sábado, agosto 25, 2012

Notas sobre o Desejo em Barthes


o livro faz o sentido, o sentido faz a vida
Roland Barthes

I
Na metafísica da República platônica, o caminho do saber se faz para o alto, em direção ao conhecimento mais importante, o do bem, cuja figura é o sol que projeta as sombras nas paredes da caverna. Há, porém, um momento em que o filósofo deverá sair dessas alturas para voltar ao solo, à partilha da vida comum na cidade com a experiência de seu saber. Esse retorno não seria também o retorno do leitor de seu espaço confinado – o gabinete do narrador da Recherche proustiana - à vida dos afazeres mundanos? Mas, tendo experimentado a partir de uma abolição do mundo todos os prazeres da leitura, o que disso resta ao leitor que se revê no meio dos turbilhões da vida?

De outro modo, o que há além do livro? Ou, é Barthes que o pergunta: “por que não continuamos um livro?”. Giorgio Agamben, apoiado sobre a poesia medieval e sobre Valéry, já se colocou a questão do fim do poema e do fim do verso. Segundo ele, o que marca a especificidade da poesia é o enjambement, definido como uma cisão entre o som e o sentido, uma não-coincidência fundamental entre o fim de um conjunto sonoro e semiótico – o verso – e de um conjunto semântico – a frase. Disso ele conclui que o fim do poema, no momento em que o enjambement não é mais possível, faz o leitor se abismar sobre o silêncio, sobre uma queda infinita.

Essa precipitação do leitor, devemos limitá-la ao fim do poema? Ora, é também pelo infinito (e pelo retorno à história) que Barthes define o gozo para além do livro: “de parte a outra, a escritura-leitura se expande ao infinito, compromete todo o homem, seu corpo e sua história; é um ato de pânico, cuja única definição segura é que ele não se detém em lugar nenhum”. Saindo da verticalidade das alturas e dos abismos, é dessa expansão infinita e horizontal que nos ocuparemos agora.

II
Uma inundação das rotas que conduzem à cidade isola um jovem estudante de medicina na fazenda de seu primo. Para poder trocar algumas palavras com a família do peão, o estudante se põe a ler-lhes o Evangelho segundo Marcos, com o que ele ganha o interesse deles. Tendo curado uma pequena cabra com comprimidos, ele ganha também o seu respeito. As chuvas continuam, e a família lhe pede novamente a leitura do mesmo Evangelho. No fim, chegando o bom tempo e o dia de partir dali, o jovem é arrancado de sua cama e maldito pela família. Fora da casa, vê uma cruz que foi levantada para si.

Eis, grosso modo, a trama do conto O Evangelho segundo Marcos, de Jorge Luís Borges. Pode-se ver que o escritor desenvolve aqui, numa escala menor, porém mais intensa, a experiência da leitura que já conhecemos com Dom Quixote ou com Emma Bovary. Longe de abandonar o texto à esfera do separado, esses leitores se deixam marcar por ele, atravessar seus corpos por sua letra, a fim de se expandir do fim do livro à história do qual eles fazem parte.

Se com a leitura clandestina, separada, do narrador proustiano de que fala Barthes, a gente o identifica com o sujeito amoroso ou com o sujeito místico que abole o mundo, com a leitura transbordada de nossos peões, a gente os identifica com o sujeito esquizofrênico que não abole, mas retoma o mundo, o mundo, porém, sob o modo de sua abolição. Esse leitor lunático se vê tomado a um só tempo pelas “três vias pelas quais a Imagem da leitura pode capturar o sujeito que lê” - a saber, a leitura metafórica ou poética, a leitura metonímica e a leitura condutora do Desejo de escrever.

De início, o texto libera uma máquina de leitura metonímica que avança ao longo do livro, gozando o seu suspense, mas que não pode se deter no fim. Essa máquina se precipita, assim, além do livro, em direção ao infinito da história, com seu corpo novo – porque o gozo lhe é constituinte. Retomando o mundo e mantendo o suspense, nosso leitor sentirá na sequência a necessidade de o metaforizar, para ultrapassar as categorias enrijecidas da realidade e da língua comuns. Digamos: contra o fetichismo que conserva as coisas tais como elas são, essa máquina opõe um fetichismo violento que procura se substituir ao primeiro, dando uma nova roupagem ao – ou despindo o - mundo. E eis aí Dom Quixote fazendo de moinhos gigantes; Emma Bovary fazendo seus amores sucederem-se e substituírem-se um ao outro; o jovem médico, após a cura da cabra, visto como o novo Jesus Cristo. Após ter sido atravessado pelo texto, o próprio leitor perfura o mundo, fazendo deste o espaço privilegiado de sua aventura pessoal.

