sexta-feira, novembro 04, 2011

la volonté de voir

(reformulações a Georges Bataille)

la nuit
seule

seule sera
et sera

en sera
la réponse:

quarta-feira, novembro 02, 2011

Os mortos

Como dizer, fazer e tornar público,
num ninho de metal e propaganda,
um doce antigo fluxo duma flauta
(vento ou máquina?) quase grito - lama?

Ouve agora? - Ressoa, mas baixinho,
o silêncio vulgar (troam as vísceras
dos túmulos) de flores cá inscritas
pelo estilo da história oficial.

Engano: não é doce, mas é quase
humana a melopeia de silêncio
que cantam nossos mortos necessários.

Cantam - ouve? - montanhas de futuros;
e insistem que sejamos tão felizes
que o massacre nos seja vida e fama.

terça-feira, julho 26, 2011

antitelúricas

o leito mãe da nutriz sempiterna:

coberto de pedra.

ali jaz o asfalto:

hímen indevassável da terra.

sábado, junho 11, 2011

guarda-chuva

caicai de estreláguas água
luzâmpago rela o céu
duelam trovas de nuvens
versejam chuva e chapéu

(teto de passeio porta noite preta de tamborilarilará)

sitia o dia
ventaguando 
em finíssima arritmia
pelos flancos do quartel

sábado, maio 28, 2011

Filoctetes de Sófocles, versos 1193-1195

Οὔτοι νεμεσητὸν
ἀλύοντα χειμερίῳ 
λύπᾳ καὶ παρὰ νοῦν θροεῖν.

Imerece o ódio
quem troa absurdo e excessivo
em tempesta dor.
  

quarta-feira, maio 25, 2011

odisseia

um desvio em cada vaga:
o mar que vi e a ilha que
a mim viu sofrer a saga
revagam a dura lei
mas lei dura lei do mapa

sábado, maio 07, 2011

A diferença entre o cinema e o teatro

Quando o senhor Mifares foi pela segunda vez assistir à Claudia Cardinale no cinema, encantado por tudo que se lhe abundava, levantou d'amores e jogou-lhe uma rosa num suspiro altissonante:

- Se um dia tu'alma pura tiver saudades de mim, teu serafim!, talvez notas de ternura inspirem o doudo amor do trovador!

Na violência apupada da sala, todos deram seu pitaco de uuuu!, shhhh! e filho-da-puta!. Mas, para a tristeza do herói, Claudia Cardinale recebeu a rosa apenas como uma sombra que batia insensível sobre a pele de pano do seu fundilho preto-e-branco. Era isto: uma surda aos apelos que borbotavam do coração fundo mais fundo da paixão picaresca do senhor Mifares. Pois a ortodoxa e cardinal mocinha revestiu-se de um nem-aí; em tudo atenta ao roteiro, fez-se de tonta, sequer vaiou com a canalha, e continuou impassível no papel passado da projeção fílmica. O herói assim triste e desiludido reagiu com o orgulho desmedido de quem flagra uma fraude:

- Ó Claudia, Lenora de meu busto, o cinema nunca mais!.

Por isso que o senhor Mifares, que achava humano o corruptível e conspurcável, gostava mais do teatro. Ia gozar da donzelice perdida de Maria Amelia na pele de uma Silene, devassa rodrigueana. Sabia que se jogasse a rosa a rosa chegava a ela, e se chegasse a ela ela e a peça inteira corriam o risco do fracasso. E sabia que havia sempre uma coxia, que assaltava em sonhos em que se fazia de Dr. Portela  no meio das coxas multicomplacentes daquela virgem depoente, cujos perdigotos umedeciam o herói sentado sempre à primeira fileira. Aquela sala sim era uma aventura; ali o senhor Mifares enxergava a espada de Demóstenes a ameaçar as ditas brandas que ameaçavam perder a ternura. O extraordinário, pensava o herói, era o perigo incontornável de a multidão querer virar teatro, e que, no entanto, (e nisso consistia o encanto), não vira jamais acontecer.

