que não entre aqui
quem não souber
ignorar-se
quem mergulhando na terra
não fugir à própria medida
que aqui não bote
os pés vegetais
da anciã genealogia
quem
no jogo das esferas
sabe a terra redonda, e vazia
sexta-feira, maio 27, 2016
os minutos mais importantes da história do cinema
a dança contente dos dedos
em pas de deux no fio atroz
da última técnica de depilação facial
a canga verde que desenha
brisa e silhueta
do sexo adivinhado na praia
a mão contraparte do cigarro
brisa e silhueta
do sexo adivinhado na praia
a mão contraparte do cigarro
a incendiar o cenário inútil
da cidade que entra pela janela
da cidade que entra pela janela
o minuto ou menos que levou
o olho para encharcar-se
na tristeza glauca de um pedido
a história que se passou
entre o sutiã que prometia
e o seio que cumpriu
duas ou três palavras sopradas
como o único mandamentode uma madrugada:
nenhum minuto mais importante da história do cinema pôde ser
filmado
segunda-feira, novembro 26, 2012
terça-feira, setembro 18, 2012
sábado, agosto 25, 2012
Notas sobre o Desejo em Barthes
o livro faz o
sentido, o sentido faz a vida
Roland Barthes
I
Na metafísica da República platônica, o caminho do saber se faz para o alto, em direção ao conhecimento mais importante, o do
bem, cuja figura é o sol que projeta as sombras nas paredes da
caverna. Há, porém, um momento em que o filósofo deverá sair
dessas alturas para voltar ao solo, à partilha da vida comum na
cidade com a experiência de seu saber. Esse retorno não seria
também o retorno do leitor de seu espaço confinado – o gabinete do
narrador da Recherche proustiana - à vida dos afazeres
mundanos? Mas, tendo experimentado a partir de uma abolição do
mundo todos os prazeres da leitura, o que disso resta ao leitor que
se revê no meio dos turbilhões da vida?
De outro modo, o que há além do livro? Ou, é Barthes que o
pergunta: “por que não continuamos um livro?”. Giorgio
Agamben, apoiado sobre a poesia medieval e sobre Valéry, já se
colocou a questão do fim do poema e do fim do verso. Segundo ele, o
que marca a especificidade da poesia é o enjambement, definido como
uma cisão entre o som e o sentido, uma não-coincidência
fundamental entre o fim de um conjunto sonoro e semiótico – o
verso – e de um conjunto semântico – a frase. Disso ele conclui
que o fim do poema, no momento em que o enjambement não é mais
possível, faz o leitor se abismar sobre o silêncio, sobre uma queda
infinita.
Essa precipitação do leitor, devemos limitá-la ao fim do poema?
Ora, é também pelo infinito (e pelo retorno à história) que
Barthes define o gozo para além do livro: “de parte a outra, a
escritura-leitura se expande ao infinito, compromete todo o homem,
seu corpo e sua história; é um ato de pânico, cuja única
definição segura é que ele não se detém em lugar nenhum”.
Saindo da verticalidade das alturas e dos abismos, é dessa expansão
infinita e horizontal que nos ocuparemos agora.
II
Uma inundação das rotas que conduzem à cidade isola um jovem
estudante de medicina na fazenda de seu primo. Para poder trocar
algumas palavras com a família do peão, o estudante se põe a
ler-lhes o Evangelho segundo Marcos, com o que ele ganha o interesse deles. Tendo curado uma pequena cabra com comprimidos, ele ganha
também o seu respeito. As chuvas continuam, e a família lhe pede novamente a leitura do mesmo Evangelho. No fim, chegando o bom tempo e o
dia de partir dali, o jovem é arrancado de sua cama e maldito pela
família. Fora da casa, vê uma cruz que foi levantada para si.
Eis, grosso modo, a trama do conto O Evangelho segundo Marcos, de
Jorge Luís Borges. Pode-se ver que o escritor desenvolve aqui, numa
escala menor, porém mais intensa, a experiência da leitura
que já conhecemos com Dom Quixote ou com Emma Bovary. Longe de
abandonar o texto à esfera do separado, esses leitores se deixam
marcar por ele, atravessar seus corpos por sua letra, a fim de se
expandir do fim do livro à história do qual eles fazem parte.
Se com a leitura clandestina, separada, do narrador proustiano de
que fala Barthes, a gente o identifica com o sujeito amoroso ou com o
sujeito místico que abole o mundo, com a leitura transbordada de
nossos peões, a gente os identifica com o sujeito esquizofrênico
que não abole, mas retoma o mundo, o mundo, porém, sob o modo de sua abolição.
Esse leitor lunático se vê tomado a um só tempo pelas “três
vias pelas quais a Imagem da leitura pode capturar o sujeito que lê”
- a saber, a leitura metafórica ou poética, a leitura
metonímica e a leitura condutora do Desejo de escrever.
De início, o texto libera uma máquina de leitura metonímica que
avança ao longo do livro, gozando o seu suspense, mas que não pode
se deter no fim. Essa máquina se precipita, assim, além do livro,
em direção ao infinito da história, com seu corpo novo – porque
o gozo lhe é constituinte. Retomando o mundo e mantendo o suspense,
nosso leitor sentirá na sequência a necessidade de o metaforizar,
para ultrapassar as categorias enrijecidas da realidade e da língua
comuns. Digamos: contra o fetichismo que conserva as coisas tais como
elas são, essa máquina opõe um fetichismo violento que procura se
substituir ao primeiro, dando uma nova roupagem ao – ou despindo o
- mundo. E eis aí Dom Quixote fazendo de moinhos gigantes; Emma
Bovary fazendo seus amores sucederem-se e substituírem-se um ao
outro; o jovem médico, após a cura da cabra, visto como o novo
Jesus Cristo. Após ter sido atravessado pelo texto, o próprio
leitor perfura o mundo, fazendo deste o espaço privilegiado de sua
aventura pessoal.
