O líquido, por sua natureza, assume a forma do recipiente em que está acondicionado. Um homem anda sólido pela rua, e o sólido, por sua natureza, tem forma própria independentemente do espaço que ocupa. Um homem sólido anda solitário pela rua. O solitário, e aqui talvez não entrem questões de natureza, é um homem sólido que anda só, ou vive só, ou, no ror, é uma voz que não se entende ou não faz por onde. Não entra no conceito do solitário o fato de o ser por opção ou por desprezo alheio. Ser sólido, no entanto, é imposição das forças criadoras.
Havia falado em líquido. O homem tem nas mãos uma garrafa. Uma garrafa é um recipiente, de plástico ou de vidro, usado para acolher líquidos, bebíveis ou não. Possuem um corpo bojudo e oco, onde fica o líquido, que por ser líquido assume a forma desse corpo bojudo e oco. Possuem também um orifício, por onde o líquido entra e sai, porque o líquido também tem a característica de fluidez. Esse orifício fica na extremidade de algo a que se dá o nome de gargalo, que na garrafa corresponde a um estreitamento oco do corpo bojudo e oco que termina exatamente no orifício supra mencionado.
A garrafa acondiciona um líquido alcoólico, que por ser líquido assume a forma de sua forma. Por ser alcoólico, podemos entender que é um líquido em que, dentre as substâncias que o compõem, está o álcool etílico.O álcool etílico, por ser álcool, possui uma hidroxila ligada diretamente a uma partícula de carbono; e por ser etílico, contém em sua estruturação etila. Considerando que nessa garrafa temos um rótulo, sólido, com a inscrição “Velho Barreiro”, que indica ser o líquido uma cachaça, já que “Velho Barreiro” é uma marca muito conhecida de cachaça no nosso país, podemos então concluir que o líquido composto de álcool etílico é bebível, porque a cachaça é feita para beber, e não combustível. Em termos científicos não haveria diferença, pois no organismo do nosso solitário sólido homem esse líquido sofrerá, como um combustível, o processo de combustão, pelo qual a substância, após absorvida pelo tal organismo, será combinada com oxigênio numa reação exotérmica, que libera muita energia, do qual temos invariavelmente como resultado o gás carbônico. Em termos corriqueiros, por outro lado, a diferença é enorme: ser bebível significa que poderá ser consumido pelo homem, categoria na qual se inclui o sólido solitário homem da nossa história; já ser combustível significaria que esse líquido teria outras funções, que não vem ao caso no momento.
Falei então do solitário homem sólido com forma própria andando na rua com uma garrafa cujo conteúdo é um líquido alcoólico bebível, que por ser bebível sairá do orifício da garrafa para a boca do homem, entrando no organismo sólido e um pouco oco onde sofrerá combustão. E já sabemos o que tudo isso significa.
Temos, portanto, bons pressupostos para a nossa história.
O sólido homem tinha casa, teto, família, herança, carro e uma empresa. O sólido homem era homem correto e de bem, com brios invioláveis e bons contatos. O sólido homem era o homem dos sonhos do estudante de direito. O sólido homem é o corpo em corpo da sólida imagem (e como imagem, etérea) do homem bem-sucedido.
Um dia um bêbado velho com uma garrafa quase vazia de aguardente nas mãos mijou no pneu de seu carro. No carro do sólido homem!
Coincidência do destino: o bêbado era famoso em certas instituições citadinas, os distritos policiais, onde havia se hospedado várias vezes. Coincidência, isso? Sim, porque o sólido homem avistou um senhor policial logo ali e logo logo acenou. O bêbado foi levado.
Ficha extensa: o bêbado era velho de idade, mas mais velho de picardias.
O bêbado, senhores, era um bandido.
E não um coitado, dos maus. Até matado já havia. E esquartejado, depois de ter estuprado, em quarenta e três pedaços, todos sólidos molhados de líquido vermelho, e os colocado num saco de lixo de quarenta litros e devolvido o morto à sua família.
E a física orgulhou-se de mais uma lei: vários sólidos independentes e amontoados comportam-se como líquidos: tomaram a forma do saco de lixo.
