sexta-feira, dezembro 26, 2008

Alteridade

sou-te a ti que sendo és-me
somo-los todos que nos são
e nos vivem quando foram
e nos morrem quando vão

és tu sendo de mim a parte
em que inteiro sendo sou
havendo és-me contra além
em que inteiro te anti-vou

oposto são do que nós somos
e exato o contra somos nós
somos eles que não nos são
sendo-nos eles o que sois vós

chamo-os de vós o nós de ti
é tanto ser que nos confundo
morrer-te-ão e viver-vos-emos
sendo-me todo em parte mundo

Desbocada

beijar-te, mulheres,
é beijar-me a própria boca.

quarta-feira, dezembro 24, 2008

Meme Literário?

Pediram-me que participasse de um Meme Literário e respondesse a questionamentos sobre algumas experiências minhas com a literatura.

Aqui, entretanto, tento evitar minhas memórias. Há, sempre há, mas é preciso literalizar. Deus me livre das minhas biografias, a menos que sejam mentirosas! A quem poderá interessar meu fascínio infantil por enciclopédias e atlas? Pra que dizer que o que me marcou a infância foram o volume 14 da Barsa de 1976 da casa da minha avó, um Atlas do Corpo Humano e o Guia dos Curiosos? Seria bem melhor dizer, qual um Stuart Mill, que li aos oito Esopo e Xenofonte no grego antigo, cujo alfabeto aprendera aos três. Porque, a ficar na verdade, além daqueles, meu primeiro hábito real foi com Agatha Christie - traduzida - e os seus homicidas do Assassinato no Expresso do Oriente. Talvez interessasse um pouco mais minha adolescência, e minha paixão pela Capitu, cuja fidelidade defendi ardentemente num júri em que a acusavam de trair Bentinho. E meu encanto pela poesia que veio de um poeta... parnasiano! Sim, era Raimundo Correa e o seu soneto Mal Secreto: Quanta gente que ri, talvez, consigo, guarda um atroz, recôndito inimigo como invisível chaga cancerosa! É, rio pelo que andei lendo esses anos todos, mas escondendo que todo o edifício da literatura me é inimiga oculta por ser intransponível. Hei de viver na interminável - e por tal sempre frustrante - Biblioteca de Babel, qual imaginada por Jorge Luis Borges, nome que está - e isso não é segredo a ninguém - no topo dos meus tops qualquer número. Todos os livros por ler são espinhos n'alma, e alguns lidos não se desencravaram: entranharam-se mais nas minhas dores. Seja porque me impõem o dever de serem relidos - os de sempre: Homero, Shakespeare, Joyce, Proust, Kafka... -, seja porque me dão a impressão da maior perda de tempo. Isso porque também não é segredo da minha desconfiança com a literatura urbana contemporânea, que queima um maço de cigarros por página. Se Caio Fernando Abreu desce corroendo as vísceras, os beatniks meio que entalam na garganta. Mas os que estão em atividade no Brasil..., livrai-me, senhor! Não posso agüentar três linhas do Marçal Aquino, Mirisola ou Mutarelli. Dos contemporâneos, então, fico com o Tezza, e com Oswaldo Martins, que, alardeado na sua desgraça, revelou-se agradável surpresa. Não. Melhor não falar das minhas memórias, que mal as tenho. E por ser sempre nisso falho, nas matérias da memória, tenho a terrível mania de querer retê-la sempre, como que cerrando os pulsos para segurar a água que escorre. Fico sempre tentando desenvolver algum jeito de salvá-la, e o mais recente foram os post-it's em tudo quanto é página. Como sempre, inútil.

Perdoarás, Daniel, mas não responderei o Meme Literário que me propuseste.

domingo, dezembro 14, 2008

O terceiro homicídio

Recebi um telegrama. Um encontro na Biblioteca Nacional, não num bar na Boca, como sói. É que desta vez é um ministro do Yrigoyen, recém eleito presidente pelo Partido Radical. Achei criativo o lugar do encontro; a Argentina sob os últimos liberais se apegou demasiadamente ao progresso, abriram escolas para refinar nossas crianças, impuseram a Buenos Aires o apelido de Paris sul-americana, cuja elegância se deve seguir ocultando a argentinidade dos portenhos. E assim também as letras, afetadas demais pela prosa francesa, e todos os cafés abarrotados de críticos e leitores cheios de razão – porque apenas repetem os jornais – e de pompa literária. Mas chega-se à biblioteca e tudo se desmancha, duvida-se do interesse argentino pelos livros no vazio de seus corredores, e confirma-se o escandaloso fato, que não é de bom-tom mencionar nesta Paris Meridional, do amor portenho pelo discurso frívolo, cheio de gestos e palavras de efeito.

