sábado, fevereiro 28, 2009

Juó Bananére

Juó Bananére é o pseudônimo de Alexandre Marcondes Machado, poeta da época premodernista que conviveu com os imigrantes italianos que vieram morar em São Paulo, nos bairros do Bom Retiro, do Brás e do Bexiga.

Escreveu poemas no dialeto dos imigrantes, parodiando grandes autores da época - como Olavo Bilac e Machado de Assis - além do futurismo de Marinetti e até Edgar Allan Poe. Seu único livro chama-se La Divina Increnca, em referência a Dante.

Me apresentou o Juó o Chrysantho, ao que parece de notícias havidas de João Rosa. O poeta é uma pérola, a quem até o Otto Maria Carpeaux dedicou um estudo. O Juó foi, em 1912, a escolha de Annibale Scipione (nada menos que Oswald de Andrade, que mais tarde demitiu Juó porque Andrade era amigo de Olavo Bilac (!), que Bananére parodiava) para substituí-lo no hebdomadário O Pirralho. Scipione também escrevera no dialeto macarrônico, porém Juó inovou mesmo, em relação ao antecessor, nas suas paródias poéticas, com versos com bom ritmo e rimados, sem, no entanto, o endeusamento dos versos nobres e da linguagem esotérica de que se utilizavam os parnasianos. Aliás, é justamente na questão da linguagem que se centra toda a poética bananeriana: o macarrônico impõe a comicidade, não há efeito sério que se possa, na primeira aproximação ao poema, extrair dos seus textos. O melhor exemplo é a paródia d'O Corvo, de Allan Poe. O poema do americano tem toda uma estrutura montada para o efeito sombrio que percorre o poema, além do tema sorumbático que emerge da morte e da imagem negra do corvo. Em Bananére, tudo se resolve no corriqueiro, e ao efeito cômico do macarrônico soma-se a alusão a Poe, que quebra as expectativas taciturnas quando o poeta recebe o gorvo expansivamente, tendo nele reconhecido seu amigo Raule. O nevermore de Poe é o da irreversibilidade da morte; o nunga maise de Bananère é o da vergonha, raiva ou decepção do gorvo!

Segue o poema que parodia Allan Poe:

O Gorvo
P'ru Raule

A NOTTE stava sombria,
I tenia a ventania,
Chi assuprava nu terrêro
Come o folli du ferrêro.

Io estava c'un brutto medó
Lá dentro du migno saló,
Quano a gianella si abri
I non s'imagine o ch'io vi!

Un brutto gorvo chi entrô,
I mesimo na gabeza mi assentô!
I disposa di pensá un pochigno,
Mi dissi di vagarigno:

_ Come vá sô giurnaliste?
Vucê apparece chi stá triste?
_ Nos signore, sô dottore...
Io stô c'un medo do signore

_ Non tegna medo, Bananére,
Che io non sô disordiére!
_ Poise intó desça di lá
I vamos acunversá.

Ma assí che illo descê
I p'ra gara delli io ogliê
O Raule ariconecí,
I disse p'ra elli assí:

- Boa noute Raule, come vá!
Intó vuce come stá?
Vendosi adiscobrido o rapaise,
Abatê as aza, avuô, i disse: nunga maise!

quinta-feira, fevereiro 26, 2009

Rimer

Por Ambrose Bierce

The rimer quenches his unheeded fires,
The sound surceases and the sense expires.
Then the domestic dog, to east and west,
Expounds the passions burning in his breast.
The rising moon o'er that enchanted land
Pauses to hear and yearns to understand.

Rimador
Tradução minha

Sacia o rimador seu fogo oculto,
Suspende-se o som, o sentido é vulto.
O cachorrinho então a tudo canta,
De seu peito a paixão a voz levanta.
Sobre a terra encantada a flutuar,
Pra entender, para pra ouvir o luar.

segunda-feira, fevereiro 23, 2009

Rei primevo

Plebeus, que vos envergonhais do nome,
Porque sem honrarias o carregais;
Plebeus, por quem morro quando carcome
A praga a lavoura que cultivais;

Plebeus, os primeiros que mata a fome
Se nos faltam chuvas torrenciais;
Se da planta não tirais o que se come,
Se morrem nos campos os animais.