E o bêbado foi de novo para o distrito policial. Que tinha um brinquedo novo.
O bêbado foi colocado num caixote em formato cúbico. De um metro e vinte de lado. O bêbado tinha articulações, o que veio muito a calhar, pois facilitaram sua entrada e acomodação no caixote. Fosse duro, e só uma esquife resolveria.
O bêbado passou vinte e quatro horas no caixote. Vinte e quatro horas correspondem a um dia. Um dia no caixote. E como velho que é velho e que se comporta como velho, morreu. Cheirando a álcool.
- O velho fez por onde!
Fez.
Essa é a história do nosso sólido solitário homem com uma garrafa contendo líquido alcoólico na mão. Mal contada, bem sei. É que os pressupostos que expliquei são inúteis. Faltou que eu dissesse que apesar de todo homem ser sólido, sólidos homens poucos são. Faltou dizer que a língua tem traquejos que deturpam os conceitos físicos, e o sólido vai além da condição dos corpos. Faltou entrar em conjecturas, mui lúcidas, da realidade que se desdobra em mais de bilhões de realidades, de bilhões de julgamentos levianos que ao fim se revelam um só. De que a imagem do sólido no imaginário de todos nós é a mais pura das imagens, e que imagens são mais perigosas do que a sua etérea natureza faz supor. Faltou dizer que o homem é naturalmente mau, que é naturalmente bom, que é corrompido pelo meio, que o meio o faz crescer. Mas mais faltou dizer que o caixote subverteu a solidez do sólido, como a garrafa confirmou a liquidez do líquido. O bêbado saiu quadrado, de pulmões paralisados e corpo rijo. Seu estertor foi dado com bafo, com um mínimo bafo que ele pôde dar. Mas suas vítimas sofreram bastante. Faltou dizer que nada se compensou. Faltou dizer que o bêbado tinha uma cara que todos conhecem, porque todos já a montaram antes mesmo de ele montar suas estripulias. Faltou dizer também que o sólido homem também já tem uma cara conhecida, porque todos sabem quem é a vítima disso tudo. Faltou dizer que nada mais resta a ser feito: todos já sabem. O bêbado não precisa matar e a filha do sólido homem não precisa morrer. O passado que ninguém viveu já deu a eles a condição de sólido frágil homem e bêbado mau inumano.
Faltou dizer que o sólido homem um dia falsificou a assinatura do seu pai. Mas essa última falta, sempre faltará.
quarta-feira, junho 28, 2006
sábado, junho 24, 2006
Marquetingue
Ttttt
Shlef
Ttttt
Shlef
Andando.
Ssshhh
Hhhsss
Respirando.
Because of you. Because o outro lado da rua.
Ttttt
Shlef
Ignorante ignorada anda ingênua, mão com mão com rebento do rebento. Avó e neto do outro lado da rua.
O que significa downtown a quem downtown é apenas o-centro. N'o-centro, vindos do subúrbio, fazendo seus próprios ttttt e shlef e ssshhh e hhhsss e olham amedrontadas pessoas com medo. Simplicidade.
Diferentes. Sucessivas barrigas rebentadas para o par formar familiar. A perpetuação da espécie e da ignorância.
Os pensamentos falam como. Bocas
Bocas
Palavras
O que as bocas da velha senhora de pele velha falam que sua boca não pode dizer. Velhe pela, otas folhas, língau cunfondadis.
Confundidas.
Um mundo tão velho quanto os sulcos da sua pele. E tão novo. Ttttt shlef do outro lado da rua. Olhos alumbrados. Mundo novo como a mão do neto agarrado pode ser.
Uma abordagem um susto um medo de dizer não um não sei o que faço agora. Técnicas do marketing moderno.
- Marquetingue?
Ela não iria entender. Quié isso mermão? Censor supereguista alienado. Nada mais que a realidade, mermão. Não conseguiria entender jamais.
Financiadoras, franquias, factorings, fomentos, falimentares, faturas, falências, fundações, firmas, faturamento-recorde, folha-de-pagamento, fichas-de-compensação, formulários, fiança, fideicomisso, fateusim.