O senhor Mifares, no fundo, empertigava-se e morria d'amores com o perigo de que sua rosa tocasse Maria Amelia. Bastava-lhe isso: o medo de virar homem, e como homem botar tudo a perder, na hora em que fosse espectador.

quinta-feira, abril 28, 2011

A tecnologia a serviço do homem do campo

Você veja o que é a tecnologia. Já se pode cagar e blogar ao mesmo tempo. Chamam isto de posmodernidade: o risco de a merda parar na internet e o blog no esgoto, que é quando adquire ares de comédia stand up. Mas você veja. Hoje, 2011, já andam falando que lá no fundo, naquele império do sol que não se põe, a dinastia prepara as núpcias do infante bem no meio da tremenda crise do ópio na China. É a tecnologia. Nos anos oitenta, quando eram o Charles e a Lady Di, a notícia teve que pegar carona nas naus côncavas que partiam alegres de Salamina, ganhar tintas de melodrama com o Adamastor, conquistar a Libertadores da América, virar degregado filho de Eva em terra Brasilis e conspurcar os peitinhos das indígenas de Luanda nesta Ilha dos Amores de Falsa Cruz. Só então a Globo projetava aos escolhidos de fraque na Avenida Rio Branco o rolo com uma narração do Gandavo, cronista oficial um pouco à esquerda do Plínio S., em um texto cheio de FF, RR e LL, depois de umas notícias rápidas, em braile, sobre o suicídio do Getúlio encurralado no Cerco da Lapa pelos Bichos do Paraná e o confronto da polícia com tupinambás-sem-putos no Eldorado dos Carajás. Olha, eu nem acredito que já se fala nisso, você veja o que é a tecnologia, posto que ainda ontem duvidavam das cinzas de Castello Branco, e os príncipes nem casaram ainda. (Ora, o Castello Branco?!) É, ele também morre, e vira estrada e romancista, embora você duvide. A ditadura também; mas disso ninguém sabe, muito menos ela, megera de célebre família furibunda. Nem o casalzinho vinte cuja foto acabei de receber enquanto tuitava um fax do meu loução gadget.

terça-feira, abril 26, 2011

Sobre a solução para a humanidade

Senhores, estive a dois dedinhos de encontrar a solução para a humanidade, mas a epifania deixou-se perder quando topei com o mindinho do pé no pé da mesa. Foi-se um dos dedinhos e restou uma ponta solta no fio da meada.

Entre mortos e feridos, no entanto, ficam-se os anéis. Já sabemos, pelo menos, porque não desprezamos jamais o acaso, que qualquer solução para a humanidade deve inevitavelmente passar pela gradual eliminação de pés de mesa e quinas em geral.  E, não lembro por quê, nas elocubrações que desenvolvia a eliminação deste instituto chamado a noite curitibana afigurava-se também bem proseável.

sábado, abril 16, 2011

Malthusianismo aplicado

Considerando o crescimento em progressão geométrica da população (e com ela o de torcedores) em comparação com o crescimento em ritmo macunaímico de estádios de futebol e seus lugares para os espectadores, um jogo programado para certa hora do dia deverá ocasionar filas cada ano mais cedo, até que o homem, em, calculo, dez anos, substitua o totalitarismo do mercado de trabalho pelo das filas, e tenha de organizar cada aspecto de sua vida em função delas, se antes não morrer de fome devido ao crescimento em progressão apenas aritmética dos churrasquinhos de gato observado nas imediações do Couto Pereira.

sábado, abril 09, 2011

Filoctetes de Sófocles, versos 446-452

         ἐπεὶ οὐδέν πω κακόν γ' ἀπώλετο,
ἀλλ' εὖ περιστέλλουσιν αὐτὰ δαίμονες·
καί πως τὰ μὲν πανοῦργα καὶ παλιντριβῆ
χαίρουσ' ἀναστρέφοντες ἐξ Ἅιδου, τὰ δὲ
δίκαια καὶ τὰ χρήστ' ἀποστέλλουσ' ἀεί.
Ποῦ χρὴ τίθεσθαι ταῦτα, ποῦ δ' αἰνεῖν, ὅταν
τὰ θεῖ' ἐπαινῶν τοὺς θεοὺς εὕρω κακούς; 

          Não se destrói nenhum dos males,
senão que bem os vestem os demônios.
E assim como, felizes, os corruptos
e embusteiros levantam-se do Hades,
os pios e justos sempre se abandonam.
Como aceitá-lo, como consenti-lo,
se os deuses que o aprovam eu deploro?


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O que lembra os versos de Hopkins:

Thou art indeed just, Lord, if I contend
With thee; but, sir, so what I plead is just.
Why do sinners' ways prosper? and why must
Disappointment all I endeavour end?