Perfurar o mundo: a experiência ocidental da escritura é
justamente aquela da inscrição - “para o escriba ou o copista
ocidental, preparar-se para escrever é talhar sua pluma (gesto
agressivo, predator, despedaçante)”, segundo Barthes. Se a
terceira via que caputra o sujeito que lê é aquela do Desejo de
escrever, e se, no fim do livro, não encontramos mais o limite entre
o livro e o mundo (relembremos a máxima mallarmaica: “tudo no
mundo existe para chegar ao livro”, e vice-versa), podemos
então dizer que desejar a escritura/inscritura
do mundo, como
fizeram esses leitores esquizofrênicos, é também uma forma de ser
capturado pelas Imagens da leitura.
III
Ironia assustadora: um texto cujo pacto ficcional
demanda do leitor o reconhecimento de sua verdade, como o do
Evangelho segundo Marcos, pode aguentar essa verdade? Ou nos incumbe
proteger o texto de si mesmo, criando espaços separados, gozos
vigiados, interpretações autorizadas? É claro que a experiência
dos nossos leitores esquizofrênicos é uma experiência limite, mas
o perigo que toda escritura oculta em si nunca passou despercebido pelas diferentes forças da censura, desde a expulsão
dos poetas da República platônica até os meios de controle do
mercado, do direito de autor e das instituições legitimantes do
discurso crítico. Ou seja, o leitor esquizofrênico é a figura
hiperbólica de uma possibilidade fundamental da leitura, aquela da
letra constituinte do sujeito.
Barthes nos diz, no fim de suas observações
sobre o Desejo: “para mim, minha
convicção profunda e constante é que nunca será possível liberar
a leitura se, no mesmo golpe, não liberamos a escritura”.
Ele se preocupa aqui da produtividade do texto, ao constatar que em
nossa sociedade, de consumo, não de produção, “tudo
está feito para bloquear a resposta”.
Do que se trata esse bloqueio? Poderíamos aproximá-lo à “separação
consolidada” de que nos fala Guy
Debord? Isola-se o texto literário por sua ficcionalidade,
separando-o da vida, para evitar o perigo de sua produtividade no
Desejo do sujeito que lê. Relega-se a literatura, e a arte em geral,
a uma estética pura, um prazer anódino ligado ao esquecimento da
vida real, aquilo que se aprecia nos momentos de descanso, para que
se possa voltar ao batente como se nada tivesse acontecido – a
“prática confortável da leitura”1.
Porém, se o postulado de que a leitura
esquizofrênica guarda em si uma das possibilidades fundamentais da
leitura, a da constituição do sujeito pela inscrição, é correto, em
qual medida podemos considerar que essa leitura confinada (enfermé),
confirmante da cultura tal como é, sem reviravoltas e crises, é,
ela mesma, parte da constituição do sujeito? Debord pode nos dar um
caminho: “a realidade considerada
parcialmente se desdobra na sua própria unidade geral enquanto
pseudo-mundo à parte,
objeto unicamente da contemplação. A especialização das imagens
do mundo se vê, cumprida, no mundo da imagem autonomizada, em
que o mentiroso mentiu-se a si mesmo”.
Ou seja, é a separação (ou a autonomização) das imagens da
literatura ou da arte que o leitor guarda e traz ao mundo. Assim, o
mundo é percebido como separado de si, a quem só resta a
contemplação ou a crítica ranzinza do homem honesto. Vê-se aqui
de novo o retorno ao mundo sob a forma de sua abolição. Mas uma
abolição não-viva, totalizante como realidade dada, independente
do sujeito. O sujeito, aqui, se constitui pela assunção da
separação; aquilo que Walter Benjamin chama de “estetização
da política”.
Embora essa leitura tenha sua produtividade, a da
reprodução da cultura corrente, é a aventura pessoal da
escritura-inscritura, da precipitação no abismo, a do próprio gozo,
que lhe falta. Essa aventura, nós a encontramos no narrador
proustiano – cujo enredo é também uma espécie de Bildungsroman
de um escritor que se escreve ao se criar pela leitura – e nossos
leitores lunáticos. É a aventura da perfuração do mundo.
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1Essa é também a forma da recepção da literatura que Barthes atribui a uma tal Sociedade dos Amigos do Texto: “chatos-boys [casse-pieds] de todo tipo, que decretam a forclusão do texto e de seu prazer, seja por conformismo cultural, seja por racionalismo intransigente (que suspeita de uma “mística” da literatura), seja por moralismo político, seja pela crítica do significante, seja por pragmatismo imbecil, seja por parvoíce burlesca, seja pela destruição do discurso, perda do desejo verbal”.
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1Essa é também a forma da recepção da literatura que Barthes atribui a uma tal Sociedade dos Amigos do Texto: “chatos-boys [casse-pieds] de todo tipo, que decretam a forclusão do texto e de seu prazer, seja por conformismo cultural, seja por racionalismo intransigente (que suspeita de uma “mística” da literatura), seja por moralismo político, seja pela crítica do significante, seja por pragmatismo imbecil, seja por parvoíce burlesca, seja pela destruição do discurso, perda do desejo verbal”.
quinta-feira, maio 17, 2012
O que é a arte, Jean-Luc Godard?
Por Louis Aragon. Tradução minha.
As "explosões de luz que se sucedem uma a outra sem justificação possível na Paris noturna".
