Para estabelecer o que Schleiermacher, Berman e Venuti tem em comum no que tem a falar sobre tradução e no que representam uma linha mais ou menos partilhada de ruptura com uma visão, digamos, tradicional da tradução, comecemos com Meschonnic: “Par quoi l’étranger n’est pás seulement l’autre, il est aussi l’invisible, l’effaçable effacé. La traduction, dans sa pratique commune, est aussi une effaçante de l’étranger”[1].
Guardemos aquilo que Meschonnic chama de prática comum da tradução. Mais adiante, no mesmo texto (p. 93), dirá o ensaísta: “Penser, c’est penser l’étranger”. Ora, se a prática comum da tradução procede com um apagamento do estrangeiro e pensar é justamente pensar o estrangeiro, isto é, o que não é familiar, diríamos que Meschonnic atribui à tradução, na sua visão comum, a realização de uma atividade irrefletida, ou que pelo menos parte de um pressuposto não colocado em questão.
É nesse ponto que os três autores com que trabalhamos confluem. Todos eles propõem um pensar a tradução, não na tradução, conforme a regência mais comum do verbo. Ora, ao tornar direto o objeto do verbo pensar, que normalmente seria indireto, opera-se uma modificação no modo de pensar: quando se pensa na tradução, pensa-se já submerso na consideração comum dessa prática, a de uma “prática puramente intuitiva – meio técnica, meio literária -, não exigindo no fundo nenhuma teoria, nenhuma reflexão específicas”[2]. Ou ainda, como também mostra Berman, submerso na consideração externa à própria prática tradutória, é dizer, ligada a uma teoria linguística ou literária ou crítica. Assim, de novo com Meschonnic, e também com Heidegger, pensar a tradução é perseguir os fundamentos da própria tradução, o que antecede ao já-sabido da tradução: colocá-la em xeque. Em última instância: torná-la estrangeira.
Esse pensamento é, digamos novamente, comum aos três, em maior ou menor grau. É preciso lembrar, no entanto, que Schleiermacher fala a partir de um período prepositivista, em que o conhecimento e a pesquisa do sujeito universal romântico não exigiam a partição rigorosa dos saberes. Não se exige aí, como Berman procura fazer para a tradução, embora de uma perspectiva interdisciplinar, uma teoria específica da tradução; tanto é que sua reflexão específica se concentra no curto ensaio Sobre os diferentes métodos de traduzir[3]. Schleiermacher reflete sobre a tradução conforme um saber difundido entre os românticos, pelo menos desde Herder e principalmente com Humboldt, sobre o funcionamento da língua na relação entre o sujeito e o espírito histórico. O paradigma de que parte Berman é o próprio dos românticos alemães, mediado principalmente por Benjamin e por Heidegger, em que essa relação é novamente trazida à baila. Por fim, um pouco distanciado dessa linha de continuidade, Venuti[4] põe-se a pensar a tradução sob uma perspectiva ideológica, conforme apreendida de Marx e Althusser. Porém, essa descontinuidade entre Venuti e os demais é aparente: se pensarmos a ideologia como aquilo que subrepticiamente determina a linguagem conforme os arranjos sociais de dominação de classe, nos termos de Volochínov[5], ou ainda como a própria organização da linguagem, não estaremos longe de Schleiermacher e Berman. Isso porque ambos consideram que o arranjo linguístico que herdamos determinam, até certo ponto e tal qual a ideologia, nossa forma de lidar com o mundo – ou seja, o modo como estamos lançados ao mundo, em termos heideggarianos. Diz Schleiermacher: “[...]cada homem está sob o poder da língua que ele fala; ele e seu pensamento são produtos dela. Ele não pode pensar com total determinação nada que esteja fora dos limites da sua língua” (p. 238). Nesse sentido também é que o arranjo, o conjunto, l’essemble de Berman, importam sobremaneira ao conteúdo, ao falar, de modo que cada palavra conta em relação à outra no discurso interno de uma língua ou de um contexto sociolingüístico. Assim é que lemos em Berman: “On ne peut pas dire 'autrement' dans une même langue, parce que dans tous les domaines essentiels de la parole et de l’écrit, comme le dit la langue commune, chaque mot 'compte'; ou 'porte'” (pp. 65-66), e, citando Lacan, arremata: “Tout symbole linguistique aisément isole est non seulement solidaire de l’ensemble, mais se recoupe et se constitue par toute une série d’affluences, de surdéterminations oppositionnelles qui le constituent à la fois dans plusieurs registres”[6] (p. 66).
Ora, se os três levam em conta essa ligação íntima do sujeito que enuncia e o espírito da língua em que enuncia, obviamente isso tem consequências enormes para a tradução. Porque a tradução irá, necessariamente, romper essa ligação íntima ao verter o enunciado para um espaço linguístico, digamos assim, ao qual não pertencia originariamente. Aqui, pensar a tradução no sentido de tornar a tradução não familiar, ou seja, estrangeira, ganha um segundo peso: penser l’étranger. Não só a tradução como algo estrangeiro, mas como o que lida com o estrangeiro na forma do discurso. Quem formaliza melhor essa noção é Berman, ao defender a visada ética da tradução: “a essência da tradução é ser abertura, diálogo, mestiçagem, descentralização. Ela é relação, ou não é nada”[7].