Felação, fornicação, foda.
Hã?
Because ttttt of shlef you
Ssshhh
Hhhsss
Respiração, passo, pensamento.
- A senhora não quer tomar um cafezinho conosco e conhecer nossas propostas? Terá tudo que precisa.
Não quer e não precisa. Mas quererá e precisará. Isso é marketing!
Entre esgotos a céu aberto e ruas de chão batido onde o passo não é ttttt mas mais surdo um ddddd não há homens de boné vermelho da Finasa Financiadora oferecendo propostas irrecusáveis nas esquinas a quem quer que passe de preferência uma velha sulcada com seu neto ignorante mas não mais ignorada ingênua que não sabe como agir porque não pisa (ttttt shlef) em terreno conhecido entre protocolos já estabelecidos e bem definidos impossibilitada de dizer não porque não sabe o que fazer. Não dizer não.
Não!
- Tá bom.
Marketing e o segredo do sucesso. Um parasita ensinou ao outro que corpo forte se defende, embora tenha sangue.
Milhões de corpos fracos.
Hemoglobina do mercado.
Continuo tttt shlef
Andando.
E ssshhh hhhsss
Respirando.
Pulmões e pernas que eu tenho desse lado da rua. Sei bem fazê-lo downtown. Mas a malbecausedita musicofyou que me grudou na cabeça!
Shlef
Ttttt
Shlef
Andando.
Ssshhh
Hhhsss
Respirando.
Because of you. Because o outro lado da rua.
Ttttt
Shlef
Ignorante ignorada anda ingênua, mão com mão com rebento do rebento. Avó e neto do outro lado da rua.
O que significa downtown a quem downtown é apenas o-centro. N'o-centro, vindos do subúrbio, fazendo seus próprios ttttt e shlef e ssshhh e hhhsss e olham amedrontadas pessoas com medo. Simplicidade.
Diferentes. Sucessivas barrigas rebentadas para o par formar familiar. A perpetuação da espécie e da ignorância.
Os pensamentos falam como. Bocas
Bocas
Palavras
O que as bocas da velha senhora de pele velha falam que sua boca não pode dizer. Velhe pela, otas folhas, língau cunfondadis.
Confundidas.
Um mundo tão velho quanto os sulcos da sua pele. E tão novo. Ttttt shlef do outro lado da rua. Olhos alumbrados. Mundo novo como a mão do neto agarrado pode ser.
Uma abordagem um susto um medo de dizer não um não sei o que faço agora. Técnicas do marketing moderno.
- Marquetingue?
Ela não iria entender. Quié isso mermão? Censor supereguista alienado. Nada mais que a realidade, mermão. Não conseguiria entender jamais.
Financiadoras, franquias, factorings, fomentos, falimentares, faturas, falências, fundações, firmas, faturamento-recorde, folha-de-pagamento, fichas-de-compensação, formulários, fiança, fideicomisso, fateusim.
Felação, fornicação, foda.
Hã?
Because ttttt of shlef you
Ssshhh
Hhhsss
Respiração, passo, pensamento.
- A senhora não quer tomar um cafezinho conosco e conhecer nossas propostas? Terá tudo que precisa.
Não quer e não precisa. Mas quererá e precisará. Isso é marketing!
Entre esgotos a céu aberto e ruas de chão batido onde o passo não é ttttt mas mais surdo um ddddd não há homens de boné vermelho da Finasa Financiadora oferecendo propostas irrecusáveis nas esquinas a quem quer que passe de preferência uma velha sulcada com seu neto ignorante mas não mais ignorada ingênua que não sabe como agir porque não pisa (ttttt shlef) em terreno conhecido entre protocolos já estabelecidos e bem definidos impossibilitada de dizer não porque não sabe o que fazer. Não dizer não.
Não!
- Tá bom.
Marketing e o segredo do sucesso. Um parasita ensinou ao outro que corpo forte se defende, embora tenha sangue.
Milhões de corpos fracos.
Hemoglobina do mercado.
Continuo tttt shlef
Andando.
E ssshhh hhhsss
Respirando.