O que é a arte?
Ando às voltas com essa pergunta desde que vi Pierrot le Fou [O demônio das onze horas, no Brasil] de Jean-Luc Godard, em que o Esfinge Belmondo coloca a um produtor
americano a questão: O que é o cinema? De uma coisa estou seguro, e
assim posso começar a atacar minhas perturbações com pelo menos
uma certeza, como um pilotis sólido no meio do pântano: é a de
que a arte hoje é Jean-Luc Godard. É talvez por isso que seus
filmes, e particularmente esse filme, provocam injúria e desprezo;
há quem se permite com eles o que jamais ousaria dizer sobre uma
produção comercial comum, e permite-se, diante do autor, certas
palavras que extrapolam a crítica e atacam o homem.
O que o americano,
em Pierrot, diz sobre o
cinema poderia dizer sobre a guerra do Vietnã, ou sobre a
guerra de modo geral. O que soa engraçado no contexto - o
extraordinário momento do filme em que Belmondo e Anna Karina, para
conseguir dinheiro, improvisam diante de um casal de americanos e
seus marinheiros, em algum lugar da Côte, uma peça em que ele é o
sobrinho do Tio Sam, e ela, a sobrinha de Tio Ho... But it's damn
good, damn good! exclama o marinheiro de barba ruiva... porque é
um filme em cores, imaginem vocês. Não vou, como todo mundo,
contar-lhes o enredo, que isso aqui não é uma resenha. E além do quê,
o filme desafia a resenha. Que contem centavo por centavo os milhões!
A guerra do Vietnã segundo Belmondo-Pierrot-Ferdinand-sobrinho de Tio Sam e Anna Karina-Marianne-sobrinha de Tio Ho
O que é que eu
teria respondido caso Belmondo, ou Godard, tivesse me perguntado: O
que é o cinema? Eu abordaria o negócio de outra maneira: pelas
pessoas. O cinema, para mim, foi antes de tudo Charlot, depois
Renoir, Buñuel, e hoje é Godard. É isso. Dirão que esqueço
Eisenstein e Antonioni. Vocês se enganam: não os esqueço. Nem
alguns outros. Mas minha questão não é de cinema: é de arte. O
que me levaria do mesmo modo a dizer: de uma outra arte, de uma arte
frente a outra, com uma longa história, a fim de resumi-la ao que
ela se tornou para nós, nos tempos modernos: uma arte moderna. A pintura, por exemplo. A fim de resumi-la às pessoas.
A pintura, no
sentido moderno, começa com Géricault, Delacroix, Courbet, Manet.
Depois, seu nome é multidão. Por causa deles, a partir deles,
contra eles e além deles. Um florescimento tal como não se viu
desde a Itália da Renascença. Para se resumir completamente em um
homem chamado Picasso. O que neste instante me interessa é esse tempo
dos pioneiros, pelo qual ainda se pode comparar o jovem cinema à
pintura. O jogo de dizer quem é Renoir ou quem é Buñuel não me
diverte. Mas Godard é Delacroix.
A começar por
como se recepciona Godard. Em Veneza, digamos. Não estive em Veneza,
não faço parte dos júris que distribuem as palmas e os oscars. Eu
vi, encontrei-me vendo Pierrot le fou, e é tudo. Não falarei
dos críticos. Que se desonrem sozinhos! Eu não vou contradizê-los.
Há entretanto quem, dentre eles, se deixou conquistar pela grandeza:
Yvonne Baby, Chazal, Chapier, Cournot... Ainda assim, não posso
deixar passar aqui o extraordinário artigo de Michel Cournot: não
tanto pelo que diz, um tanto obcecado pelos reflexos da vida
pessoal no filme, pois como todos ele está intoxicado pelo
cinema-verdade, enquanto eu me ligo ao cinema-mentira. Mas, pelo
menos (e finalmente!) eis aí um homem que se deixa levar quando
alguma coisa o toca. E depois, que me desculpem, ele sabe escrever, e
se de tudo fica só isso, a mim pelo menos isso importa. Amo a
linguagem, a maravilhosa linguagem, o delírio da linguagem: nada é
mais raro que a linguagem da paixão, nesse mundo em que vivemos com
medo de sermos pegos desprevenidos, medo que remonta, queiram
crer, à saída do Éden, quando Adão e Eva se viram nus antes da
invenção da folha de vinha.
Mas do que é que
falava? Ah! sim, eu amo a linguagem e é por isso que eu amo Godard,
que é todo linguagem.
Não, não era
disso que eu falava: eu falava que se o recepciona como recepcionaram
Delacroix. No salão de 1827, que conta aqui como Veneza, Eugène
[Delacroix] pendurou A morte de Sardanápalo, que ele chamava
de seu Massacre n. 2, pois ele era também um pintor de
massacres, não um pintor de batalhas. Ele teve, diz, várias rusgas
com S. Senhorias, os rigorosos membros do júri. Quando o viu
na parede (“meu quadreco não podia estar em melhor lugar”),
ao lado das telas dos demais, sentiu-se como se todo mundo o vaiasse
na estreia. E isso antes de a exposição ter começado. Um mês mais
tarde ele escreveria para seu amigo Soulier:
Aborrece-me
todo esse Salão. Acabarão me persuadindo de que fiz um verdadeiro
fiasco! Do que ainda não estou convencido, no entanto. Uns dizem que
A morte de Sardanápalo
é um fracasso total, assim como a dos românticos, pois há algo de
romântico aí; outros, que estou equivocado, mas que achariam melhor
enganarem-se assim que ter razão como mil outros que, se se quer,
têm razão e que estão condenados em nome da alma e da imaginação.