Plebeus, não invejais minha distinção!
Sou rei, súditos sois: qual privilégio
Tenho, se todo mal é crime régio?

Sois isentos de toda imputação!
A desdita fortuita é falta minha.
Devo morrer, pois culpa, só eu a tinha!

tradição

hoje leio cinquenta páginas de Heráclito
de quem dez não restaram
hoje tenho nos dedos a Bíblia
que é as colunas de uma biblioteca imensa
o nome da voz no deserto era João
que a tantos Joões designa
e Homero que somente a um chama
é o poeta de toda a poesia

quarta-feira, fevereiro 18, 2009

Versos estoicos e neoestoicos

Enriqueces; e daí? Quando morreres, a riqueza por acaso
te seguirá ao te arrastarem para o túmulo?
No juntá-la gastaste o teu tempo de vida; não poderias
pagar por ela preço mais exorbitante.


Paladas de Alexandria (séc. IV a.C.)

Si no temo perder lo que poseo,
ni deseo tener lo que no gozo,
poco de la Fortuna en mí el destrozo
valdrá, cuando me elija actor o reo.

Ya su familia reformó el deseo;
no palidez al susto, o risa al gozo
le debe de mi edad el postrer trozo,
ni anhelar a la Parca su rodeo.

Sólo ya el no querer es lo que quiero;
prendas de la alma son las prendas mías;
cobre el puesto la muerte, y el dinero.

A las promesas miro como a espías;
morir al paso de la edad espero:
pues me trajeron, llévenme los días.


Francisco de Quevedo (séc. XVI/XVII d.C.)


Quem por desgraça se casou com mulher feia
vê o escuro da noite quando acende as lâmpadas.


Paladas de Alexandria

Muy discretas y muy feas,
mala cara y buen lenguaje,
pidan cátedra y no coche,
tengan oyente y no amante.
No las den sino atención,
por más que pidan y parlen,
y las joyas y el dinero,
para las tontas se guarde.
Al que sabia y fea busca,
el Señor se la depare:
a malos conceptos muera,
malos equívocos pase.
Aunque a su lado la tenga,
y aunque más favor alcance,
un catedrático goza,
y a Pitágoras en carnes.
Muy docta lujuria tiene,
muy sabios pecados hace,
gran cosa será de ver
cuando a Platón requebrare.
En vez de una cara hermosa,
una noche, y una tarde,
¿qué gustos darán a un hombre
dos cláusulas elegantes?
¿Qué gracia puede tener
mujer con fondos de fraile,
que de sermones y chismes,
sus razonamientos hace?
Quien deja lindas por necias,
y busca feas que hablen,
por sabias, como las zorras,
por simples deje las aves.
Filósofos amarillos
con barbas de colegiales,
o duende dama pretenda,
que se escuche, no ose halle.
Échese luego a dormir
entre bártulos y abades,
y amanecerá abrazado
de Zenón y de Cleantes.
Que yo para mi traer,
en tanto que argumentaren
los cultos con sus arpías,
algo buscaré que palpe.


Francisco de Quevedo

segunda-feira, fevereiro 16, 2009

Pela poesia

Perguntei outro dia: poesia para quê? Se for para dar ao mundo covardes e tiranos, de que serve?

Quem concorda com a pergunta, que já traz em si a resposta de que não serve para nada, e ainda é prejudicial, é porque não refletiu muito sobre covardes e tiranos. Postula-se desde sempre que é melhor não contar com covardes e tiranos, mas tal posição – que é a posição mais cômoda de se tomar – é a de quem à face de um covarde é um tirano, e à vista de um tirano é covarde.