Pulmões e pernas que eu tenho desse lado da rua. Sei bem fazê-lo downtown. Mas a malbecausedita musicofyou que me grudou na cabeça!
quarta-feira, junho 21, 2006
Poema anal (ou letra para um funk)
Sitibundo
Pela bunda
Do teu mundo
Levantada,
Se te pego
Nua em pêlo
No teu rego
Assanhada,
Te esculacho
Te arregaço:
O teu facho
Eu apago.
Pela bunda
Do teu mundo
Levantada,
Se te pego
Nua em pêlo
No teu rego
Assanhada,
Te esculacho
Te arregaço:
O teu facho
Eu apago.
sábado, junho 17, 2006
Bloomsday
Minhas mãos medrosas sofrem com a grandeza tirânica da minha cabeça. Como o dedicado cardeal Wolsey sofrendo com os caprichos conjugais de Henrique VII. Traidoras. Olho a bunda redonda da menina que passou ao meu lado, e minha boca é preguiçosa enquanto imagino orgias. Casanova? Meu corpo é mais prudente que minha mente. Segurança do banco de madeira.
Um homem passa e suas mãos batem no bolso de trás. Tranqüilo: ainda a carteira ali. A alma dele ali também, toda a vida dele em volta daquele bolso glúteo. A minha também, desesperadamente também. Desalmados que passam vendendo óculos escuros de marca roubados. “Não, eu não uso óculos escuros, obrigado”. Vá embora que não quero você. Tchau. Tchau! Livre.
Leio um livro grosso. Tanta preguiça nos meus olhos. E minha cabeça tirânica ainda quer ser grande. Hoje, eu consigo dez páginas! Fraco triunfo de pessoa fraca. Quantos livros eu já li? Mais de cem, talvez. Coisa pouca, não lembro de nada. O Graciliano Ramos escreveu e eu li, e depois esqueci. Hoje eu lembro que o antecedeu Jorge Amado, e depois veio Érico Veríssimo. Informações inúteis. Como saber que ontem foi o Bloomsday e eu estou no Brasil sonhando com Dublin.
Tanta coisa eu já pensei e poderia dizer a essa rodinha de velhos aqui atrás. Tanto absurdo que falam. Eles não entenderiam. A seleção não empatou em 2002. Eles não sabem? E se eu entrasse nos meandros da economia para dizer que nem tudo é culpa do governo. E que viados não são doentes. Talvez tenha algum velho inteligente, e eu só me acho esperto porque não digo nada a ninguém. Todo meu sustentáculo de papel evita o vento; não coloco as coisas a perder. Segurança e auto-estima.
Um lábio carnudo comendo cabelos vermelhos. Um desejo só, passa logo. Outra passa, com pernas gordas e cheias de furos. Lipócitos acumulando gordura contra a pele. Eu teria vergonha de usar uma saia curta se tivesse as pernas dela. Mas a calça de tricolina xadrez daquela outra eu quero pra mim. Passei da décima página, posso olhar um pouco mais. A menina não é bonita, mas aquela. Moda. Feios bonitos diferentes. A diferença que o padrão tolera e padroniza. Escandalosos ontem, corriqueiros demais hoje. Também nem tanto, o básico eu vejo sempre e mais. Importante é não sair demais das coisas consagradas. Ser triste é bonito. Ser alegre só com roupas esvoaçantes e cabelos descolados. Importante é pisar em terras conhecidas.
Pessoas caminham bastante, falam pouco. O chão de pedras brancas – que pedra é essa? Só os velhos aqui atrás falam muito. Creio que são surdos, só pode ser isso. Ou sobreviventes da queda de Babel, lingüistas incomunicáveis em monólogos a três. Só sei o que é mármore e granito e ardósia e pedra brita. Que pedra é essa? O chão não escapa, pelo menos na maioria das vezes. Isso explica tudo. Andam mais do que falam porque com os ouvidos e os pensamentos tudo é diferente. São sempre fugidios, ariscos com palavras alheias. A gente pisa e o chão sempre lá. A gente fala...