Senhor, és justo, eu sei, mas se te ouso agora
Contraditar, também é justo este meu pleito.
Por que somente o mau prospera e sempre gora
Meu sonho de florir, desolado e desfeito?
(Trad. Augusto de Campos)

terça-feira, abril 05, 2011

Verbete: Meritocracia

Sistema social meio BDSM que anuncia como critério para distribuição de suas riquezas o nível de submissão cachorrônica do indivíduo aos sisudos valores deste mesmo sistema; valores cuja expressão mais feliz está no outdoor daquela faculdade oferecendo um curso a distância de dois anos e que você, orgulhoso esforçado, já adivinhou ser "mercado de trabalho". Como não poderia deixar de ser no homem - esse humano torto -, a efetiva distribuição sofre um ligeiro desvio-padrão, e o verdadeiro premiado é aquele ridiculionário forbes-hobbesiano que, ao contrário de você, aprendeu que esses valores são apenas uma brincadeira inocente de papel dobrável no origami mais conveniente para botar no seu (isso mesmo: no teu) forbes particular.

Trata-se do programa oficial da esquereita brasileira.

sexta-feira, março 25, 2011

Tradução de Emily Dickinson em chave cretina*

*Chave cretina é assim: "ah, é? não deu? Pois vai dar!" Aí sai o que saiu; e, de preferência, que se arranje uma defesa de rábula para cada opção tradutória. De sorte que se possa provar, se demandado, que a lorpice é consciente e que ainda há laivos de (má) inteligência nos neurônios do século. A estética da cretinice, mais cínica que Diógenes pouco-se-lhe-dando Lula, o Cara, vaticino e vitupero, ainda vira Arte.


Já fizera uma tradução cretina de Arquíloco aqui. Mas esse poeta, que ao cantar um estupro goza com um "λευκ]ὸν ἀφῆκα μένος / ξανθῆς ἐπιψαύ[ων τριχός" (jorrei uma força branca/tangendo seu cabelo loiro), já cretinizou de antemão todos os seus possíveis tradutores; bem ao contrário da sutilíssima Dickinson, aqui espinafrada.


If I can stop one heart from breaking,
I shall not live in vain;
If I can ease one life the aching,
Or cool one pain,
Or help one fainting robin
Unto his nest again,
I shall not live in vain.

Se acaso evito um broken heart,
Não vou viver em vão;
Se acalmo a vida o latejar,
Ou sopro um vergão,
Ou faço repassarinhar
A rola queda ao chão,
Não vou viver em vão.

quarta-feira, março 16, 2011

Parêntesis

hoje acordei sabendo
(lucidamente com a certeza das enchentes e a do homem que lê jornais e está seguro de que as ruas estão destinadas à (entre aspas) livre circulação das buzinas - dentre as quais as que acham tudo um absurdo, as que acham que este não é um país sério e as que creem ser exatamente aquela entre trezentos e cincoenta a ter conquistado a gatinha na calçada - não contando as sérias contradições entre uma e outra convicção)
que faria alguma coisa

uma coisa nova com uma palavra nova
com a qual acordei

ora, se não fiz, não me culpe
a palavra nova talvez fosse um sonho tão certo no rosto lavado e tão pouco já no café
mas a certeza será a mesma
amanhã (e afinal nada se perdeu)

sábado, fevereiro 05, 2011

O cadáver - segunda parte

- Isso são horas?! - ele disse quando entraram os quatro gorilas na Confederação Geral do Trabalho.

- Boa noite, seu nome?

Ele disse o nome que a história esqueceu.

- Que prazer conhecê-lo. Me chamo coronel Körich (ou König, Klein, Kössler? Era de um nome alemão que ele lembrava).

- Coronel K..., isso são horas?

- Senhor ..., seja gentil. Veja, não crie problemas, que isso tudo não lhe diz respeito. Eu acho sim que são horas, para responder. Olha. Por quê? O senhor sabia que as horas vêm do grego? É como dizer: o momento certo, a estação propícia, olha só, agora. E estes meus colegas todos acham que agora é o momento certo.

- Pois os seus gregos deviam saber, coronel, que madrugada nunca é hora.

- Aliás, Senhor ..., desconfio que hora também tinha algo a ver com sacrifício. (Pausa dramática). Não tenho certeza, veja bem, mas eu posso verificar, hã?