Não se pode negar que tiranos erigiram monumentos históricos que definiram nossos rumos, e muito menos que monumentos da espécie não nos admirem. Tiranos são expressões individuais de uma consciência de época: eles não emergem do nada e contra todos. Pelo contrário, há uma corresponsabilidade de todos na sua existência. Não temo em dizer que existe hoje um tirano no mundo de que não desconfiamos, porque compactuamos com sua tirania – e isso subtrai ao nosso juízo o a possibilidade de julgá-la como tirania. Pode-se tratar de uma totalidade que com mais ou menos violência se impôs acima de suas negações ou pode-se tratar desta ou daquela pessoa, ou o que seja. Tal afirmação posso fazer com pouca pugna, entretanto nomear o tirano é mais difícil, pois também sou produto do nosso tempo.

Com a eventual objeção de que no meu texto anterior citei nomes, identifiquei tiranias com este ou aquele, concordo, pois tratava especificamente da poesia e do poeta, como tratarei novamente mais adiante. Chamar uma totalidade, uma conjuntura, um estado de coisas de tirania seria outra coisa? É outra coisa, com efeito, mas o ponto específico da argumentação do parágrafo anterior permanece intacto: a diferença entre um e outro não é da natureza da totalidade, mas apenas que este ou aquele estado político de coisas (a totalidade) se pode identificar com um nome, enquanto outros são mais impessoais. O nazismo não é Hitler: é um povo, um espaço e uma época inteiros. Aliás, nem alemão o nazismo é, toda a Europa - diz-nos isso, por exemplo, o caso Dreyfus na França, ou, na ficção, Leopold Bloom em Dublin - era xenófoba à época (e é hoje): seu horror com o holocausto é o horror de quem se olhou no espelho e, assustado com o que viu, quebrou o espelho. Nem o helenismo é Alexandre, nem a cruz é César, nem a inquisição é o papa, nem a democracia liberal é... quem? E aí está a nossa covardia perante o tirano: a esquerda, por exemplo, prefere simplesmente negar Stálin, e muitas vezes o próprio comunismo, e assim nega que um tirano tal tenha emergido dela. O fato é que Stálin é filho do marxismo, direta ou indiretamente, mesmo que por vias bastante oblíquas; quando a esquerda o nega nega a própria responsabilidade de evitar novos Gulags. A direita admite aos poucos discursos como os ambientais: mas tem coragem de admitir que desenvolvimento e meio ambiente são inconciliáveis, ou que a fome na África e a aniquilação indígena americana se dá sob sua bênção? Você que me lê também nega a violência que há por trás da democracia liberal na condição de discurso total: você é um covarde.

Por outro lado, frente ao covarde somos tirânicos. Porque não se pode admitir a força da palavra recolhida na sua própria discrição: há que se exigir a ação. Porque frente a tudo uma posição tem que ser tomada, e na hora que se a pede. Por que o medo da teoria e das reflexões e da boa poesia? Sempre há o discurso de que aquele que porventura defende o comunismo tem que aceitar dividir o próprio quarto, abster-se do consumo, pegar em armas e destituir governos. Destituir para quê, se nem sabe contra o que se deve lutar – e correr o risco de matar em nome do mesmo espírito que vige? A vantagem do covarde é que não caminha sobre os terrenos seguros da certeza do homem de ação. O covarde é pessimista: sabe que deve desconfiar dos consensos. O covarde é otimista: sabe que deve confiar no estudo e no ouvir o silêncio das coisas. Mas se exigirá dele, e quem o fará será o tirano que no parágrafo anterior era o covarde, que fale quando o silêncio é pertinente, que aja quando não há nenhuma articulação possível para ações. Para o covarde, o homem sozinho não pode agir, porque a articulação dos homens - no plural - é uma necessidade. Mas a articulação recolhe em si a potência da manipulação de massas: e assim o covarde se suspende sobre o abismo da incerteza – a sua covardia aos nossos olhos. Há a guerra e há a paz, e o covarde sabe que elas não se negam: interdependem-se, sua diferença harmoniza-se consigo mesma, e ele hesita sempre no conflito – Aquiles é heroi que vence Heitor, é heroi que perde Pátroclo.