Uma perna, duas muletas. Bêbado, eu acho. Viu-me. Hey, cara preto, o que é que você faz aqui? “Tem dois reais pruma ajudinha? É pra passagem”. Um e oitenta a passagem, pegar trocado demora muito. Um e oitenta pra passagem, vinte centavos pra se ver livre logo. Dou-lhe alma? Sabe do quê? Almas só servem para nos prender. Dê os cinqüenta, vai. As oncinhas pintadas a ele e eu livre!
Tiro a tartaruga marinha. Dou-lhe. Ganho um sorriso e fico com os cinqüenta. Afinal, eu ainda quero ficar preso e garantir a única essência que conheço de mim.
- Ô, vou te contar um segredo, mas você não pode contar pra ninguém.
- E pra quem que eu vou contar?
Nem sei quem você é. Pára de cuspir, desdentado! Simpatia, eu sou simpático, eu sou amável. 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8, 9, 10.
- Eu sou cantor.
E eu sou escritor. Você com essa voz e eu com essa letra. Há, há!
- Ah, é? – respondo.
- É sim, mas não conta não.
Ele me toca. Velhos amigos. Metempsicoses e vidas passadas, não sei nada disso. Quem não arrisca, não perde.
- Mas se você é cantor, aí sim que tem que contar.
Cantor contar, serei poeta.
- Não, que me chamam lá pro Ratinho. Daí eu vou ser assaltado em São Paulo.
Ara! Gente ruim. Assaltar esse pobre diabo!
- Ah, bom – concordo, dizer o quê?
- Mas eu tô juntando dinheiro pra fazer uma lanchonete. Aí eu canto.
Lá se vão meus dois reais. Ele continua:
- Eu tô vendo pra fazer uma lanchonete. Dois mil-e quinhentos. Vou emprestar, olha aqui.
Tirou uma porção de notas fiscais de mercado do bolso. Propaganda de cartão de crédito. É dali que ele vai montar a lanchonete com dois mil e quinhentos reais. Santo? A multiplicação dos peixes. Continue conversando.
- E onde vai ser o bar?
- Bar nada! E eu sou gente de cantar em bar? Vai ser uma boate.
Claro.
- Cuide então do dinheiro, que te roubam.
- Roubam nada. Olha aqui, não tenho uma perna. Quem vai me roubar?
Lógico. Mas antes ele estava com medo de São Paulo. Pessoas excêntricas. Será um gênio?
- Sabe, eu tenho uma irmã que trabalha na Unimed. Pergunta lá pelo José.
- José é você?
- É sim. É eu. Mas meu nome de cantor é outro.
- Ah, nome artístico. Tá certo. Qual que é?
- Joelton.
Belíssimo.
- Joelton. Você vai ouvir. Joelton na televisão. Conhece Zezé di Camargo?
- Sei quem é.
- Então, canto que nem ele.
Puxa vida! Pego um autógrafo?
- Parabéns!
- Um dia vou tá lá na chácara dele comendo um churrasco.
- Legal.
Um douto representante da camada de cabelos espevitados e jaquetinha bonita passa por nós. Olha-nos espantado. Coisa estranha, não?
Orgulho-me da minha simpatia com o José. O choque do meu sorriso com o desprezo blasé dos outros.
- ... São Paulo.
- Hã?
- Porque quando eu tiver lá, não vou esquecer de Curitiba não. Eu sou paranaense, volto pra cantar aqui. Imagine. O Ratinho não é paranaense?
Meneio a cabeça: é sim.
- Ele nem volta pra cá. Eu não. Não vou virar a cabeça.
Canso. Quero gente inteligente e calada comigo. Atendo, de mentirinha, o celular. Ah, sim, já vou.
- Valeu, cara! Boa sorte. Eu tenho que andar.
- Vá lá. Você é bonito. E não por causa dos dois aqui que você... E com esse livro aí, estuda bastante. Vai se dar bem. Aí você compra um CD meu.
Vaticínio consolador, realmente. Deixo do pudor, agora te considero indesejável, tchau. Faço questão de cumprimentá-lo mão com mão. Lavado de seu cuspe. João Batista batizando Cristo. Redimo-o. Vá e seja feliz. Vou, sobre o chão seguro, entre pessoas desconhecidas, tão aconchegantes.