Já eu digo que são todos uns imbecis, que essa tela tem qualidades
e defeitos, e que se há coisas que eu desejaria sim que fossem
melhores, há ainda muitas outras por que, de tê-las feito, eu me
considero feliz e as quero. Le
Globe, ou melhor, o Sr. Vitet, diz que quando um soldado
imprudente atira em seus amigos como atira em seus inimigos, deve-se
afastá-lo das fileiras. Ele convoca o que ele chama de jovem Escola
a renunciar a toda aliança com um pérfido independente. Tanto o faz
que os que me roubam e vivem de minha substância não hesitariam em
vilipendiar-me um mais alto que o outro. Tudo isso dá pena e não
merece atenção nem por um momento, a não ser pelo fato de que isso
vai comprometer os interesses materiais, ou seja, the
cash...
Delacroix, La mort de Sardanapale, 1827. Musée du Louvre.
Nada,
nem o franglês [franglais], mudou muito nesses cento e trinta e oito
anos. Ocorre que fui rever A morte de Sardanápalo
há pouco tempo. Que quadro esse “massacre”! Pessoalmente,
prefiro-o de muito a A liberdade sobre as barricadas,
sobre que já me encheram a paciência. Mas não é disso que se
trata. Trata-se de em que a arte
de Delacroix aqui assemelha-se à arte
de Godard em Pierrot le fou.
Isso não lhes salta aos olhos? Falo para aqueles que viram o filme.
Não, isso não lhes salta aos olhos.
Enquanto
assistia à projeção de Pierrot,
eu havia esquecido o que normalmente se deve, ao que parece, dizer e
pensar de Godard. Que ele tem tiques, que cita este e aquele, que nos
dá lição, que ele se crê isso ou aquilo... enfim, que ele é
insuportável, verborrágico, moralizador (ou imoralizador); eu, no entanto, só
via uma coisa, uma única: é a de que o filme era bonito. De uma
beleza sobre-humana. Que vai do físico até a alma e a imaginação.
O que se vê durante duas horas é essa beleza a que a palavra beleza
não basta para definir; seria preciso dizer desse desfile de imagens
que ele é, que elas são, simplesmente sublimes. Mas ao leitor de
hoje desagrada o superlativo. Tanto pior, o que penso desse filme é
que ele é de uma beleza sublime. Palavra essa que não se emprega
mais, senão para as atrizes ou nos bastidores. Tanto pior, continua
sendo mesmo assim de uma beleza sublime. E olha que eu detesto
adjetivos.
É,
portanto, como Sardanápalo,
um filme em cores. Na grande tela. Que se distingue de todos os
filmes em cores pelo fato de que o emprego de um meio
em Godard é sempre um fim,
o que inclui quase sempre sua crítica. Não se trata apenas do fato
de ser bem fotografado, de que as cores são bonitas... É bem
fotografado, as cores são muito bonitas. Mas se trata de outra
coisa. As cores são as do mundo tal como ele é, como se diz? Seria
preciso ter bem em conta: Como a vida é terrível! Mas
ainda é bela. Se o é com outras palavras, dá no mesmo.
Mas Godard não se basta no mundo tal como ele é: por exemplo, de
repente a vida é monocromática, toda vermelha ou toda azul, como
durante essa soirée mundana, no começo do filme, que é
provavelmente o ponto de partida da irritação de certa crítica (o
que me lembra uma soirée nos Champs Elysées, na estreia de um balé
de Elsa, com música de Jean Rivier, coreografia de Boris Kochno,
cenário de Brassai, o reparador de rádios,
com o tumulto da sala, os apitos porque se via gente do mundo dançar
numa boate, e, obviamente, toda Paris se sentia atacada!) Nessa soirée, a renúncia à policromia, mas sem o retorno ao preto e
branco, significa a reflexão de J.L. Godard ao mesmo tempo sobre o
mundo em que introduz Belmondo e a técnica sobre os
meios de expressão. Tanto
é assim que se segue quase imediatamente outro efeito de cor que se
desencadeia a partir de uma espécie de fogo de artifício: explosões
de luz que se sucedem uma a outra sem justificação possível na Paris
noturna em que se inflama a paixão do herói por Anna Karina, sob a
forma arbitrária de pastilhas, de luas coloridas que escorrem como
chuva no para-brisa de seu carro, que projetam sobre
seu rosto e sua vida o
arbitrário como um desmentido do mundo, como a entrada deliberada do
arbitrário em sua vida. A cor, para J.L.G., será mais do que mera a
possibilidade de nos dar a saber que uma moça tem os olhos azuis ou
de informar qual a legião de honra de um homem. Um filme dele que
conta com as possibilidades da cor vai obrigatoriamente nos mostrar
algo que era impossível ver com o preto e branco, uma espécie de
voz que não pode
vibrar no mudo das
cores.
Na
paleta de Delacroix, os vermelhos, o terracota, o vermelho de Veneza,
o vermelho esmalte de Roma ou o garance,
que jogam com o branco, o cobalto e o cádmio - será isto uma
espécie particular de daltonismo de minha parte? - eclipsam para mim
os demais tons, como se estes não estivessem lá senão para formar
o fundo daqueles. Lembre-se o que o pintor disse a Philarete Chasles
sobre Musset: É um poeta que não tem cor... etc. Já eu
prefiro as feridas abertas e a cor viva do sangue...
Essa frase, que sempre guardei comigo, voltava-me naturalmente à
cabeça enquanto via Pierrot le fou.