Nada mais convinha, portanto, à discrição necessária ao meu trabalho e aos que me contratam que a Biblioteca Nacional. Levei meu pince-nez e minha barba intelectual. Uma tradução espanhola de Schopenhauer sob o braço. Schopenhauer é bom: se o vêem com ele sob o braço, terão medo de você, porque parecerá que realmente leu o filósofo, além de meramente o citar. Sentei-me a um canto, fingindo deleitar-me com a leitura. Pouco tempo depois o ministro chegava, ostentando um sorriso nervoso e um livro de Julián Martel. Tentou ser natural, cumprimentando-me como quem encontra do nada um amigo há muito perdido, e manteve esse sorriso o tempo todo, até que a esperança dos radicais parecesse mais verossímil que os dentes prodigalizados por aquela boca.

- Preciso dos seus serviços.

Sou assassino por encomenda, e tenho fama nas altas rodas. Não é segredo que estes tipos de sociedade trabalham de uma forma a segregar-se o máximo dos indesejáveis. As ruas da Recoleta são tão públicas quanto às da Boca, mas não se há de ver com freqüência o morador daquelas andando nestas, e os que vivem próximos ao Riachuelo sempre se sentem mais pobres e mais reles quando pisam nos bairros nobres. Dar conta dessa classe de indesejáveis não é meu trabalho, o sistema já funciona para isso. O meu trabalho é necessário quando os indesejáveis estão nas próprias altas rodas, ou ainda quando são das parcelas contíguas da pequena-burguesia portenha que se alimenta dos restos dos protagonistas sociais. Eu livro o mundo dos impertinentes aos planos privados de ascensão pública. Não sou mau, nem carrego a culpa nos meus ombros. Não passo de uma demanda, de uma necessidade do poder: sou apenas uma das rodas da engrenagem política. Tanto é verdade que não devo ser desconhecido das autoridades policiais. Mas minha prisão não interessa a muita gente; e minha morte exigiria outro igual a mim, mas não tenho notícia de concorrência em Buenos Aires.

- Bernardo Brenman é um empreiteiro de Tucumán. Há algum tempo me procurou oferecendo-me dinheiro. Entregou-me trezentos mil pesos semana passada. Em troca, devo direcionar os gastos da minha pasta para a sua empresa. Mas eu não posso fazer isso, compreende?

- Se ele pagou, você deve fazê-lo.

- O senhor não me compreende, ah ah. – riu alto para dar ares de conversa entre amigos. Ri também para sustentar o jogo – Eu aceitei o dinheiro porque tive medo. Naturalmente que aceitei porque gosto e preciso de dinheiro, ah ah, mas tive medo também. Parece que ele já tinha o mesmo esquema no tempo do Sáenz Peña. Ele já está muito bem familiarizado com os grandes nomes do país, não lhe seria difícil acabar com minha carreira, compreende?

- E o senhor quer que eu o mate, ah ah?

- Ah ah. O senhor é muito direto, ah ah.

- O senhor é quem disse que precisa dos meus serviços.

- O que é isso? Schopenhauer? Bem, seria isso sim.

- Matá-lo?

- O senhor fica com metade do que recebi. Eu preciso que não haja testemunhas da origem deste dinheiro. Então seriam três mortes.

- Mas ainda não compreendi por que o senhor simplesmente não cumpre o acordo.

- O senhor não vê que caso isso venha à tona seria o fim para Yrigoyen? Nosso presidente se elegeu depois de tanta luta popular, depois das greves, e de todo o acordão para a Lei Sáenz Peña. Não posso eu, pelas minhas necessidades monetárias, subtrair-lhe a legitimidade democrática. É preciso não dar poder de fogo aos liberais, o senhor me compreende?

- Perfeitamente. Quem deverei matar?

- Ah ah. O senhor me assusta. Pois bem: deverá matar o senhor Brenman; o senhor Ricardo Castillo Pérez, diretor da repartição responsável pelas concorrências nos gastos ministeriais, que também estava nas tratativas; e um funcionário de Brenman, cujo nome não sei, mas posso lhe indicar o lugar onde encontrá-lo.