Essa tripla relação, a do autor com sua própria língua, a do tradutor com a sua e a do tradutor com o autor e a língua estrangeira, sempre nos níveis ideológicos de determinação do discurso, evidencia, para Venuti, que o tradutor não é invisível, como a prática irrefletida presume. Pelo contrário, estando os determinantes externos do texto inscritos em sua materialidade, o tradutor investe sua força produtiva, sua mão-de-obra, na transformação de uma matéria-prima, o texto original, e nesse investimento dota o produto do seu trabalho com a própria ideologia em que está submerso, não em estado puro, é claro, eis que o contato com o outro já pressupõe alguma mudança.
Tendo cientes essas camadas de funcionamento da produção textual – tanto do texto original quanto do texto traduzido – é possível retomar a prática da tradução sob uma nova perspectiva. Essa perspectiva, que é uma perspectiva ética, é a que toma consciência do outro em sua alteridade e que procura deixá-lo aberto na tradução. Ou seja, não apagá-lo na prática assim denominada comum. É por isso que, num exercício mais rigoroso que se opõe ao da mera interpretação, Schleiermacher propõe, sob uma fórmula que ficou célebre, levar o leitor ao autor, sem procurar apagar o que é estranho, mesmo na tradução: eis que, mesmo sendo tradução, o leitor deve ter a consciência de que o texto é estrangeiro e diz respeito a um contexto estranho ao seu.
É certo que essa proposta emperrará não poucas vezes em inúmeros impasses. Como mostrou Berman, o conjunto e a letra – a materialidade do texto – são também expressivos e determinantes do sentido. O que é preciso evitar, contudo, é a tendência planificadora, clareadora e embelezadora da tradução, para que não se perca de vista a particularidade da manifestação discursiva do autor. Inda mais no que toca à tradução literária, onde a forma tem tanta relevância quanto o conteúdo, se é que uma e outro são em algum sentido separáveis em tal tipo de composição. A essa tentativa de clarear o texto original para uma compreensibilidade mais acessível na tradução – a que Venuti chama de fluência e Berman de tradução etnocêntrica, hipertextual e platonizante (é dizer, uma tradução que planifica os acidentes do original para fazer brilhar o sentido, que, em última análise, é sempre uma interpretação dentre os sentidos possíveis) – Berman propõe[8] uma tradução ética, poética e pensante; que se vale tanto da reflexão sobre o próprio processo tradutório e de composição do texto original (tradução como crítica), como da experiência da obra e da língua, ou, em última análise, do outro. Essa experiência, que em outra oportunidade é chamada, graças ao fazer tradutório dos romanos, de translatio[9], é de teor heideggariano, como cita Berman:
Fazer uma experiência com o que quer que seja (...) isso quer dizer: deixá-lo vir sobre nós, que nos atinja, que nos caia em cima, nos deite ao chão e nos transforme noutro. Nesta expressão “fazer” não significa precisamente que somos os operadores da experiência, “fazer” quer dizer aqui, tal como na locução “faire une maladie”, passar por, sofrer de uma ponta à outra, agüentar, acolher aquilo que nos atinge submetendo-nos a ele...[10]
É nessa experiência do outro que reside a prática, não mais comum, mas refletida e ética, da tradução. E é na manutenção dessa experiência no produto de sua transformação que reside o sucesso do tradutor. Assim também o da crítica da tradução, que saberá recuperar os processos ideológicos que governaram autor e tradutor, descobrindo o um e o outro, sempre em relação. Pois, para terminar como começamos, citando Meschonnic, deve-se “Montrer que l’identité n’advient que par l’alterité” (p. 93).
[1] MESCHONNIC, Henry. Pour sortir du postmoderne. Paris: Klincksiek; 2009; p. 89.
[2] BERMAN, Antoine. A tradução em manifesto. In: Idem. A prova do estrangeiro. Cultura e tradução na Alemanha romântica. Trad.: Maria Emília Pereira Chanut. Bauru: EDUSC, 2002; p. 11.
[3] SCHLEIERMACHER, Friedrich E. D. Sobre os diferentes métodos de traduzir. Trad.: Celso Braida. Princípios. Natal, v. 14, n. 21, jan/jun, 2007; p. 233-265.
[4] VENUTI, Lawrence. A invisibilidade do tradutor. Trad.: Carolina Alfaro. Palavra, Rio de Janeiro, n. 3, 1995, pp. 111-134.
[5] BAKHTIN, M; VOLOCHÍNOV, V. N. Marxismo e filosofia da linguagem . 2ª Ed. São Paulo: Hucitec, 1981.
[6] BERMAN, Antoine. L’essence platonicienne de la traduction. In: Ladmiral, Jean-René (org.). Revue d’esthétique (nouvelle série), n. 12 (1986). Toulouse: Éditions Privat, 1987; pp. 63-73.
[7] BERMAN, Antoine. A tradução em manifesto. (...); p. 17.
[8] BERMAN, Antoine. A tradução e a letra ou a pousada do longínquo. In: JORGE, Guilhermina (coord.). Tradutor dilacerado. Reflexões de autores franceses contemporâneos sobre tradução. Lisboa: Edições Colibri; 1997; pp. 15-63.
[9] Idem. Pour une critique des traductions: John Donne. Paris: Gallimard; 1995.
[10] Apud BERMAN, Antoine. A tradução e a letra...; p. 18.