Não somente pelo sangue. O
vermelho aí canta como uma obsessão. Como em Renoir, cujo Terraços
em Cagnes vem à lembrança
graças a uma casa provençal no filme. Como uma dominante do mundo
moderno. A tal ponto que na saída eu não vejo nada de Paris além
dos vermelhos: placas de sentido único, olhos múltiplos de proibido
passar, moças em calças cochonilhas, lojas garance,
carros escarlates, o cinábrio multiplicado nos balcões das
restaurações, o cártamo tenro dos lábios e das palavras do filme,
só me ficava na memória esta frase que Godard colocou na boca de
Pierrot: Não
posso ver o sangue, mas que,
segundo Godard, é de Federico Garcia Lorca, onde?, que importa!, por
exemplo n'O pranto pela morte de Ignácio Sanches Mejías,
eu não posso ver o sangue, eu
não posso ver, eu não posso, eu não. O filme inteiro não passa
desse imenso soluço, de não poder, de não suportar ver, e de
derramar, de ter de derramar o sangue. Um sangue garance,
escarlate, terracota, carmesim, que sei? O sangue dos Massacres
de Quíos, o sangue d'A
morte de Sardanápalo, o sangue
de julho de 1830, o sangue de seus filhos que serão derramados pelas
três Medeia furiosa,
a de 1838, e as de 1859 e 1862, todo o sangue de que se lambuzam os
leões e os tigres em seus combates com os cavalos... Nunca correu
tanto sangue na tela, de sangue vermelho, desde o primeiro morto no
quarto de Anna-Marianne até o seu próprio, nunca houve na tela
sangue tão vistoso quanto o do acidente de carro, do anão morto com
a tesoura e não sei mais o quê, eu não posso ver o
sangue, Que no quiero
verla! E não é Lorca mas o
rádio que anuncia friamente cento e quinze maquisares mortos no
Vietnã... Aqui é Marianne que ergue a voz: É horrível,
hein, que seja assim anônimo... Dizem cento e quinze maquisares, e
isso não evoca nada, enquanto cada um era um homem, e a gente não
sabe quem é: se eles amam uma mulher, se têm filhos, se preferem ir
ao cinema ou ao teatro. A gente não sabe de nada. Dizem apenas cento
e quinze mortos. É como a fotografia, isso sempre me fascinou...
Esse sangue que não se vê, sua
cor. Dir-se-ia que tudo se ordena em torno dessa cor,
maravilhosamente.
¡Que no quiero verla!
Dile a la luna que venga,
que no quiero ver la sangre
de Ignacio sobre la arena.
¡Que no quiero verla!
Trecho de LLanto por Ignacio Sanchez Mejía, de Federico García Lorca
Pois
ninguém melhor que Godard para pintar a ordem da desordem. Sempre.
Em Os
carabineiros, Viver a vida, Bande à part,
aqui. A desordem de nosso munto é sua matéria, na saída das
cidades modernas, iluminadas de neon e feitas de fórmica, nos
bairros suburbanos ou fundos de quintal, aquilo que ninguém jamais
vê com os olhos da arte, as vigotas tortas, as máquinas
enferrujadas, o lixo, as latas de conserva, os cabos de aço, todo
esse cortiço de nossa vida sem o que nós não poderíamos viver,
mas que nós evitamos ver. E tanto daí como dum acidente e dum assassinato ele tira beleza. A ordem do que não pode ter ordem,
por definição. E quando os amantes, abandonados a uma confusa e
trágica aventura, fazem desaparecer seu rastro, incendiando seu carro ao lado de um outro acidentado, eles atravessam a França
de norte a sul, e parece que para apagar seus passos é preciso
ainda, e sempre, caminhar na água, para atravessar esse rio que
poderia ser o Loire... E mais tarde nesse lugar perdido do
Mediterrâneo onde, enquanto Belmonto se põe a escrever, Anna Karina
passeia com uma raiva desesperada de um extremo a outro da tela
repetindo essa frase como um canto fúnebre: O
que posso fazer? Não posso fazer nada... O que posso fazer? Não
posso fazer nada...
Anna Karina: "Qu'est-ce que je peux faire? Je sais pas quoi faire."
Falando do Loire...
Esse
rio, com seus ilhéus e suas areias, pensei, ao vê-lo, que é aquele
que passa na paisagem ao fundo da Natureza
morta com lagostas, que
está no Louvre, e que Delacroix pintou, diz-se, em Beffes, em Cher,
perto de Charité-sur-Loire. Esse estranho arranjo (ou desordem) de
uma lebre e de um faisão com duas lagostas cozidas cor de terracota
sobre uma bolsa de caça e um fuzil diante da vasta paisagem com o
rio e suas ilhas, dirá algupem que ele o fez para um general que
morava em Berry, e mesmo assim ele não deixa de ser uma matança
singular, esse Massacre
n. 2 bis,
que é mais ou menos contemporâneo de A
morte de Sardanápalo,
e aparecerá perto desta tela no Salão de 1827. Ele tentava uma
técnica nova em que a cor é misturada com o verniz copal. Toda a
natureza de Pierrot
le fou
é também envernizada por não sei qual copal de 1965, o que é como
se a víssemos pela primeira vez. O certo é que não há precedente
a Natureza morta
com lagostas,
a esse encontro de um guarda-chuva com uma máquina de costura sobre
a mesa de dissecação da paisagem, como não há outro precedente
que não Lautréamont a Godard. E já não sei o que é desordem, o
que é ordem. Talvez a loucura de Pierrot seja isto: que ele está aí
para colocar na desordem de nosso tempo a ordem estupefaciente da
paixão. Talvez. A ordem desesperada da paixão (o desespero está em
Pierrot desde o início, o desespero do seu casamento, e a paixão, o
lirismo, é a única chance de ainda escapar).
