quarta-feira, junho 28, 2006

O conto do caixote

O líquido, por sua natureza, assume a forma do recipiente em que está acondicionado. Um homem anda sólido pela rua, e o sólido, por sua natureza, tem forma própria independentemente do espaço que ocupa. Um homem sólido anda solitário pela rua. O solitário, e aqui talvez não entrem questões de natureza, é um homem sólido que anda só, ou vive só, ou, no ror, é uma voz que não se entende ou não faz por onde. Não entra no conceito do solitário o fato de o ser por opção ou por desprezo alheio. Ser sólido, no entanto, é imposição das forças criadoras.
Havia falado em líquido. O homem tem nas mãos uma garrafa. Uma garrafa é um recipiente, de plástico ou de vidro, usado para acolher líquidos, bebíveis ou não. Possuem um corpo bojudo e oco, onde fica o líquido, que por ser líquido assume a forma desse corpo bojudo e oco. Possuem também um orifício, por onde o líquido entra e sai, porque o líquido também tem a característica de fluidez. Esse orifício fica na extremidade de algo a que se dá o nome de gargalo, que na garrafa corresponde a um estreitamento oco do corpo bojudo e oco que termina exatamente no orifício supra mencionado.
A garrafa acondiciona um líquido alcoólico, que por ser líquido assume a forma de sua forma. Por ser alcoólico, podemos entender que é um líquido em que, dentre as substâncias que o compõem, está o álcool etílico.O álcool etílico, por ser álcool, possui uma hidroxila ligada diretamente a uma partícula de carbono; e por ser etílico, contém em sua estruturação etila. Considerando que nessa garrafa temos um rótulo, sólido, com a inscrição “Velho Barreiro”, que indica ser o líquido uma cachaça, já que “Velho Barreiro” é uma marca muito conhecida de cachaça no nosso país, podemos então concluir que o líquido composto de álcool etílico é bebível, porque a cachaça é feita para beber, e não combustível. Em termos científicos não haveria diferença, pois no organismo do nosso solitário sólido homem esse líquido sofrerá, como um combustível, o processo de combustão, pelo qual a substância, após absorvida pelo tal organismo, será combinada com oxigênio numa reação exotérmica, que libera muita energia, do qual temos invariavelmente como resultado o gás carbônico. Em termos corriqueiros, por outro lado, a diferença é enorme: ser bebível significa que poderá ser consumido pelo homem, categoria na qual se inclui o sólido solitário homem da nossa história; já ser combustível significaria que esse líquido teria outras funções, que não vem ao caso no momento.
Falei então do solitário homem sólido com forma própria andando na rua com uma garrafa cujo conteúdo é um líquido alcoólico bebível, que por ser bebível sairá do orifício da garrafa para a boca do homem, entrando no organismo sólido e um pouco oco onde sofrerá combustão. E já sabemos o que tudo isso significa.
Temos, portanto, bons pressupostos para a nossa história.

O sólido homem tinha casa, teto, família, herança, carro e uma empresa. O sólido homem era homem correto e de bem, com brios invioláveis e bons contatos. O sólido homem era o homem dos sonhos do estudante de direito. O sólido homem é o corpo em corpo da sólida imagem (e como imagem, etérea) do homem bem-sucedido.
Um dia um bêbado velho com uma garrafa quase vazia de aguardente nas mãos mijou no pneu de seu carro. No carro do sólido homem!
Coincidência do destino: o bêbado era famoso em certas instituições citadinas, os distritos policiais, onde havia se hospedado várias vezes. Coincidência, isso? Sim, porque o sólido homem avistou um senhor policial logo ali e logo logo acenou. O bêbado foi levado.
Ficha extensa: o bêbado era velho de idade, mas mais velho de picardias.
O bêbado, senhores, era um bandido.
E não um coitado, dos maus. Até matado já havia. E esquartejado, depois de ter estuprado, em quarenta e três pedaços, todos sólidos molhados de líquido vermelho, e os colocado num saco de lixo de quarenta litros e devolvido o morto à sua família.
E a física orgulhou-se de mais uma lei: vários sólidos independentes e amontoados comportam-se como líquidos: tomaram a forma do saco de lixo.
E o bêbado foi de novo para o distrito policial. Que tinha um brinquedo novo.
O bêbado foi colocado num caixote em formato cúbico. De um metro e vinte de lado. O bêbado tinha articulações, o que veio muito a calhar, pois facilitaram sua entrada e acomodação no caixote. Fosse duro, e só uma esquife resolveria.
O bêbado passou vinte e quatro horas no caixote. Vinte e quatro horas correspondem a um dia. Um dia no caixote. E como velho que é velho e que se comporta como velho, morreu. Cheirando a álcool.
- O velho fez por onde!
Fez.

Essa é a história do nosso sólido solitário homem com uma garrafa contendo líquido alcoólico na mão. Mal contada, bem sei. É que os pressupostos que expliquei são inúteis. Faltou que eu dissesse que apesar de todo homem ser sólido, sólidos homens poucos são. Faltou dizer que a língua tem traquejos que deturpam os conceitos físicos, e o sólido vai além da condição dos corpos. Faltou entrar em conjecturas, mui lúcidas, da realidade que se desdobra em mais de bilhões de realidades, de bilhões de julgamentos levianos que ao fim se revelam um só. De que a imagem do sólido no imaginário de todos nós é a mais pura das imagens, e que imagens são mais perigosas do que a sua etérea natureza faz supor. Faltou dizer que o homem é naturalmente mau, que é naturalmente bom, que é corrompido pelo meio, que o meio o faz crescer. Mas mais faltou dizer que o caixote subverteu a solidez do sólido, como a garrafa confirmou a liquidez do líquido. O bêbado saiu quadrado, de pulmões paralisados e corpo rijo. Seu estertor foi dado com bafo, com um mínimo bafo que ele pôde dar. Mas suas vítimas sofreram bastante. Faltou dizer que nada se compensou. Faltou dizer que o bêbado tinha uma cara que todos conhecem, porque todos já a montaram antes mesmo de ele montar suas estripulias. Faltou dizer também que o sólido homem também já tem uma cara conhecida, porque todos sabem quem é a vítima disso tudo. Faltou dizer que nada mais resta a ser feito: todos já sabem. O bêbado não precisa matar e a filha do sólido homem não precisa morrer. O passado que ninguém viveu já deu a eles a condição de sólido frágil homem e bêbado mau inumano.

Faltou dizer que o sólido homem um dia falsificou a assinatura do seu pai. Mas essa última falta, sempre faltará.

3 comentários:

Anônimo disse...

Muito bom o teu conto. Não sabia que você possuia dotes artísticos tão bons. Continue assim, cara.
Um abraço!

G. Ulisse disse...

piado ridícula e de mal gosto. provavelmente feita por alguem que leu o texto correndo e so lembra de palavras avulsas como "alcool".
não que bukowski seja ruim, mas que o felipe esta ficando melhor.

Anônimo disse...

Obrigado por Blog intiresny