Em se tratando de um gorila, em se tratando de madrugadas, toda palavra era feita de tiro ou lâmina; era faca ou era flâmula. Ele sabia entender ameaças. Mas não era por um ímpeto da resistência a que lhe obrigava o ofício ou por uma adesão ideológica nesses tempos nebulosos que ele tratava o coronel com um rigor que talvez não recomendasse o momento. Era, sim, por instinto de sobrevivência. As madrugadas devoram os fracos e derrotados de véspera; os fortes têm sua reserva de respeito. Não era, entretanto, o caso de deter os gorilas: não era dele o poder ali; ele queria apenas assegurar-lhes que apesar disso não seria um brinquedo.

- Muito bem, senhor ..., somos amigos agora. Veja bem. Eu sei que o seu povo...

- Meu povo é o argentino, coronel.

- Então. - o coronel assumia uma expressão mais didática - O nosso povo... Não. Assim, vamos deixar as coisas claras: que essas pessoas com menos instrução... Mais deslumbradas..., não é?, com essa política imediatista, elas gostavam muito dela. Não, não, não me leve a mal... Não é por mal, na verdade. Nem é contrário aos senho..., a essa gente toda. Eu preciso tirá-la daqui, sabe?, porque tem gente entre nós, do governo, do novo governo, que vão acabar conseguindo dissolvê-la em, nessas coisas (girava a mão)... Em ácido, né... ou incendiando, não sei.

- Sei. (Fingiu que. Concordava.) Ela está no segundo andar, eu os levo.

- Ah, sim, claro, claro. Muito obrigado. Então vamos, senhor ...?

Pela última vez, falou-se ali o nome que a história esqueceu.

sábado, janeiro 29, 2011

O cadáver - primeira parte

Esa mujer es mía.
Rodolfo Walsh
Quando eles falam em agressões, é em horário avançado, quando as pessoas que têm vergonha na cara estão dormindo.
Jair Bolsonaro

Ele era daqueles cristãos segundo quem a madrugada abrigava sempre ações escusas; tinha-a por cúmplice dos crimes certos que cedo ou tarde se revelariam por trás dos atos mais triviais que rivalizavam com o sono das cidades. Coisa de quem vê o trabalho por fatalmente honesto, que se pode ostentar às claras do dia como sinal de pura dignidade. Pois a madrugada guardava o exato oposto; era a hora da penumbra, do esquivo lusco-fusco dos postes e das velas, do silêncio murmurante, do gozo fútil e envergonhado da vida, da vigília cheia de culpa junto aos moribundos ou junto aos mortos. Dos furtos e dos homicídios e das revoluções libertadoras. Sobretudo das revoluções libertadoras que surgem inauditamente nos rádios pela manhã e que enchem de esperança o dia que começa, ainda que disso ele só pudesse esperar alguma merda. A madrugada, sua treva, trazia o homem para a potência de seu componente bestial, de sua permissividade com o logro, de seu erro estimulado pela máscara de sombras ou de álcool que disfarça os rostos. O sono para ele era um mandamento sábio da natureza do corpo humano, o único ato lícito das madrugadas, porque anulava o homem e seus demônios.


O que lhe dava um mal-estar. Mesmo sendo, como ele sabia que era, um trabalho lícito, digno e honesto – essas palavras de seu vocabulário básico –, a ocupação de vigia noturno clandestinamente o tornava companheiro de sorte dos ladrões, vigaristas, prostitutas, bêbados e coronéis que bombardeiam a Casa Rosada. Não podia evitar sentir-se parte de suas ações, pois só de assistir às ruas vivendo esparsamente nas horas tardias ele julgava-se irmanado com a escória pela posse de um segredo que os bons homens não podiam saber porque dormiam. Estar ali, em vigília, sabendo que as ruas agora são todas criminosas fazia desses crimes, sempre impressionantes para a gente que dorme, um hábito corriqueiro na sua vida de vigia; um costume que acabava ganhando justificativas apenas pelo fato de ser um costume. (E justificar crimes lhe era insuportável). Pouco importava para ele que sua culpa não fosse verificável, mensurável em anos de prisão ou mesmo passível de ser apontada por uma outra pessoa qualquer. Seu trabalho honesto era imemoriavelmente maculado por essa solidariedade abstrata entre os que não dormem.