Nature morte aux homards, Eugène Delacroix, 1827. Musée du Louvre. "Beau comme la rencontre fortuite sur une table de dissection d'une machine à coudre et d'un parapluie!" Lautréamont, chant VI de Les Chants de Maldoror (a associação é de Aragon)
Durante
o ano em que Eugène Delacroix parte bruscamente para o Marrocos
atravessando a França pela
neve e um frio do cão... uma borrasca de vento e de chuva, 1832,
não houve o Salão no Louvre por causa do cólera em Paris. Mas em
maio, uma exposição beneficente substitui o Salão, na qual cinco
telas em formato pequeno emprestadas por um amigo representam o
ausente. Três dentre elas parecem ter sido feitas sucessivamente, e
provavelmente em 1826-1827:
Estudo de mulher deitada (ou mulher de meias brancas),
que está no Louvre, a Moça
acariciando um papagaio
que está no Museu de Lyon e O
duque de Borgonha mostrando o corpo de sua amante ao duque de
Orleans,
que está não sei onde.
Femme nue couchée sur un divan, dit: la femme aux bas blancs, Eugène Delacroix, 1826. Musée du Louvre
Jeune femme caressant un perroquet, Eugène Delacroix, 1827. Musée de Beaux-Arts de Lyon.
Essa
é justamente a época de seu relacionamento com Mme. Dalton, mas é
impossível saber quem são na verdade as mulheres nuas dessas três
telas, se se trata da mesma. Sem dúvida a Moça
com papagaio
tem as mesmas pálpebras pesadas que se veem na Adormecida,
que é, ao que parece, Mme. Dalton. Mas nem uma nem outra lembram o
retrato dela feito por Bonington. No Diário
de Eugène,
aparecem muitas moças que posam para ele, e a seu respeito o pintor
inscreve em seu caderno uma aritmética bastante particular. O que
quer que seja, se nos atermos ao Duque
de B etc.,
na sequência desses dois estudos, ninguém duvidará que existe aqui
uma coincidência de strip-tease entre o quadro e a vida, podendo
Eugène ser o Duque da Borgonha, e seu amigo, Robert Soulier, o Duque
de Orleans. Sabe-se como Mme. Dalton passou de um a outro. Mas aqui
não está em questão a perversidade do pintor: em Pierrot
le Fou,
é Belmondo que brinca com um papagaio. Só digo isso tudo para
mostrar como, se eu também quisesse, poderia me dedicar ao delírio
da interpretação. Além disso, não seria essa a resposta à
questão da qual parti? A arte é o delírio da interpretação da
vida.
Se
eu quisesse também, abordaria J. L. G. pela ótica dos pintores para
buscar a origem de uma das características de sua arte, a qual mais
se lhe censura. A citação, como dizem os críticos, as colagens,
como eu propus que se chamasse; creio ter visto, nas entrevistas, que
Godard retomou esse mesmo termo. Os pintores são os primeiros
usuários da colagem no sentido em que nós, ele e eu, a entendemos,
antes mesmo de 1910 e seu emprego sistemático por Braque e Picasso:
temos, por exemplo, Watteau, cuja Tabuleta
de Gersaint [L'enseigne
de Gersaint] é uma imensa colagem, em que todos os quadros na parede
da loja e o retrato de Louis XIV por Hyacinthe Rigaut que colocam na
caixa são citados,
como se gosta de dizer. Em Delacroix, basta lembrar de um quadro de
1824, Milton e
suas filhas,
para encontrar “a citação” enquanto técnica de expressão.
Havia algo de provocação no fato de tomar por objeto de pintura um
homem que não enxerga para mostrar seu pensamento: o cego pálido
está sentado numa poltrona apoiando sua mão sobre uma toalha de
mesa bordada; seus dedos apalpam as cores diante de um vaso de flores
que lhe escapa.
L'enseigne de Gersaint, Jean Antoine Watteau, 1720. Scholssmuseum Charlottenburg, Berlin.
Milton aveugle dictant "Le Paradis Perdu" à ses filles. Eugène Delacroix, 1824.
Acima
de suas duas filhas sentadas sobre cadeiras baixas, uma tomando nota
do Paraíso
Perdido
que o poeta dita, a segunda segurando um instrumento de música que
se calou, há uma tela não emoldurada na parede, na qual se vê Adão
e Eva fugindo do paraíso perdido diante do gesto do Anjo que os caça
desprevenidos, nus e envergonhados. É uma colagem destinada a nos
ensinar o invisível, o pensamento do homem de olhos vazios. A
técnica não se perdeu desde então. Vocês conhecem o quadro de
Seurat, As modelos
[Les
poseuses],
em que três mulheres nuas no atelier do pintor, uma à direita
tirando as meias pretas, encontram-se ao lado do grande quadro d'A
Grande Jatte,
“citado” bem a propósito, para que a tela seja outra coisa que
não algo como um strip-tease. E Courbet, quando ele faz uma colagem
de Baudelaire num canto de seu Atelier,
hein? Assim também, em Pierrot,
Godard, antes de enviar a carta timbra-a com um Raymond Devos, como
havia feito com o filósofo Brice Parain em Viver
a vida.
Não se trata de personagens de romance, mas de sinais, para mostrar
como Adão e Eva foram expulsos do paraíso terrestre.
A magnífica cena de Pierrot le fou com a colagem do humorista Raymond Devos.
