segunda-feira, dezembro 03, 2007

Bicicleta

Sempre julguei que à medida que os anos se vão, menos inteligente fico. Do que se extrai, acertadamente, que quando as palavras eram-me desconexas seqüências de sons balbuciadas por aquela boca cuja voz possuía poderes mágicos contra os meus maus ânimos eu era mais esperto. É que tinha todas as possibilidades diante de mim. Enquanto vivo e escolho, reduzo seus números até uma mediocridade que hoje só me permite optar o prato do cardápio.

Não mudo de idéia: ano que vem mais burro serei. Isso é irretocável. E será assim até que só me restará esperar a morte, com a apática resignação de quem a negou desde o início. Hoje, porém, ao reviver os vestígios jogados na memória dos meus tempos idos, finalmente consigo datar com certa precisão a fundação da mais aguda ingremidade de meu abismo.

Tinha oito anos de idade. Os meus sucessos nas provas escolares, com os famigerados cartazezinhos que colocavam meu nome à frente de todos meus colegas, deram aos meus queridos pais um motivo para o exibicionismo. Alguma auto-afirmação de que talvez necessitassem encontrou em mim sua razão de existir. Era eu o brilhante aluno, comportado e de boas notas, xodó de todos na escola. Enfim, o prezável e enfadonho filho exemplar.

Alguém deve ter mencionado à minha mãe o lugar-comum da época: os testes de Q.I. Ora, estava aí mais uma possível prova do meu talento, que já não era desconhecido. E tudo estava à mão: minha tia, mulher do irmão de meu pai, era psicóloga de crianças. Pronto. Mais uma chance de mostrar minha genialidade, minha estéril genialidade moldada pelo bom-mocismo.

Arrancaram-me certa tarde do jogo de bola da Rua Desembargador Motta. Era para o teste. Fui com os pés grossos de sujeira à sala de limpos carpetes da minha tia. Deram-me chinelos, mas teimei por um banho antes. Não convenci.

Aquilo me deixou demasiadamente nervoso. Se não provasse, que seria de mim? Todo meu castelo de sólidas fortificações estava ali ameaçado por um capricho de meus pais. Mas sem desgastar-lhes com minhas frivolidades, já lhes digo que foi coisa que passou: o resultado não poderia ser melhor.

Quero, porém, me referir, voltando à introdução do assunto, ao que me desterrou das fartas terras da fertilidade imaginativa. Foi uma inocente pergunta feita no meio do teste. Tinha que definir o que eram as coisas do meu cotidiano. Disse minha tia:

- O que é uma bicicleta?

Respondi como o teria feito uma razão científica que se alija de toda forma de poesia:

- Um veículo não-motorizado de duas rodas que utiliza a força das nossas pernas, por meio de um pedal e de uma correia, para andar.

Meu Deus! Como eu me orgulhei dessa resposta! “Veículo”, “não-motorizado”: mas isso era genial! Quem de meus amigos diria tais palavras?

Antes tivesse sido qualquer um deles e não eu. Desde então, a bicicleta é um entulho de alumínio e rodas e aros e espias. Jamais minha nave, meu cavalo de cavaleiro, meu lugarzinho de namoro, meu vento a soprar uma suave melopéia em meus ouvidos.

2 comentários:

Anônimo disse...

Wowwwwwwwwwww
Que desabafo eim? Esse foi o primeiro texto seu que lí, e já estou impressionado com a sua escrita. Muito rica mesmo.
Ahhh, ao término do seu texto, não me contive: ri e muito ehhehehe mas não se preocupe, percebi o lado reflexivo dele também. Acho que é mania minha ver comicidade em tudo.

Beatrix Miranda disse...

oh, isso é lindo, e tão verdade. só discordo do começo - é fácil e cômodo emburrecer conforme crescemos, mas não é uma sina. ainda há tempo de resgatar. há que deixar de lado essa necessidade já quase inata de ter o mundo resolvido dentro da cabeça através de teorias ao invés de observá-lo com olhos frescos.
apetecia escrever um texto enorme mas tenho de ir à faculdade. yah. talvez depois.