E que isso vem a calhar à poesia? Por tudo que se fez constar, sabe-se que a poesia não faz de ninguém melhor. Porque desde há muito ela se desvinculou de qualquer necessidade pedagógica – ao contrário, por exemplo, dos poemas de Homero, elevados à sacralidade pelos gregos até que Arquíloco e sua lira a contestasse com nova totalidade, e então que Heráclito tirasse a voz dos deuses e das musas dos versos e neles identificasse o puramente humano: na poesia, na boa poesia, há o não-dito, o silêncio, as impossibilidades, a covardia, o conflito – o tirânico e seu contrário, sim e não. Por fim Platão, ao expulsar os poetas de sua República, não os expulsa, mas expulsa quem deles diz portarem a criação; a palavra é palavra na incompletude, por isso é sempre simulacro das coisas de seu céu ideal, resguarda sempre recessos de sombra. “Instituída em lugar do ausente, quem a toleraria na clara presença do que se declara?”, diz Donaldo Schüler.

Palavras não criam nada. Palavras não fazem de ninguém melhor. Diversamente pensam os cabalistas: no princípio era o Verbo. Deus cria com fórmulas verbais: fiat lux! - declara – e eis a luz. Na Torá tudo que existe está dito, o que revela que a linguagem tem natureza divina e pode dizer tudo. Interpretar a Torá é enveredar por um texto absoluto que encerra em si todas as coisas do mundo. O Golem nasce de fórmulas verbais de homens que aprenderam a dominar a criação, ou parte dela. A luz existe porque existe a palavra luz. Este seria o domínio dos poetas? O de criar, e fazer brotar da palavra a coisa, e não aquela desta? Se é, a poesia é perigosa. Toda letra na história da criação tem sua razão de ser, toda ela manifesta a natureza da divindade, e sua combinação é divina. A criação advém de tal articulação: mudá-la é criar monstros, aniquilar o tempo, inverter os espaços. O poeta tem uma arma na poesia: manejá-la é destruir o mundo. E quem pode nos garantir que a tristeza não seja obra dos poetas covardes? E a fome dos tiranos, os maus poetas? Escrevi certa vez, tentando imitar o estilo bíblico: “Eis que ao homem da terra só é dado escrever a Revelação que o anjo do Senhor inspira, jamais alguém poderá dominar a Criação.Vós, portanto, que com a tinta da vossas penas crieis mundos e homens novos em vossos papeis, sois indignos hoje, e abalados são os caminhos que vossos pés pisam pela ira do Senhor, Deus dos exércitos”.

Assim, além de não fazer de ninguém melhor, a poesia ainda pode modificar o projeto de Deus para o mundo, e é claro que sempre para pior, pois o poeta não pode ser perfeito. Ou seja, qualquer resposta que se dê tentando justificar a poesia contra a dúvida do seu para quê, ela será insuficiente. Como defendê-la, contra toda a evidência de que ela realmente não serve para nada?

A poesia não serve para nada, e pour si muove! Existe, apesar de tudo. E talvez existirá ainda, e talvez seja eterna. Se a poesia sobrevive ao seu para-quê e impõe-se contra toda acusação de sua inutilidade, é porque a pergunta em si precisa se justificar. Para que para-quês? Hannah Arendt perguntou uma vez: “a que é útil a utilidade?”, ou “de que serve a serventia?”. A poesia, portanto, serve para pôr em cheque a própria necessidade de justificar-se, ou ainda, fará com que nunca essa necessidade se satisfaça, para que o para-quê seja eterno. E com isso consegue nos colocar no abismo da incerteza, do desassossego, do conflito, ou nos angustia a tomar posições, a agir. Torna-nos cientes da nossa própria covardia frente ao já-sempre-sabido, e eventualmente nos impele a sermos tirânicos e fazer emergir uma nova totalidade, ou assumir explicitamente os nossos princípios silenciados. A poesia, seja na sua timidez, na sua discrição, ou na pobreza de sua grandiloquência, impõe-nos perguntas. Uns acham que as respondem, outros as multiplicam.

quarta-feira, fevereiro 11, 2009

Guerra antiga. Guerra nova.