De
resto, se há nessa questão uma diferença entre Pierrot
e os demais filmes de Godard, ela está no que se pode considerar um
excesso. Já são muitos os anos em que essa técnica vem sendo
censurada ao autor d'O
Desprezo
e do Petit Soldat,
como uma mania de que esperamos que ele se livre. Os críticos
procuram desencorajá-lo e estão todos preparados para aplaudir um
Godard que simplesmente deixa de ser Godard, que faria filmes como
todo o mundo. A julgar por esse filme, eles não tiveram sucesso. Se
alguém deveria ser desencorajado, são eles. A ampliação do
sistema
de colagens em Pierrot
le fou
é tamanha que existem partes inteiras (capítulos,
como diz Godard) que não passam de colagens, como por exemplo, a
soirée mundana do início do filme. Mas não. Eles insistem, eles
reconheceram (porque Belmondo leva nas mãos o livro de Elie Faure)
que o texto com o qual começa a história, sobre Velazquez, é de
Elie Faure. Eles não entenderam bem por quê. Mais tarde, Pierrot lê
a recente reimpressão de Pieds
Nickelés;
Belmondo brande um livro da Série Negra para dizer “isso é que é
um romance!”. Rio-me, senhores: quando eu era criança, não me
diziam nada se me vissem lendo Pierre Louys ou Charles-Henry Hirsch,
mas minha mãe me proibia os Pieds
Nickelés.
O que aconteceria se ela me tivesse pego com L'Épatant,
onde Pieds
Nickelés
apareceu! Não sei o que nossos jovens blousons noirs, nossos
caçulas, pensam dessa história, mas para as pessoas da minha
geração que não perderam a memória a semelhança entre os Pieds
Nickelés e
os tipos da “organização” no jogo complicado em que está
enredado Pierrot salta aos olhos de tal maneira que todo esse negócio
toma, quando Belmondo lê os Pieds
Nickelés,
um sentido ligeiramente mais complexo do que parecia à primeira
vista.
Revista L'Épatant, com os Pieds Nickelés.
O
essencial não está aí: o essencial é que é preciso no fim das
contas ter em mente que as colagens não são ilustrações do filme,
mas que são o próprio filme. Que são a matéria mesma da pintura,
que não existiria fora delas. Por isso, todos os que persistem em
considerá-las como um troço qualquer farão melhor se mudarem o
disco no futuro. Vocês podem detestar Godard, mas vocês não podem
pedir-lhe que pratique outra arte que não a sua, a flauta ou a
aquarela. É preciso ver que Pierrot, que não se chama Pierrot e que
grita a Marianne: Eu
me chamo Ferdinand!,
encontra-se exatamente ao lado de um Picasso, que mostra o seu filho
(Paulo criança) vestido de Pierrot. E em geral, a multiplicação
dos Picasso nas paredes não se cinge ao desejo que J.L.G. pudesse
ter de ser tomado por um expert
quando se vende Picasso nas Galerias Lafayette. Um dos primeiros
retratos de Jacqueline, de perfil, está lá para, um pouco mais
tarde, ser mostrado de cabeça para baixo porque no mundo e no
cérebro de Pierrot tudo está upside
down.
Sem falar da semelhança dos cabelos no retrato, e as longas e doces
mechas de Anna Karina. E o fantasma de Renoir (Marianne se chama
Marianne Renoir). E as colagens de publicidade (houve
a civilização grega, a civilização romana, agora nós temos a
civilização do cu...),
produtos de beleza, roupas de baixo.
O cabelo de Jacqueline avec des fleurs (Pablo Picasso, 1954) e...
...as longas e doces mechas de Anna Karina em Pierrot le fou.
O
que se censura sobretudo em Godard são as colagens faladas: tanto
pior para quem não sentiu em Alphaville
(que não é o meu filme preferido do autor) o humor de Pascal citado
da boca de Eddie Constantine diante do robô que o interroga. Há
quem o censura, de passagem, por citar Céline. Aqui Guignol's
band:
mas se devo falar de Céline eu não terminarei mais. Prefiro Pascal,
sem dúvida, e eu não posso esquecer o que se tornou o escritor d'A
viagem ao fim da noite,
obviamente. O que não impede que A
viagem, quando
apareceu, tenha sido um baita de um livro bonito e que as gerações
posteriores que se perdem nele nos considerem injustos, estúpidos e
parciais. Somos tudo isso. São os mal-entendidos entre pais e
filhos. Vocês não os demoverão por mandamentos: “Meu jovem
Godard, é-lhe proibido citar Céline!”. E aí está: ele o cita.
De
minha parte, estou muito orgulhoso de ter sido citado (colado) pelo
autor de Pierrot
com uma regularidade que não é menos notável que a que o faz
esfregar Céline no nariz de vocês. Não menos notável, mas muito
menos notada pelos senhores, os críticos, ou porque não me leram,
ou porque isso lhes incomoda tanto quanto Céline, mas contra mim
eles não têm os argumentos que Céline lhes dá. Do que não lhes
resta senão irritação; e com o silêncio, a irritação ainda pior
de estar mudo. Em Pierrot
le fou,
um bom pedaço de La
mise à mort [desconheço
tradução desse romance de Aragon]...,
exatos dois parágrafos. Eu não conheço meus textos de cor, mas eu
os reconheço sim de passagem... na boca de Belmondo, o que me mostra
uma vez mais essa espécie de acordo secreto que existe entre esse
rapaz e mim sobre as coisas essenciais: a expressão já dada que ele
encontra em mim, ou em outro lugar, aí onde eu tive meus sonhos (a
capa de A alma
no começo de A
mulher casada,
Fábulas
admiráveis de
Maiakovski, traduzido por Elsa, em Os
carabineiros,
nos lábios da partiggiana que vai ser fuzilada). Depois que
Baudelaire colara em Os
faróis
um Delacroix,
Lac de sang hanté
des mauvais anges... [Lago
de sangue assombrado por anjos malvados],
o velho Delacroix lhe escreveu: Muito
obrigado por sua opinião favorável: devo-lhe muito também pelas
Flores do Mal; já lhe falei disso por aí, mas isso merece algo
mais...