- E como o senhor sabe que ninguém mais sabe do negócio?

- Porque todos precisam de discrição nestas horas. Brenman negocia pessoalmente nestes assuntos, não abre o jogo com ninguém nem delega essa função. Somente ele e aquele funcionário, de sua total confiança, estão inteirados no assunto. E é isso que me faz procurar o senhor, preciso da sua experiência e sua discrição. O senhor não pode me faltar.


Aceitei o trabalho. Deveria matar os três. Começaria, por óbvio, no funcionário público, pessoa menos notória, cuja morte não deixaria de sobreaviso os outros dois. Conheço esse tipo de gente: arrivista típico do serviço público, que prefere não dar as caras e assumir responsabilidades para ser sempre mera peça do fisiologismo estatal. Corporativista, carreirista, o que lhe importava era o salário e os meios de incrementá-lo, sem jamais ocupar o topo da hierarquia funcional para isentar-se de dedos apontando-lhe a cara. O homem estava no negócio por promessa de parte daquele dinheiro recebido pelo ministro, o que tornava fácil me aproximar. Fiz-me empregado da empreiteira de Tucumán, entrei em contato com sua repartição. Nem precisei insinuar, ele já me dizia que não era conveniente nos encontrarmos em seu trabalho. Sugeri – sabendo da sua recusa – o hotel onde eu estaria hospedado. Ele me convidou para seu apartamento em San Telmo.

Numa manhã de domingo, sob a névoa de uma Buenos Aires fria, era julho, fui visitá-lo. Morava com a mulher e um filho. Serviu-me café, medialunas e bolo com cremes. Fechamo-nos em seu living e comecei a perguntar sobre as perspectivas de contratos públicos, estradas novas, aumento da rede do metrô, portos por construir. Eu andava pela sala enquanto ele me expunha os projetos do Partido Radical para a Argentina. Parei para olhar um quadro de natureza morta, daqueles artistas que vendem na Plaza de Mayo, iguais a todos as outras telas de folhas e frutas e flores em vasos. Castillo Pérez não parava de me apontar as boas perspectivas para minha suposta empresa. Ele estava era entorpecido nas suas próprias perspectivas de dinheiro sujo, mal dava por mim atrás de seu sofá, puxando o garrote da manga para envolver-lhe o pescoço até o último sufoco. Caiu do sofá sobre a mesa de centro, xícaras se quebraram no chão. No que sua mulher entrou na sala, o mesmo arame impediu-lhe o grito, e a vida. A criança estava na cozinha, entretida em sua comida, que salguei com sonífero. Morreu na própria cama, por causa do travesseiro que pressionei contra seu rosto. A névoa da cidade dissipava e o sol vencia.

Uma semana depois, o ministro deu-me a notícia de que Brenman e seu funcionário estariam em Buenos Aires. Forneceu-me o endereço do apartamento do empresário na capital, na Rua Rivadavia, e disse-me que o funcionário ficaria em um apartamento dois pisos abaixo. Para encontrar Brenman, utilizei o expediente inverso do de Castillo Pérez. Fingi ser funcionário do ministério; aliás, o próprio Castillo Pérez. Fui diretamente à portaria de seu prédio, tarde da noite, anunciei meu nome e que precisava tratar de assuntos de seu interesse junto ao governo. Enquanto o porteiro subia para avisar o empreiteiro, envenenei seu mate. Pessoas que devem são fáceis de matar, pois Brenman de pronto aceitou me receber também em seu próprio apartamento. Quando abriu a porta, assustou-se com minha insígnia da Polícia Federal e minha arma. Avisei-o de que sabia de todo o esquema junto ao ministro, mas que estava disposto a negociar. Rapidamente me convidou a entrar. Quando se virou para me conduzir para dentro, encostei o cano em seus rins gordos e puxei o gatilho. Dei outro tiro à queima-roupa, Brenman já estava no chão, na altura de seu peito. Tomei-lhe as chaves e o tranquei ali dentro.

Desci dois andares para então dar conta da última parte do meu trabalho. Ninguém respondeu às minhas batidas na porta. Forcei a fechadura, a porta, aberta, cedeu. O apartamento estava vazio, nada mais havia que um espelho enorme na parede ao fundo do hall de entrada. Vasculhei todas as salas e quartos, e o que encontrei foi apenas um jornal com um anúncio marcado. O anúncio dizia que aquele mesmo apartamento estava disponível para alugar.