Servisse para confortá-lo, poderíamos dizer com a sabedoria de nossas sociologias de almanaque que ele não tinha escolha, que era isso ou era a fome. Que ele sabia que trabalhar era na maioria das vezes uma sorte, que era preciso conformar-se, a velha prostração de quem tem família para sustentar. Poderíamos dizê-lo, mas a realidade um dia nos desmentiria. Pois aquele laço imaginário entre a sua vigília e a madrugada suspeita, certa noite, tornou-se de uma concretude de pedra ante ele: foi quando veio a ser a parte anônima e involuntária de um dos maiores crimes da nação.

sábado, janeiro 08, 2011

Aramburu e o Juízo Histórico

Trecho final do livro Operación Masacre, de Rodolfo Walsh, referente a um evento de junho de 1956, relacionado com a resistência à Revolución Libertadora (1955), na Argentina. Doze homens, a maioria alheia a esses movimentos, os demais a eles ligados mais pela opinião política que por ações efetivas, são sumariamente condenados à morte por uma autoridade policial, fora da vigência de qualquer lei de exceção. Aramburu, cujo governo deu respaldo aos executores, foi o segundo general presidente de fato na ditadura argentina que se seguiu à queda de Perón. Queria destacar como, em certo momento, Walsh vê os perigos políticos de uma literatura galvanizada, ciosa ao limite da cegueira da sua autoimportância, recoberta de aura - os solenes ditirambos e elegia de encômio ao general. Tradução minha.


Em 29 de maio de 1970, um comando montonero sequestrou, em seu domicílio, o tenente general Aramburu. Dois dias depois essa organização o condenava à morte e enumerava as imputações que o povo peronista alçava contra ele. As duas primeiras incluíam "a matança de 27 argentinos sem juízo prévio nem causa justificada" no dia 9 de junho de 1956.

O comando levava o nome do fuzilado general Valle. Aramburu foi executado às 7 de manha do dia 1º de junho e seu cadáver apareceu 45 dias depois no sul da província de Buenos Aires.

O episódio sacudiu o país de diversas maneiras. O povo não chorou a morte de Aramburu. O Exército, as instituições, a oligarquia elevaram um clamor indignado. Entre as centenas de protestos e declarações há uma que merece ser recordada. Qualifica o fato de "crime monstruoso e covarde, sem precedentes na história da República". Um de seus signatários é o general Bonnacarrere, governador da província quando se desenrolou a Operação Massacre. Outro é o general Leguizamón Martínez, que havia executado o coronel Cogorno nos quarteis de La Plata. Um teceiro é o próprio coronel Fernández Suarez [o ordenador do fuzilamento narrado em Operação Massacre]. Não pareciam os mais indicados para falar de precedentes.

A execução de Aramburu provocou, uma semana mais tarde, a queda do General Onganía, cuja ditadura já havia sido rachada num outro 29 de maio - o do ano anterior - pela epopeia popular do Cordobaço, e postergou momentaneamente os projetos dos secretos liberais que viam no general justiçado uma solução de mudança para a fracassada Revolução Argentina.

A dramatização dessa morte acelerou um processo que geralmente leva anos: a criação de um prócer. Em questão de meses os doutores liberais, a imprensa, os herdeiros políticos canonizaram Aramburu mediante o uso irrestrito do ditirambo e da elegia. Paladino da democracia, soldado da liberdade, dileto filho da pátria, militar forjado no molde clássico da tradição são-martiniana, governante singelo e probo que reunia por temperamento os excessos da autoridade, são alguns dos conjuros que escamoteiam à história o perfil verdadeiro de Aramburu. Dois anos depois tinha seu Mausoléu, ornado de Virtudes.

Nem todos os partidários de Aramburu eram tão néscios para consumir a imagem forjada nessa cantilena. Alguns, que com mais inteligência reconheciam as causas do ódio popular, sustentavam que "o Aramburu de 1970 não era o de 1956" e que, colocado nas mesmas circunstâncias, não haveria fuzilado, perseguido nem proscrito. Como Lavalle, assassino de Dorrego, teria cometido os feitos terríveis que cometeu sob a influência de conselheiros dissimulados: bastava trocar o nome de Salvador del Carril pelo de Américo Ghioldi. Ambos teriam se arrependido, consumando no último momento uma enigmática aproximação da sua terra e do seu povo. Dentro dessa perspectiva, é possível que Aramburu, além do monumento gorila, chegue a merecer a cantata expiatória de um Sábato futuro.