É a guerra. E é a paz do mau augúrio,
que brotará no fim, quando esquecido
dessa memória injusta o corpo ido
do guerreiro que morre em campo fúrio.

Talvez não fosse, fosse o poeta lido,
o que dá ao morto a glória no perjúrio
ao fim brotada em paz de tempo espúrio
que assim se engana até novo conflito.

Mas fosse ao menos guerra... É a chacina.
É a paz que jamais brota, que mal veio,
é um homem a morrer e um que extermina.

E é sem rosto a cair no morticínio
e é sem nome a matar no bombardeio.
Sem poeta que canta no extermínio.

segunda-feira, fevereiro 09, 2009

Kaspar Hauser

Gaspar Hauser
Por Murilo Mendes

Ninguém mais pode escolher
A vida que lhe apetece.
Ninguém mais pode ser só:
As almas são reveladas
À luz de mil holofotes.

Em torno de mim se agita
Uma conspiração de olhares.
Vou tomar a carruagem,
Comunicam ao mundo inteiro.
Cheiro uma rosa - explodiu.
Só tive consolo e paz
No ventre de minha mãe.

A quinta-coluna que existe
Desde o princípio do tempo
Não me deixa respirar.
Sou sempre triste, no escuro.

Adeus universo padrasto,
Que rejeitas o inocente,
O órfão, o pobre, o nu.
Não acho irmandade em ninguém:
Morrendo, sou livre enfim.

Canção de Kasparhauser
Por Georg Trakl. Tradução de Cláudia Cavalcante.

Ele de fato amava o sol que descia a colina purpúreo,
Os caminhos da floresta, o canto do pássaro negro
E a alegria do verde.

Sisuda era sua morada à sombra da árvore
E puro o seu rosto.
Deus disse ao seu coração uma doce chama:
Homem!

Tranqüilo, o seu passo encontrou a cidade à noite;
O lamento sombrio de sua boca:
Quero tomar-me cavaleiro.

Seguiram-no porém arbusto e animal,
Casa e jardim crepuscular de gente branca,
E procurava-o seu assassino.

Primavera, verão e belo o outono
Do justo, seu passo leve
Pelos quartos escuros de sonhadores.
À noite ficava sozinho com sua estrela;

Viu que nevava em galhos nus,
E a sombra do assassino no tenebroso vestíbulo da casa.

Prateada, tombou a cabeça do não-nascido.

O enigma de Kaspar Hauser
Sinopse. Filme dirigido por Werner Herzog.

Kaspar Hauser é um jovem que foi trancado a vida inteira num cativeiro, desconhecendo toda a existência exterior. Quando ele é solto nas ruas sem motivo aparente, a sociedade se organiza para ajudar Kaspar, que sequer conseguia falar ou andar, mas este logo acaba se tornando uma atração popular. Baseado em uma história real.

quarta-feira, fevereiro 04, 2009

Ao acordar

a noite que não
existia existiu

Rio sem discurso

Por João Cabral de Melo Neto. Um poema heraclitiano.

Quando um rio corta, corta-se de vez
o discurso-rio de água que ele fazia;
cortado, a água quebra-se em pedaços,
em poços de água, em água paralítica.
Em situação de poço, a água equivale
a uma palavra em situação dicionária:
isolada, estanque no poço dela mesma,
e porque assim estanque, estancada;
e mais: porque assim estancada, muda,
e muda porque com nenhuma comunica,
porque cortou-se a sintaxe desse rio,
o fio de água por que ele discorria.
O discurso de um rio, seu discurso-rio,
chega raramente a se reatar de vez;
um rio precisa de muito fio de água
para refazer o fio antigo que o fez.
Salvo a grandiloqüência de uma cheia
lhe impondo interina outra linguagem,
um rio precisa de muita água em fios
para que todos os poços se enfrasem:
se reatando, de um para outro poço,
em frases curtas, então frase a frase,
até a sentença-rio do discurso único
em que se tem voz a sede ele combate.

terça-feira, fevereiro 03, 2009

Meu lirismo de funcionário

Certa vez, o bonde andando já há muito, disseram que leram essa coisa blog desde o primeiro texto. Outra vez, comentaram que gostavam muito de minhas crônicas. Houve tempos em que machuquei pessoas - minhas palavras infelizes.