Precisava, no entanto, terminar meu trabalho. Não poderia manchar meu nome deixando-o por realizar. Certo de que nova audiência com o ministro seria tarde demais, pois logo descobririam Brenman, resolvi empreender algumas diligências para me informar rapidamente. Desci à portaria, o porteiro suava frio, respirava com dificuldades. Perguntei-lhe o que tinha, disse-me que estava mal do estômago. Nada soube dizer sobre eventual funcionário de Brenman naquele prédio. Sobre o apartamento do anúncio, falou-me que o imóvel já havia sido alugado por um senhor chamado Alfredo Ugarte, e que as chaves estavam na portaria aguardando sua chegada.

Algo não estava correto. Por um momento, temi que me enredassem numa caçada. Eu deveria matar alguém sem nome, cujo endereço era aquele apartamento. E aquele apartamento estava alugado a Alfredo Ugarte. Mas eu conhecia Ugarte, que certamente não era funcionário de nenhuma empreiteira. Ugarte tem nome e rosto, e bem familiares, ao contrário da vítima contra a qual fui contratado. De volta ao apartamento, olhei novamente ao espelho. O ministro precisava da morte de todas as testemunhas da sua corrupção e eu era o seu instrumento. Eu, com toda a minha fama, com meu nome, com meu prestígio no serviço sujo da política. Não houve falhas na minha trajetória, tudo fiz de modo que sempre os favores me fossem devidos, por mais dinheiro que me pagassem. Eu era protegido por meus feitos, que poderiam derrubar metade desta capital. Não era agora que eu falharia. Todas as testemunhas seriam mortas, bem como quis o ministro, que me pediu que eu não lhe faltasse. Havia, então, uma coisa a ser feita. Em frente ao grande espelho, toquei o cano da arma no meu coração. E agora puxarei o gatilho. Porque eu, Alfredo Ugarte, testemunha das corrupções portenhas, não posso pretender ser maior e mais longevo que a minha própria reputação.

sexta-feira, dezembro 12, 2008

No cárcere de Argel (revisado)

Acusado injustamente em minhas viagens de embaixada de D. João I pelo Marrocos, condenaram-me ao cadafalso em Fez. Diziam que a condenação de cristãos à morte superava em muito o número de seus crimes, mas creio que descortinavam nossas intenções por algum brilho oblíquo de nossos olhos. Os mouros, como cães prenunciando o dilúvio, têm alguma ligação com o inexplicável, um contato íntimo com divindades que mal podem compreender, eles apenas os sentem, todos estes milhares de Alás diferentes que parecem existir. Por milagres tais, na indizível leitura de seus cotidianos, sentem eles também todos os nossos desejos e nossas aspirações.

A notícia chegou aos meus ouvidos antes que as mãos do carrasco alcançassem meu pescoço, e minha pele corada pelo sol do deserto me deu a vantagem de ser um dissimulado mouro que empreendeu fuga pelas areias rumo a Argel, onde meu irmão comercializava linho e azeite. Já havia passado mais tempo no deserto que em minha própria casa, e, sem entretanto perder o fio da identidade que ainda era a minha, sabia as direções a tomar em meio as dunas eternamente cambiantes da eternamente desigual e injusta paisagem do Sahara.

Meti-me, na quarta noite, numa caravana de cameleiros mercadores que nada sabiam da minha sentença de morte. Sei que não deram falta por mim em Fez, tão banais eram as forcas, e sempre havia um novo cristão a perseguir em meu lugar na forma sangrenta que os mouros tinham de brincar. Assim, não havia ninguém em meu encalço, e, caso houvesse, vender-se-ia facilmente pelo ouro que carrego.

No vigésimo dia, já próximos ao litoral, fomos assaltados por bandidos com insígnias terrivelmente famosas. Os mercenários que nos acompanhavam deles deram conta, mas quando descobriram que dentre os mortos encontrava-se o filho dum emir não houve dúvidas em atribuir a culpa ao estrangeiro. Mal despontou no horizonte a guarda real fui amarrado. Tudo foi tão rápido que cheguei a Argel e antes que pudesse dizer palavra tive minha sentença de prisão perpétua decretada.