Para um juízo menos subjetivo, essa metamorfose carece de importância, ainda que fosse o caso de ser verdadeira. Executor de uma política de classe cujo fundamento - a exploração - é por si anti-humano e cujos episódios de crueldade devêm deste fundamento como os galhos do tronco, as perplexidades de Aramburu, já longe do poder, somente iluminam a defasagem entre os ideais abstratos e os atos concretos dos membros dessa classe: o mal que fez foram os fatos e o bem que pensou, um estremecimento tardio da consciência burguesa. Aramburu estava obrigado a fuzilar e a proscrever, do mesmo modo que seus sucessores até hoje se viram forçados a torturar e a assassinar pelo simples fato de que representam uma minoria usurpadora que somente mediante o logro e a violência consegue se manter no poder.

A matança de junho exemplifica mas não esgota a perversidade deste regime. O governo de Aramburu encarceirou milhares de trabalhadores, reprimiu cada greve, arrasou a organização sindical. A tortura se massificou e se estendeu a todo o país. O decreto que proíbe mencionar Perón ou a operação clandestina que arrebata o cadáver de sua esposa, mutila-o e tira-o do país são expressões de um ódio a que não escapam nem os objetos inanimados, as toalhas e talheres da Fundação incinerados e fundidos porque levam estampado esse nome que se concebe como demoníaco. Toda uma obra social se destrói, chegam-se a secar piscinas populares que evocam o "fato maldito", o humanismo liberal retrocede a tempos medievais: poucas vezes se viu aqui esse ódio, poucas vezes se enfrentaram com tanta claridade duas classes sociais.

Mas se este gênero de violência põe a descoberto a verdadeira sociedade argentina, fatalmente cindida, outra violência menos espetacular e mais perniciosa se instala no país com Aramburu. Seu governo modela a segunda década infame, aparecem os Alsogaray, os Krieger, os Verrier que vão reatar cuidadosamente os laços da dependência desatados durante o governo de Perón. A República Argentina, um dos países com mais baixo investimento estrangeiro (5% do total investido), que remetia ao estrangeiro apenas um dólar por habitante, começa a gerir esses empréstimos que beneficiam somente ao prestamista, a adquirir etiquetas de cor com o nome de tecnologias, a radicar capitais estrangeiros formados com os fundos nacionais e a acumular essa dívida que hoje grava 25% de nossas exportações. Um só decreto, o 13.125, despoja o país de 2 bilhões de dólares em depósitos bancários nacionalizados e os põe à disposição da banca internacional, que agora poderá controlar o crédito, estrangular a pequena indústria e preparar o ingresso massivo dos grandes monopólios.

Quinze anos depois será possível fazer o balanço dessa política: um país dependente e estagnado, uma classe operária submergida, uma rebeldia que estala por todas as partes. Essa rebeldia alcança finalmente Aramburu, enfrenta-o com seus atos, paralisa a mão que firmava empréstimos, proscrições e fuzilamentos.

Autobiografia de Roberto Arlt

Uma delas. Tradução minha.


Me chamo Roberto Christophersen Arlt, e nasci numa noite do ano 1900, sob a conjunção dos planetas Saturno e Mercúrio. Fiz-me sozinho. Meus valores intelectuais são relativos, porque não tive tempo de me formar. Tive sempre que trabalhar e em consequência sou um improvisado ou adventício da literatura. Esta improvisação é a que faz tão interessante a figura de todos os ambiciosos que de uma forma ou de outra têm a necessidade de afirmar seu eu.

Creio que a vida é bonita. É preciso apenas afrontá-la com sinceridade, desentendendo-se em absoluto de tudo que não nos faz melhores, mas não por amor à virtude, senão por egoísmo, por orgulho e porque os melhores são os que dão coisas melhores.

Atualmente trabalho num romance que se intitulará Os sete loucos, um índice psicológico de caráteres fortes, cruéis e torcidos pelo desequilíbrio do século.

Minhas ideias são singelas. Creio que os homens necessitam de tiranos. O lamentável é que não existam tiranos geniais. Talvez porque para ser tirano há que ser político e, para ser político, um solene burro ou um estupendo cínico.

Em literatura só leio Flaubert e Dostoievski, e socialmente me interessa mais o trato dos canalhas e charlatães que o das pessoas decentes.