Desde então tenho uma fantasia ideológica, daquelas que nos moldam e nos constitui, de que haverá sempre quem me leia. E talvez por isso tenho sido tão verborrágico. Mas se isso não for verdade, também não é providencial que me desenganem, pelo menos para que algo exista.

Sei da enorme falha que sou como gente - eu que sinto cumplicidade com a covardia de que falei outro dia. Mas também não me desminto nem me desculpo, e já anuncio: haverá um tempo, muito tempo depois de ter desistido dessas coisas, em que eu voltarei para ler todo grande erro aqui escrito (e uns poucos acertos). Nesse tempo, terei ao menos vocês para culpar!

Afinal, isto é um reduto de palavras órfãs que não assumirei.

The two trees

Por William Butler Yeats, poeta irlandês

Beloved, gaze in thine own heart,
The holy tree is growing there;
From joy the holy branches start,
And all the trembling flowers they bear.
The changing colours of its fruit
Have dowered the stars with merry light;
The surety of its hidden root
Has planted quiet in the night;
The shaking of its leafy head
Has given the waves their melody,
And made my lips and music wed,
Murmuring a wizard song for thee.
There the Loves a circle go,
The flaming circle of our days,
Gyring, spiring to and fro
In those great ignorant leafy ways;
Remembering all that shaken hair
And how the wingèd sandals dart,
Thine eyes grow full of tender care:
Beloved, gaze in thine own heart.

Gaze no more in the bitter glass
The demons, with their subtle guile,
Lift up before us when they pass,
Or only gaze a little while;
For there a fatal image grows
That the stormy night receives,
Roots half hidden under snows,
Broken boughs and blackened leaves.
For all things turn to barrenness
In the dim glass the demons hold,
The glass of outer weariness,
Made when God slept in times of old.
There, through the broken branches, go
The ravens of unresting thought;
Flying, crying, to and fro,
Cruel claw and hungry throat,
Or else they stand and sniff the wind,
And shake their ragged wings; alas!
Thy tender eyes grow all unkind:
Gaze no more in the bitter glass.

[Vê em teu coração, amada,/Ali a sagrada árvore cresce;/Da alegria brotam os ramos sagrados,/E todas as flores tremulantes que eles portam./As cores cambiantes de suas frutas/
Legaram às estrelas a espirituosa luz/A fortaleza de sua raiz oculta/Quieta na noite se plantou;/A vibração de sua copa de folhas/Deu às ondas sua melodia,/E casou meus lábios à música,/A murmurar a ti uma canção mágica./À sua volta os Amores fazem um círculo,/Os ardentes círculos de nossos dias,/Girando, rodando, pra frente e pra trás/Naqueles grandes caminhos de folhas ignorados/Lembrando aqueles cabelos tremulantes./E como as sandálias aladas se lançam,/Teus olhos crescem cheios de ternura:/Vê em teu coração, amada.///Não vejas mais na amara lente/Os demônios, com seus hábeis ardis,/Levantam-se ante nós quando passam,/Ou vê apenas por um breve momento;/Para isso, uma imagem mortal se faz/Que recebe a noite tempestuosa,/Raízes meio ocultas sob a neve,/Galhos quebrados e folhas enegrecidas./Porque tudo se torna ermo/Nos vidros trevosos que os demônios seguram,/O vidro de uma moda alienígena,/Feitos quando Deus dormia nos remotos tempos/Lá, pelos ramos quebrados, vão/Os corvos de alma incansável;/Voando, chorando, pra frente e pra trás,/Garra cruel e garganta faminta,/Ou então eles param e inspiram o vento,/E balouçam suas rotas asas, que pena!/Teus olhos ternos se enchem de maldade:/Não vejas mais na amara lente.]