De todas as cidades da África, diz-se que nenhuma pena é mais cruel que a de Argel. Qualquer um que seja submetido à sua justiça preferirá o cadafalso de Fez, as fogueiras de Castela ou a antiga crucificação dos romanos. Mas eu ainda tinha a esperança de que a prisão perpétua, chegasse ao conhecimento do meu irmão, fá-lo-ia prontamente pagar meu resgate, e logo eu estaria na Lusitânia com os pés lá cravados para nunca mais sair. Ou então, enquanto vivo, sempre há a chance de fuga, eis que a prisão é inevitavelmente menos inexorável que a morte. Levaram-me à jaula num porão fedorento, onde passei a noite com um prato de comida que jamais pude identificar o que é. Dormi encolhido a um canto mais por cansaço que por oportunidade. Acordei com o sol batendo quente em meu rosto, a porta da minha cela aberta diretamente para uma rua repleta de azevinhos. Sonoras águas correm por aquedutos na sarjeta das ruas, larguíssimas e desoladas, embora incrivelmente belas. As pedras escuras que as pavimentam tem fina sintonia com o verde-escuro dos arbustos. Pontos vermelhos cá e ali das drupas pontilham as veredas pelas quais caminhava, de um cruzamento a outro, todos eles perfeitamente retos e amplos, cujos centros mantêm uma praça circular com fontes e coretos.

Ladeiam as ruas altos prédios com cúpulas de vidro e ouro, e minaretes com escadas externas em caracol. Todas as quadras tem um palácio assim no meio, rodeado de incontáveis casas: de uma esquina a outra se contam uns quinhentos metros de logradouro. O barulho da água a correr pelos aquedutos começou como um som agradável naquela época. Homens, sim, havia. Mas somente homens, não vi mulheres. O primeiro que cruzou por mim ao me ver baixou os olhos, com uma expressão que misturava comiseração e solidariedade em relação a mim. Todos andavam assim, e ainda andam, como que atordoados pela imponente cidade que a todos apequena.

Não é difícil descobrir por quê. Cada quadra tem suas casas e seu palácio ao centro, cada cruzamento sua praça, todas as ruas seus azevinhos e suas negras pedras polidas que ao fim da tarde refletem o sol diretamente em nossos olhos. E o céu acima é um invariável céu sem nuvens cujos astros descrevem rigorosamente a mesma trajetória todos os dias. Não há ventos, dilúvios ou tempestades de areia. Nem brisas, chuviscos e poeira. Não há mudança nenhuma na cidade, a não ser nos homens que perambulam por seu labirinto de ruas perfeitamente perpendiculares. Os dias aqui são demasiadamente homogêneos, de modo que perscrutar a memória de todos os anos vividos nesta cidade é ver nada além do mesmo imperioso dia. Como se eu, na velhice em que relato, desde meu derradeiro dia de fuga para Argel, tivesse vivido apenas este dia, ou um dia estendido em que a única mudança perceptível ocorreu em mim. E por pouco tempo até a resignação absoluta.

Mas não era só o tédio do tempo que arrasa os cidadãos desta cidade. Quando cheguei, os homens – um aqui e outro já lá longe, e depois de um tempo outro aparecia – andavam e andavam, todos aparentemente agindo por uma causa comum mas não partilhada, e todos tão centrados nesta causa que a máxima empatia era aquele mesmo olhar de comiseração, que logo aprendi a devolver na mesma medida. As casas das quadras não diziam nada, não pareciam oferecer nada, e aquele palácio ao centro tinha um ínfimo acesso por entre elas e era tão quieto e tão impassível que sua beleza passou a significar somente um desespero pela falta do viço que meus estereótipos me fizeram esperar de um palácio como aquele. Mas andava, como todos, à próxima quadra e ao próximo palácio e a próxima quadra e o próximo palácio eram ponto por ponto, sem pôr nem tirar, iguais ao que havia na quadra anterior. E assim a próxima e a outra e até hoje todas pelas quais percorri. Que podem ter sido a mesma: as ruas retas esconderiam um círculo disfarçado por – imaginei – um jogo de espelhos favorecido pelo sol que abrasa a nossa nuca.

