido arruinados pela "lei". Que eu já havia explicado o significado da palavra, mas ele não entendeu como ocorria que a lei, que era feita para a preservação de todo homem, pudesse ser a ruína de alguém. Então ele quis mais satisfações quanto ao que eu quis dizer por "lei" e seus operadores, de acordo com a presente prática no meu país. Porque ele pensava que a natureza e a razão eram guias suficientes para um animal racional, como pretendíamos ser, mostrando-nos o que nós devemos fazer e o que evitar.
Assegurei a Sua Reverência que a lei era uma ciência com a qual não tive muito contato, senão pela contratação, em vão, de advogados para uma questão envolvendo algumas injustiças que me foram feitas. Mesmo assim, eu lhe daria toda as informações de que eu tinha conhecimento.
Disse que havia uma sociedade de homens entre nós criados desde sua juventude na arte de provar por meio das palavras (palavras essas multiplicadas em seu propósito) que branco era preto e preto era branco, de acordo com o que eram pagos. Para essa sociedade, todas as pessoas eram escravas.
Por exemplo: se meu vizinho se interessar pela minha vaca, ele contrata um advogado para provar que ele deve tomar a vaca de mim. E eu devo então contratar outro para defender meu direito, uma vez que é contra todas as regras das leis que se permita a qualquer homem que ele fale por si mesmo. Agora, neste caso, eu, que sou o verdadeiro proprietário, tenho duas grandes desvantagens. Primeiro, meu advogado, sendo experto quase desde o berço em defender a falsidade, está bastante fora de seu lugar quando deve advogar do lado da justiça, coisa que - como um ofício inatural - ele sempre tenta com grande embaraço, senão com má-vontade. A segunda desvantagem é que meu procurador deve proceder com grande cautela, ou então será repreendido pelos juízes e abominado por seus confrades como aquele que enfraquece a prática do direito. Em sendo assim, eu tenho apenas dois métodos para preservar minha vaca. O primeiro é conquistar o procurador de meu adversário com duplos honorários - o qual então irá trair seu cliente insinuando que a justiça está do seu lado. O segundo caminho é fazer meu procurador aparentar a minha causa como a mais injusta possível, concedendo que a vaca pertence ao meu adversário - e isso, se feito com habilidade, certamente me atrairá o favor do tribunal.
Agora, Sua Reverência deve saber que esses juízes são pessoas designadas a decidir todas as controvérsias sobre a propriedade, bem como o processamento dos criminosos, e são escolhidas dentre os mais habilidosos advogados que vão envelhecendo ou tornando-se preguiçosos; e, tendo eles baseado as suas vidas contra a verdade e a equidade, têm tamanha e fatal necessidade de favorecer a fraude, o perjúrio e a opressão que eu soube que alguns deles preferiram recusar um belo suborno vindo do lado onde estava a justiça a injuriar sua competência, realizando qualquer coisa que fosse contra a natureza de seu ofício.
É uma máxima, entre esses advogados, que o que quer que tenha sido feito antes seja feito novamente. E assim eles tomam o especial cuidado de registrar todas as decisões formalmente feitas contra a justiça comum e a razão geral da humanidade. Essas decisões, sob o nome de "precedentes", eles produzem como autoridades para justificar as opiniões mais iníquas - e os juízes nunca falham em segui-las.
Em juízo, eles calculadamente evitam entrar no mérito da causa, mas são sonoros, violentos e cansativos ao lidar com todas as circunstâncias que não se ligam ao pedido. Por exemplo, no caso já mencionado, eles nunca querem saber que direito ou título meu adversário tem sobre a minha vaca, mas se a dita vaca era vermelha ou preta, seus chifres longos ou curtos, se o campo em que eu lhe dava de pastar era redondo ou quadrado, se ela era ordenhada na estrebaria ou ao ar livre, a quais doenças ela estava sujeita, e assim por diante. Depois do que eles consultam os precedentes, suspendem a causa de tempos em tempos, e em dez, doze ou trinta anos chegam a algum resultado.
Deve-se igualmente ser observado que essa sociedade tem um calão peculiar e um jargão próprio que nenhum outro mortal pode entender e no qual todas as leis são escritas, as quais eles têm o especial cuidado de multiplicar; de sorte que eles confundiram completamente a essência mesma da verdade e da falsidade, do certo e do errado. Disso resulta que passarão trinta anos para decidir se o campo, legado pelos meus ancestrais por seis gerações, pertencem a mim ou a estranhos a trezentas milhas de distância.
No processamento de pessoas acusadas por crimes contra o estado, o procedimento é mais curto e elogiável. O juiz primeiro manda ouvir a inclinação daqueles que estão no poder, e então ele pode tranquilamente enforcar ou salvar o criminoso, preservando de modo estrito as formas da lei.
Aqui, meu mestre, interpondo-se, disse que era uma pena que criaturas dotadas de tão prodigiosas habilidades mentais - como tais advogados deviam ser, pela descrição que deles dei -, não eram ao contrário encorajadas a ser preceptoras dos outros na sabedoria e no conhecimento. Em resposta, assegurei a Sua Reverência que em todos os aspectos de seu próprio ofício eles usualmente eram a geração mais ignorante e estúpida entre nós, a mais desprezível na conversação comum, inimigos anunciados de todo conhecimento e ciência, e igualmente dispostos a perverter a razão geral da humanidade em qualquer outro tópico do discurso como em sua própria profissão.
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Um comentário:
Isso me lembra (e muito) a 'verdade' concebida pelas formas processuais no processo penal, no sentido de Foucault. Mas, além disso, tem-se aí alguns toques de conveniência, como sói em todo lugar que se descobre político. O que não se assume, no entanto, é a perversidade das leis e a prostituição da Justiça, mera retórica de eternos filisteus.
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