Um homem passa e suas mãos batem no bolso de trás. Tranqüilo: ainda a carteira ali. A alma dele ali também, toda a vida dele em volta daquele bolso glúteo. A minha também, desesperadamente também. Desalmados que passam vendendo óculos escuros de marca roubados. “Não, eu não uso óculos escuros, obrigado”. Vá embora que não quero você. Tchau. Tchau! Livre.
Leio um livro grosso. Tanta preguiça nos meus olhos. E minha cabeça tirânica ainda quer ser grande. Hoje, eu consigo dez páginas! Fraco triunfo de pessoa fraca. Quantos livros eu já li? Mais de cem, talvez. Coisa pouca, não lembro de nada. O Graciliano Ramos escreveu e eu li, e depois esqueci. Hoje eu lembro que o antecedeu Jorge Amado, e depois veio Érico Veríssimo. Informações inúteis. Como saber que ontem foi o Bloomsday e eu estou no Brasil sonhando com Dublin.
Tanta coisa eu já pensei e poderia dizer a essa rodinha de velhos aqui atrás. Tanto absurdo que falam. Eles não entenderiam. A seleção não empatou em 2002. Eles não sabem? E se eu entrasse nos meandros da economia para dizer que nem tudo é culpa do governo. E que viados não são doentes. Talvez tenha algum velho inteligente, e eu só me acho esperto porque não digo nada a ninguém. Todo meu sustentáculo de papel evita o vento; não coloco as coisas a perder. Segurança e auto-estima.
Um lábio carnudo comendo cabelos vermelhos. Um desejo só, passa logo. Outra passa, com pernas gordas e cheias de furos. Lipócitos acumulando gordura contra a pele. Eu teria vergonha de usar uma saia curta se tivesse as pernas dela. Mas a calça de tricolina xadrez daquela outra eu quero pra mim. Passei da décima página, posso olhar um pouco mais. A menina não é bonita, mas aquela. Moda. Feios bonitos diferentes. A diferença que o padrão tolera e padroniza. Escandalosos ontem, corriqueiros demais hoje. Também nem tanto, o básico eu vejo sempre e mais. Importante é não sair demais das coisas consagradas. Ser triste é bonito. Ser alegre só com roupas esvoaçantes e cabelos descolados. Importante é pisar em terras conhecidas.
Pessoas caminham bastante, falam pouco. O chão de pedras brancas – que pedra é essa? Só os velhos aqui atrás falam muito. Creio que são surdos, só pode ser isso. Ou sobreviventes da queda de Babel, lingüistas incomunicáveis em monólogos a três. Só sei o que é mármore e granito e ardósia e pedra brita. Que pedra é essa? O chão não escapa, pelo menos na maioria das vezes. Isso explica tudo. Andam mais do que falam porque com os ouvidos e os pensamentos tudo é diferente. São sempre fugidios, ariscos com palavras alheias. A gente pisa e o chão sempre lá. A gente fala...
Uma perna, duas muletas. Bêbado, eu acho. Viu-me. Hey, cara preto, o que é que você faz aqui? “Tem dois reais pruma ajudinha? É pra passagem”. Um e oitenta a passagem, pegar trocado demora muito. Um e oitenta pra passagem, vinte centavos pra se ver livre logo. Dou-lhe alma? Sabe do quê? Almas só servem para nos prender. Dê os cinqüenta, vai. As oncinhas pintadas a ele e eu livre!
Tiro a tartaruga marinha. Dou-lhe. Ganho um sorriso e fico com os cinqüenta. Afinal, eu ainda quero ficar preso e garantir a única essência que conheço de mim.
- Ô, vou te contar um segredo, mas você não pode contar pra ninguém.
- E pra quem que eu vou contar?
Nem sei quem você é. Pára de cuspir, desdentado! Simpatia, eu sou simpático, eu sou amável. 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8, 9, 10.
- Eu sou cantor.
E eu sou escritor. Você com essa voz e eu com essa letra. Há, há!
