sábado, novembro 25, 2006

ESTUDOS ONTOLÓGICOS

Projeções

O livro deitado sobre a sacola,
A caneta, o desodorante, o cortador de unha.
Ao meu lado, o vigor de sua independência
Com a minha, no pequeno logos deste quarto,
Jamais verão ou saberão que os observo,
E, no entanto, são tão parte de mim,
Quanto tudo o que de sentido lhes foi dado
Pelo ser que me contém.

Vigoram ainda, repousados na minha contemplação.
E enquanto dados a mim, sempre assim.

Tenho medo de saber:
Coisas tão inertes são meus órgãos.

sexta-feira, novembro 03, 2006

Tempo de sonhar

Nos estágios perturbadores do sono, justamente aqueles em que a mente se aviva de sua pequena hibernação, permitindo-se deturpar qualquer regra do mundo físico e representar o próprio corpo livre dos grilhões da substancialidade, em que nada dizem as propriedades e impropriedades da minha matéria – posso voar, ser incapaz de andar ou ainda enfiar no estômago comida suficiente para encher barrigas de elefantes, sempre há a possibilidade de sofrer certo terror, não tanto por entrar em tais estágios, mas precisamente por deles sair. Eis que, acordado, descubro certas verdades de mim mesmo que só meu sonho faz perceber.

Se é verdade que os sonhos se constroem de elementos empíricos que captamos durante o dia, ou durante os últimos dias, fico ainda atinando com o que pode ter sido o substrato fático que fundou todo o temor que sofri noite passada. De antemão já tenho uma idéia pré-concebida, e acho que é nela que basearei o arrimo condutor de toda minha divagação acerca do que, por assim dizer, vivi: meus dias, e creio que de todo mundo, são pautados por horários previamente estabelecidos, horários esses que se fazem lei porque não indicam compromisso de mim comigo mesmo, vez que envolve outros que comigo têm conhecimento de tal horário, ou que me o impuseram. Todos os dias trabalho de tal a tal horas, compareço à academia em tal hora para sair em tal, janto com tal mulher naquela hora agendada, chegando sempre no mínimo quinze minutos mais cedo para jamais deixá-la ser a primeira a esperar.

Em relação ao tempo, não me impressiona que horas fechem-se exatamente num dia, dias num mês e meses num ano. Isso é facilmente explicável: o tempo do homem foi construído para formar um sistema perfeito que se fecha em números redondos. Não há dias com 28,3 horas, ou meses com 19,282 dias, e sim todo dia tem 24 horas, toda hora tem 60 minutos, todo minuto carrega 60 segundos e assim por diante. Também não me impressiona que os parâmetros dessas medições sejam astrofísicos, o dia correspondendo ao movimento de rotação da Terra, o ano ao de translação, com a compensação do dia 29 de fevereiro no ano bissexto em razão de uma mínima divergência entre os dois movimentos, que por não serem intencionalmente construídos não se obrigam, como o calendário humano, a serem exatos, já que algum parâmetro tem que ser escolhido sem arbitrariedades. O que me impressiona é que o homem proclama o poder da razão para vindicar a liberdade, e com isso abre para si um leque infinito de possibilidades, no mais das vezes às quais permanece indiferente em favor da comodidade da tradição e das crenças herdadas, e mesmo assim continua ligado àqueles fatores astrofísicos – o dia e a noite são os parâmetros que indicam a necessidade do sono – e outros biológicos, e, o que agrava essa situação, cria mais fatores de necessidades – o relógio, o calendário e a idade – dos quais irremediavelmente não foge.

Meu sonho caminhou exatamente nessa direção. Não posso precisar detalhes, jamais pude; sequer posso falar de razões históricas (existem razões históricas para sonhos?) de estar, em certo momento, no meu apartamento, olhando ao visor do meu celular a fim de saber as horas. O telefone nada dizia, senão alguns incômodos pontos de interrogação. Precisava das horas, não para fazer alguma coisa, mas porque, por alguma razão, sabê-las nos deixa seguros. Meu relógio de pulso estava sem pilhas. Olhava o calendário e via uma enorme seqüência de números e letras, mas era impossível determinar qual era o dia em que eu estava. Meu computador mostrava um certo horário, porém tinha eu a certeza de que aquilo era um engodo, já que aqueles números não tinham qualquer correspondência com o dia claro que penetrava a janela. Olhei-me no espelho e cuidei de guardar um mínimo de compreensão de que aquele era eu. No entanto, um eu sem tempo era-me demasiadamente penoso, e não demorei muito a concluir que perdia a identidade porque não me localizava em qualquer conjuntura ou contexto, embora meu corpo estivesse seguramente ali. O que me envolvia perdia sentido, pois não tinha certeza se era tempo de lidar com as coisas ao meu redor, e mal podia crer que o espaço do meu apartamento estava justaposto com espaço de fora, porque a mim parecia que o lugar onde eu estava passava por um tempo completamente diferente do tempo de todo o resto do mundo; de modo que nunca poderia ir ao encontro de outros lugares que não aquele em que eu estava.

E poderiam existir os outros? Duvidei, porque ou eu estava ao passado de todos, ou ao seu futuro, e um encontro seria prodígio de filmes de ficção – coisa que meu sonho não era. O tempo, ou melhor, a falta do tempo criou uma enorme muralha entre mim e o que estava à minha mão; senti, finalmente, que era hora – ou qualquer outra palavra que possa dar essa noção, já que hora não existia mais ali – de deparar-me com o nada.

Não sei se exagero ou se o que digo era precisamente o que senti durante o sono, já que, como me expliquei anteriormente, isso aqui se trata de uma divagação que elaborei justamente quando do sonho saí. Tudo o que se passou não deve ter durado alguns minutos, porque logo ouvi a porta do apartamento se abrir e em seu batente aparecer a figura do meu colega, portando um enorme relógio em seu pulso, ao qual imediatamente recorri para, enfim, ter ciência da hora certa.

Disso tudo poderia eu retirar uma conclusão mais ou menos lógica, mas não sei se calmante: o tempo não é o que construímos, é aquilo em que nos construímos. O relógio, o calendário, a idade, tudo isso são necessidades humanas porque o homem é antes de tudo isso algo que se dá no tempo. No meu sonho, faltavam-me relógios e calendários, pelo menos os que significassem algo. E entretanto eu tinha tempo: dando-me conta da situação em que me encontrava, decidi-me pela necessidade de saber o horário e, por tal, aguardava alguma informação. Isso nada mais é do que me encontrar numa ocasião dada pelo meu passado, vivendo um presente que espera o futuro que escolhi como destino e que pautava o meu lidar naquele lugar onírico: quando me decidi por saber o horário, antes de sabê-lo já vivia num tempo, e querer sabê-lo apenas determinou tudo o que eu fazia. Medir o tempo dessa atividade, ou melhor, o lapso de tempo da minha ação, é invenção decorrente do fato de que somos temporais, não o contrário.