A incrível composição da cidade e o absurdo que ela representa me fizeram desrespeitar a introspecção dos meus concidadãos. Instei um deles, com um chacoalho um tanto violento, a me dizer o que era aquilo. O homem foi de uma solicitude inesperada – e depois aprendi que todos deverão ser assim aqui, como eu próprio, e todos mais dia ou menos dia também serão interpelados com a mesma violência por algum neófito, e darão a mesma resposta que recebi. Perguntado onde estou, o que era aquilo, aquelas quadras, aquelas praças, aquelas ruas, aqueles palácios, o nome – a coisa mais inútil de se saber – daquela cidade, tudo ao mesmo tempo, respondeu-me placidamente:

- É novo aqui, bem-vindo. Ninguém deu nome a esta cidade, mas não se preocupe, tudo de que necessita nela você acha, em quaisquer destas casas. Elas são a nossa necessidade. Da cidade, há quem dela já saiu, ninguém sabe como. O que dizem é que se deve querer muito, e então se descortinará a saída. É isso que procuro agora. É isso que todos procuram, e é isso o que você provavelmente vai fazer.

Ali compreendi a prisão perpétua de Argel.

- Você é também um condenado? – perguntei.

- E também injustamente, por mais crimes que tenha feito ou que nenhum deles tenha algum dia perpetrado.

Pediu-me licença e continuou naquela efeméride do seu automatismo adquirido sem que o cego desejo de sair daquele lugar suspeitasse.

E o que pensei – agora o cego desejo era o meu – foi que bastava caminhar sem descanso. Se todos os cruzamentos fossem verdadeiramente iguais, teríamos que postular um espaço infinito na superfície da terra, o que é impossível. Este detalhe me engendrou o plano de centrar minha atenção peregrina justamente nos cruzamentos: o primeiro cuja distância do anterior fosse maior que a distância padrão do intervalo entre as esquinas seria o indicativo que a cidade não era a mesma, que não haveria próximo cruzamento, mas uma estrada, talvez especialmente curta, até a Lusitânia.

Por outro lado, o primeiro obstáculo para o meu plano não era a cidade, mas eu mesmo. O trabalho exigia que eu sobrevivesse, precisava de casa, banhos e comida. O meu interlocutor, porém, estava certo: cada casa tinha tudo que precisava. O banho com água quente, o carneiro assado (as coisas eram assim, não havia fogo), sucos e doces. Havia cama de penas e cachimbos e narguilés com fumos de vários aromas e ópio, que queimavam com as baforadas, sem que os fogueasse. Havia linho, tecidos das Índias, sal, pimenta, almofadas e até cítaras e flautas. Tinha em minhas mãos ungüentos de qualquer cheiro, óleo para os banhos, jóias de ouro e incensos calmantes, e pastas de ervas pra calos e feridas.

No entanto, a primeira coisa de que dei por falta foi o vinho, injúria dos mouros e sangue dos cristãos. Logo notei ausência de outras coisas. Quando quis entalhar madeira para ter uma bengala que me servisse de apoio nas andanças, não havia madeira nem ferramentas; quando quis marcar as esquinas por que já havia passado, não havia estiletes ou tintas; não havia palha ou papel para fazer fogo por fricção. A cidade estava a julgar que minhas necessidades eram só as que ela podia prover, nenhuma outra. Ou o meu amigo mencionara as necessidades em que pensamos quando esquecemos, na pressa de fugir, que temos outras.

Depois pensei que tanto quanto a comida e o banho, a mulher era uma necessidade ao homem. E não havia como tê-las: mulheres sofriam lapidações e não prisões perpétuas. Pensei assim, mas por ainda estar preso à minha realidade anterior. Naquela cidade, a mulher seria um estorvo à incessante busca pela saída. Busca que logo transformou esta palavra, outrora fonte de desvarios juvenis, numa vazia evocação que assemelhava todas as palavras: não as usava mais, se não para responder ao fortuito chacoalho de um novo cidadão, que, pela mesma vontade de não me desviar da busca, era rigorosamente a mesma que recebi nos meus primeiros dias. De modo que, já no hábito das quadras iguais, as palavras – mulher, deserto, Lisboa, Homero – significavam todas a mesma coisa: que tive uma vida fora dali. E se você lê estas linhas, não é porque as escrevo, mas porque alguém me resgatou nas lembranças do mundo e me traduziu numa forma em que ainda os significados existem.