Quando, no Salão de 1859, a crítica executa Delacroix, é
Baudelaire que responde por ele, e o pintor escreve ao poeta: Tendo
a felicidade de tê-lo agradado, consolo-me das reprimendas dos
outros.
Você me trata como somente se tratam os grandes já mortos. Você me
faz corar ao tempo em que me deixa contente: somos feitos assim...
Delacroix, lac de sang hanté des mauvais anges,
Ombragé par un bois de sapins toujours vert,
Où, sous un ciel chagrin, des fanfares étrangesPassent, comme un soupir étouffé de Weber;
Estrofe dedicada a Delacroix no poema Les Phares, de Baudelaire
Não
sei muito bem por que eu cito, por que eu colo isso tudo neste
artigo: tudo está ao inverso, com exceção de que, sim, nessa
pequena sala confidencial, escura, onde não havia ninguém mais do
que Elsa, quando escutei no filme essas palavras conhecidas, mas não
reconhecidas exatamente a partir da primeira, eu corei em meio às
sombras. Mas não sou eu que pareço Delacroix. É o outro. Essa
criança de gênio.
Vejam vocês como tudo se repete. O que é novo, o que é grande, o
que é sublime atrai sempre o insulto, o desprezo, o ultraje. Isso é
mais intolerável para um velho. Aos sessenta e um anos, Delacroix
conheceu a afronta, o que de pior havia naqueles que distribuem a
glória. Que idade tem Godard? Mas mesmo que o jogo estivesse
perdido, o jogo está ganho, que ele creia em mim.
Ao
escrever esse artigo, chegou-me um livro de um desconhecido. Ele se
chama Georges Fouchard, e seu romance, De
seigle et d'étoiles
[Sobre o centeio e as estrelas], o que é um titulo singular. Li-o de
uma sentada. Não sei se ele é objetivamente
um livro bom. Ele me tocou, de uma maneira estranha que faz lembrar
Delacroix. Sabe-se deste que todos os anos, com dois amigos (J.B.
Pierret e Felix Guillemardet), desde 1818, ele festejava o São
Silvestre ora na casa de um, ora na de outro. Imagina-se que essas
reuniões periódicas, das quais nos ficaram alguns desenhos de
Delacroix, figuravam esperanças, projetos, confidências,
discussões... Guillemardet morre em 1840, Pierret em 1854. Nem um
nem outro se tornaram grande coisa. Delacroix terminará sozinho sua
vida, sem seus amigos de juventude.
Ora,
em De
seigle et d'étoiles,
a história gira em torno de três amigos, Bouju, Gerlier e Frédéric,
que formaram uma espécie de trio, Mach
3,
como eles o chamavam. O romance é aquilo que esse trio irá e aquilo
que não irá se tornar. Tudo se repete, eu lhes digo. A anedota
varia, é tudo. Sua juventude, jovens, é ainda a minha. E Bouju
escreverá, quase ao fim, essa carta, esse desespero de carta, porque
depois de tudo Mach
3
são simplesmente três pobres tipos não adaptados. É engraçado
esse número três, para Delacroix, para mim. E Bouju escreve mesmo
assim, sem dúvida para optimizar,
como ele diz... Que idade tem Bouju, nesse momento? Fouchard tem
trinta e cinco anos quando aparece seu primeiro
romance,
como ele roga que se mencione. Menciono. Mas Bouju, que se intitula o
fanfarrão do Anti-Sistema
diz ainda: Vinte,
vinte e cinco livros nós escreveremos se for necessário para
despertar o estalido que atiça sobressaltos nas multidões de todos
os países. Se você não entende, vá andar de bicicleta, para fazer
a panturrilha...
Que
relação tem isso – que me parece algo como uma retrospectiva do
destino de um Rimbaud – que relação tem isso com Pierrot
le fou,
com Godard? Quantos filmes já tem Godard? Somos todos uns Pierrot le
fou, de um jeito ou de outro, uns Pierrot que se colocaram sobre a
estrada de ferro, esperando o trem que vai esmagá-los e que correm
no último segundo, que continuaram a viver. Quaisquer que sejam as
peripécias de nossa existência, que ela se pareça ou não uma com
a outra, Pierrot vai se fazer explodir, mas no último segundo já
não o desejará mais. Vejam vocês que tudo o que digo parece muito
aleatório: e esse romance que chega aqui como uma flor... Se eu
tivesse tempo, eu lhes explicaria. Eu não tenho tempo. Nem o gosto
por optimizar.
Porém, talvez, posso ainda lhes dizer que, tanto pior para o que nós
éramos e para o que nos tornamos, o tempo simplesmente passa, num
dia encontramos um Godard, no outro um Fouchard. Pela rima ruim. E,
olha só, tudo se parece, tudo se parece terrivelmente, e tudo se
repete, mesmo que não dê em nada, mesmo que não dê em nada. Nada
acabou, outros refarão o mesmo caminho, muda apenas a data, e tudo
se parece.
Queria
falar da arte. E só falei da vida.
Fim.
sexta-feira, março 30, 2012
Tes yeux
peints en mystique orientale
presque vivants déjà morts
comme l'Idée eternelle qui hante
je les suis tombés
par terre
presque vivants déjà morts
comme l'Idée eternelle qui hante
je les suis tombés
par terre
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