Perfurar o mundo: a experiência ocidental da escritura é justamente aquela da inscrição - “para o escriba ou o copista ocidental, preparar-se para escrever é talhar sua pluma (gesto agressivo, predator, despedaçante)”, segundo Barthes. Se a terceira via que caputra o sujeito que lê é aquela do Desejo de escrever, e se, no fim do livro, não encontramos mais o limite entre o livro e o mundo (relembremos a máxima mallarmaica: “tudo no mundo existe para chegar ao livro”, e vice-versa), podemos então dizer que desejar a escritura/inscritura do mundo, como fizeram esses leitores esquizofrênicos, é também uma forma de ser capturado pelas Imagens da leitura.

III
Ironia assustadora: um texto cujo pacto ficcional demanda do leitor o reconhecimento de sua verdade, como o do Evangelho segundo Marcos, pode aguentar essa verdade? Ou nos incumbe proteger o texto de si mesmo, criando espaços separados, gozos vigiados, interpretações autorizadas? É claro que a experiência dos nossos leitores esquizofrênicos é uma experiência limite, mas o perigo que toda escritura oculta em si nunca passou despercebido pelas diferentes forças da censura, desde a expulsão dos poetas da República platônica até os meios de controle do mercado, do direito de autor e das instituições legitimantes do discurso crítico. Ou seja, o leitor esquizofrênico é a figura hiperbólica de uma possibilidade fundamental da leitura, aquela da letra constituinte do sujeito.


Barthes nos diz, no fim de suas observações sobre o Desejo: “para mim, minha convicção profunda e constante é que nunca será possível liberar a leitura se, no mesmo golpe, não liberamos a escritura”. Ele se preocupa aqui da produtividade do texto, ao constatar que em nossa sociedade, de consumo, não de produção, “tudo está feito para bloquear a resposta”. Do que se trata esse bloqueio? Poderíamos aproximá-lo à “separação consolidada” de que nos fala Guy Debord? Isola-se o texto literário por sua ficcionalidade, separando-o da vida, para evitar o perigo de sua produtividade no Desejo do sujeito que lê. Relega-se a literatura, e a arte em geral, a uma estética pura, um prazer anódino ligado ao esquecimento da vida real, aquilo que se aprecia nos momentos de descanso, para que se possa voltar ao batente como se nada tivesse acontecido – a “prática confortável da leitura”1.

Porém, se o postulado de que a leitura esquizofrênica guarda em si uma das possibilidades fundamentais da leitura, a da constituição do sujeito pela inscrição, é correto, em qual medida podemos considerar que essa leitura confinada (enfermé), confirmante da cultura tal como é, sem reviravoltas e crises, é, ela mesma, parte da constituição do sujeito? Debord pode nos dar um caminho: “a realidade considerada parcialmente se desdobra na sua própria unidade geral enquanto pseudo-mundo à parte, objeto unicamente da contemplação. A especialização das imagens do mundo se vê, cumprida, no mundo da imagem autonomizada, em que o mentiroso mentiu-se a si mesmo”. Ou seja, é a separação (ou a autonomização) das imagens da literatura ou da arte que o leitor guarda e traz ao mundo. Assim, o mundo é percebido como separado de si, a quem só resta a contemplação ou a crítica ranzinza do homem honesto. Vê-se aqui de novo o retorno ao mundo sob a forma de sua abolição. Mas uma abolição não-viva, totalizante como realidade dada, independente do sujeito. O sujeito, aqui, se constitui pela assunção da separação; aquilo que Walter Benjamin chama de “estetização da política”.

Embora essa leitura tenha sua produtividade, a da reprodução da cultura corrente, é a aventura pessoal da escritura-inscritura, da precipitação no abismo, a do próprio gozo, que lhe falta. Essa aventura, nós a encontramos no narrador proustiano – cujo enredo é também uma espécie de Bildungsroman de um escritor que se escreve ao se criar pela leitura – e nossos leitores lunáticos. É a aventura da perfuração do mundo.

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1Essa é também a forma da recepção da literatura que Barthes atribui a uma tal Sociedade dos Amigos do Texto“chatos-boys [casse-pieds] de todo tipo, que decretam a forclusão do texto e de seu prazer, seja por conformismo cultural, seja por racionalismo intransigente (que suspeita de uma “mística” da literatura), seja por moralismo político, seja pela crítica do significante, seja por pragmatismo imbecil, seja por parvoíce burlesca, seja pela destruição do discurso, perda do desejo verbal”.