E se compartilha dos significados, também imagina o tédio imenso do tempo aqui. O silêncio lá de fora aqui se tornaria ruído, e o meu silêncio seria chamado de barulho de água correndo nos aquedutos. Os dias só mudavam nas escolhas dos perfumes a usar, dos fumos a fumar e das comidas a comer. E também dos rostos com que se cruzar. Os rostos, mas não os olhares: sempre os mesmos olhares de quem partilha aquela mesma situação que era a minha, aquela solidariedade impotente que também se espelhava em meus olhos. Alguém poderia aventar que uma resignação far-nos-ia reunir, ser convivas de mesas, trocar histórias e fazer histórias naquela cidade. Enfim, mudá-la por nossa própria força e convivência. Mas ninguém era capaz disso: cada interação seria um passo a menos rumo à saída.

O que fiz por alguns dias, para tornar um diferente do outro, era imaginar coisas de que precisasse e que a cidade não poderia me dar. Imaginei espadas e cimitarras: mas ninguém precisa disso. Imaginei governos e regras: inúteis. Imaginei bibliotecas, o Pentateuco e o Livro de Jó, o Corão, as Mil e Uma Noites e a Odisséia: deleites frívolos ou inspiração para um fanatismo estúpido. Imaginei carros e camelos: mas eles encurtam o mundo e fazem perder sua dimensão. A cidade vencia ao me mostrar que nada além dela me servia. Mas quando pensei em minha família e em meus amigos, não consegui ver a inutilidade, e isso a cidade não tinha. Percebi que a cidade me dominava: me fazia viver, e só viver, para aceitar sua força sobre mim, sua imutabilidade indiferente a toda angústia que eu pudesse ter. Era claro: se não havia fogo e estiletes, tintas e ferramentas, era justamente para que ela se mantivesse sempre da mesma forma, e que eu não pudesse jamais mudá-la. E isso se confirmou quando vi que as plantas não eram vivas, mas uma imagem sólida e resistente aos meus golpes. O movimento era contra a cidade, que só se permitia o correr das águas e a sucessão da noite ao dia e deste àquela.

Mudei então minha estratégia. Primeiro resolvi entrar em um dos palácios, o que eu nunca pensara para não me desviar das ruas. A única coisa que havia em suas naves e seus vãos eram os ecos de meus passos. Passei tempos que julgo ser vários anos investigando cada sala (eram quinhentas, pelas minhas contas, provavelmente erradas) de dois palácios. E eram iguais, e eram vazios, e não escondiam a saída. Então atentei para a água dos aquedutos, cujo correr destoava da imobilidade da cidade. Pensei que se eu seguisse sua corrente, que era como ratos fugindo das embarcações naufragantes, alcançaria os muros e os pórticos da cidade. E foi incrível como não havia notado isso antes: as águas corriam ao redor das quadras. Os aquedutos jamais se comunicavam. E era inexplicável sua corrente: a cidade era perfeitamente plana, que força impelia as águas?

Não me restou senão voltar ao primitivo plano das andanças sem fim. As quais andei até hoje, vendo a cidade infinita parada na mesma hora em que cheguei. Eu é que não parei, envelheci. E hoje sinto - como os mouros sentiram os crimes que fiquei por cometer - que descobri a saída, e a quero muito. Mas sinto também que é meu último dia. O que no fim das contas é a mesma coisa.

quinta-feira, dezembro 04, 2008

Divulgación

Por Ernesto Sabato, tirado de Uno y el Universo. Tradução minha.

Alguém me pede uma explicação sobra a teoria de Einstein. Com muito entusiasmo, falo de tensores e geodésias tetradimensionais.

- Não entendi uma só palavra - me diz, estupefato.

Reflito uns instantes e logo, com menos entusiasmo, dou-lhe uma explicação menos técnica, conservando algumas geodésias, mas fazendo intervir aviadores e tiros de revólver.

- Já entendo quase tudo - diz meu amigo, com bastante alegria -. Mas há uma coisa que ainda não entendo: essas geodésias, essas coordenadas...

Deprimido, mergulho numa enorme concentração mental e acabo abandonando para sempre as geodésias e as coordenadas; com verdadeira ira, me dedico exclusivamente aos aviadores que fumam enquanto viajam na velocidade da luz, chefes de estação que disparam um revólver com a mão direita e verificam tempos depois com um cronômetro que têm na mão esquerda, trens e sinos.

- Agora sim, entendo a relatividade! - exclama meu amigo com alegria.

- Sim - respondo amargamente -, mas agora não é mais a relatividade.
Alguns frangos sofrem de síndrome de Estocolmo.
Marie