Muito já se disse sobre os elevadores da Federal: que um acidente leva à morte uma pessoa a cada cinqüenta anos (razão essa que, como sói ocorrer com as lendas, varia de curso para curso); que há pessoas distraídas as quais, sem perceber que a entrada se abriu mas o elevador não veio, desapareceram em seu poço e delas não há mais notícias; que é grande o perigo de ser repentinamente esmagado pelo súbito e violento fechar de suas portas, quando, por algum defeito recorrente, estão insensíveis ao movimento; ou, augúrio mais alentador, que é inevitável formar-se sem ter passado pelo menos algumas horas esquecidas preso naquele cubículo.
Entretanto, o que eu tenho para contar sobre os elevadores da Federal é mais espantoso.
Naquele dia em que o desaparecido fui eu, havia esquecido numa sala do décimo-primeiro andar meu guarda-chuva. Lembrei-me dele durante a tarde, e como não fora ainda para casa e estava próximo da universidade, poderia passar lá e verificar se o reaveria. Foi o que fiz. Chegando à Federal, as coisas ocorreram bem inusitadamente: não enfrentei fila alguma para o elevador, entrei nele sozinho e fui diretamente, sem nenhuma parada, do térreo para o último andar do prédio. Com tanta sorte assim, é claro que eu não achei meu guarda-chuva: seria demais para ser verdade. Então voltei ao bendito elevador. De novo – ó, azar! – sozinho.
É que lá estando, e sem censores, animei-me a mexericar naquela alavanca que nunca é usada. Puxei-a para a esquerda, para a direita, para o meio e nada. Puxei-a uma vez mais para a esquerda, para a direita, para o meio e... As luzes se apagaram, com exceção daquela que marca o andar pelo qual se está passando. Fiquei quietinho, de medo que tinha, acompanhando o tal indicador passar do 5 para o 4, do 4 para o 3, do 3 para o 2, do 2 para o 1, do 1 para o T. Térreo, enfim!
Mas qual!, o elevador não parou! Continuou descendo, e agora até com aquela última luzinha apagada. Meu coração palpitou. Meus joelhos dobraram-se. Anuviou-se minha visão. Porém, antes que meu corpo todo se estreitasse contra o chão, a porta finalmente se abriu, o que fez-me regozijar com uma nova esperança de vida quando já me acreditava morto.
Rá! Para quê?! Topei com um porão escuro, qual calabouço de castelo, úmido e frio, porém iluminado com luzes de emergência de túneis subterrâneos. Ao fundo, uma celeuma de vozes multivibrantes anunciava um estranho viço para local tão esmorecido. Caminhei em direção aos brados, dos quais se distinguia ora um “isso é absurdo!”; ora um “à vitória!”; ou ainda um “é culpa dos imperialistas do norte!”.
Ao final do corredor, uma ampla sala se descortinava, e nela estavam dispostas várias mesas circulares, repletas de professores discutindo vivazmente os mais diversos assuntos. Num canto, a mesa dos professores de ciências sociais debatia sobre como cortar a garganta dos burgueses para a libertação das massas. A dos professores de história, doutro lado, pelo que pude ouvir, lidava com o tema do revisionismo: pretendiam desdizer tudo o que foi dito pelos gênios conspiradores dos que venceram no passado. Nada mais assustador, porém, que a mesa dos professores de letras, a mais próxima. Reuniam-se eles num vil complô para assassinar a Língua Portuguesa! Reconheci, por exemplo, enquanto oculto nas sombras, as professoras Teresa e Adelaide, falando de coisas macabras, tais como a relativização da noção de erro. O que fez um terrível frêmito tocar-me a espinha: como aquelas professoras, que sempre ostentaram tão doces ares nas mais chuvosas manhãs de Curitiba, falavam essas palavras duras contra o gracioso monumento da nossa puríssima língua materna?
Não acreditava em meus olhos e em meus ouvidos, que me faziam notar uma professora Teresa de cenho franzido, em postura tão grave a soltar uma irascível voz que clamava a morte do prescritivismo. Ou uma professora Adelaide outrora gentil, agora brincando de fincar uma adaga entre os dedos da mão o mais rapidamente que conseguisse e defendendo que..., que... Por deus, ela defendia que o gerundismo é nada mais que um registro atual do que acontece com a língua!
Não pude evitar uma irresistível interjeição:
- Ó! – exclamei eu.
Pobre de mim. Despertei a atenção. Não deu tempo nem de esboçar um sorrisinho amarelo quando senti um golpe surdo a brincar de beisebol com meu cérebro.
Acordei, sei lá quantas horas depois, enjaulado ao lado de um velho senhor sujo e barbudo, com uma marmita de risoto de frango aos meus pés.
- Bem-vindo, jovem. Meu nome é Napoleão, muito prazer. Napoleão Mendes de Almeida.
- Napoleão Mendes de...? Mas tu não tinha morrido, não?
- Tinhas morrido, por favor! – disse o velhinho. E, meditando, olhando para o alto, ponderou: - Se bem que eu prefiro “tu não morreras?”... Não, não! Como sequer sei seu nome, deveria ser “o senhor não morrera?”!
- Ah, perdão – constrangi-me. Mas antes que eu pudesse ser mais polido, arrematou meu companheiro de cela em resposta à minha pergunta:
- De qualquer modo, meu rapaz, mal o senhor conheceu a verdade sobre os elevadores da Federal e sobre a corja que nos enclausurou. A morte é ainda um tema muito longínquo para o alcance de sua parca experiência.