- Ah, é? – respondo.
- É sim, mas não conta não.
Ele me toca. Velhos amigos. Metempsicoses e vidas passadas, não sei nada disso. Quem não arrisca, não perde.
- Mas se você é cantor, aí sim que tem que contar.
Cantor contar, serei poeta.
- Não, que me chamam lá pro Ratinho. Daí eu vou ser assaltado em São Paulo.
Ara! Gente ruim. Assaltar esse pobre diabo!
- Ah, bom – concordo, dizer o quê?
- Mas eu tô juntando dinheiro pra fazer uma lanchonete. Aí eu canto.
Lá se vão meus dois reais. Ele continua:
- Eu tô vendo pra fazer uma lanchonete. Dois mil-e quinhentos. Vou emprestar, olha aqui.
Tirou uma porção de notas fiscais de mercado do bolso. Propaganda de cartão de crédito. É dali que ele vai montar a lanchonete com dois mil e quinhentos reais. Santo? A multiplicação dos peixes. Continue conversando.
- E onde vai ser o bar?
- Bar nada! E eu sou gente de cantar em bar? Vai ser uma boate.
Claro.
- Cuide então do dinheiro, que te roubam.
- Roubam nada. Olha aqui, não tenho uma perna. Quem vai me roubar?
Lógico. Mas antes ele estava com medo de São Paulo. Pessoas excêntricas. Será um gênio?
- Sabe, eu tenho uma irmã que trabalha na Unimed. Pergunta lá pelo José.
- José é você?
- É sim. É eu. Mas meu nome de cantor é outro.
- Ah, nome artístico. Tá certo. Qual que é?
- Joelton.
Belíssimo.
- Joelton. Você vai ouvir. Joelton na televisão. Conhece Zezé di Camargo?
- Sei quem é.
- Então, canto que nem ele.
Puxa vida! Pego um autógrafo?
- Parabéns!
- Um dia vou tá lá na chácara dele comendo um churrasco.
- Legal.
Um douto representante da camada de cabelos espevitados e jaquetinha bonita passa por nós. Olha-nos espantado. Coisa estranha, não?
Orgulho-me da minha simpatia com o José. O choque do meu sorriso com o desprezo blasé dos outros.
- ... São Paulo.
- Hã?
- Porque quando eu tiver lá, não vou esquecer de Curitiba não. Eu sou paranaense, volto pra cantar aqui. Imagine. O Ratinho não é paranaense?
Meneio a cabeça: é sim.
- Ele nem volta pra cá. Eu não. Não vou virar a cabeça.
Canso. Quero gente inteligente e calada comigo. Atendo, de mentirinha, o celular. Ah, sim, já vou.
- Valeu, cara! Boa sorte. Eu tenho que andar.
- Vá lá. Você é bonito. E não por causa dos dois aqui que você... E com esse livro aí, estuda bastante. Vai se dar bem. Aí você compra um CD meu.
Vaticínio consolador, realmente. Deixo do pudor, agora te considero indesejável, tchau. Faço questão de cumprimentá-lo mão com mão. Lavado de seu cuspe. João Batista batizando Cristo. Redimo-o. Vá e seja feliz. Vou, sobre o chão seguro, entre pessoas desconhecidas, tão aconchegantes.
sexta-feira, junho 09, 2006
De esporros e assédios morais
Maçãs tensas,
retesadas sobrancelhas.
Sobre as celhas
o pastoso tegumento.
Escondem as paredes
O chão e o teto do trabalho
Pulsões irrefreáveis.
Hierarquiza-se o grito.
O pavilhão que o acomoda
Amedronta-se.
As paredes da intimidade,
Secretíssimas, escondem a paixão
da ira imanifestável.
retesadas sobrancelhas.
Sobre as celhas
o pastoso tegumento.
Escondem as paredes
O chão e o teto do trabalho
Pulsões irrefreáveis.
Hierarquiza-se o grito.
O pavilhão que o acomoda
Amedronta-se.
As paredes da intimidade,
Secretíssimas, escondem a paixão
da ira imanifestável.
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