domingo, junho 29, 2008

Ode ao Corpo de Bombeiros da Nunes Machado (revisto)

No exato momento em que posto esta 'homenagem', uma sirene rompe as aparências da madrugada e me justifica.

Ó estridente grito, fúnebre presságio,
claro como o que canta a fanfarra
na alegria rasa das gulas oficiosas,
por que te anuncias, tão límpido,
na confusa hora da madrugada?

Hora sem tempo, tempo de nada:
negado do nada como se algo fosse.

Impregna teu breve som cada
segundo dos segundos que carregam,
por trás da inocência encantada
dos inocentes versos da Poesia,
a temida Aurora, a atroz Vigília.

Dedos rosa de luz? De sangue!
O que há para salvar do inevitável?

Tua sirene é uma gota de óleo
a pestear o quase infinito tanque
do Sonho, com a manhã da qual és
rubro e grave núncio, e na qual
me precipito com vivos ouvidos.

Buscas ossos quebrados mais reais
que meus amores notívagos demais.

Por mim, deixa que morram os que
se dão da convulsão nas tardias
horas dos dias a um luxo vulgar;
que morram como querem a Morte,
na qual, dizem, o Fim não está.

Pois que continuem a seu modo!
O Fim está é na morte do meu Sono.

Nada tenho com dos impertinentes
acidentes a ver o ânimo esvaído:
meu coração pelo que não cria
não sente; nem meus olhos marejam
pela vida que lá fora não vê morrer.

Antes eles, que o meu - e teu! - Sono,
que doces mãos ao menos me oferece.

Conquista

Mas me tiras a razão e queres que eu raciocine?
Balzac

o próximo passo
não tem medidas
nem há caminho
para teu regaço

Ser escritor

para que a cobiça consumasse
faltou-me um nome
faltou-me andrade

domingo, junho 22, 2008

Quando duas autoridades se amam

O Excelentíssimo disse à Excelentíssima:
- Vossa Excelência, [...]
Ao que esta replicou:
- Vossa Excelência, [...]
E quando se casaram, um ao outro, pedindo vênia para se manifestar:
-Amo a vossa douta e ilustríssima figura.
E o som se reproduzia no tímpano do que ouvia, [...] vossa douta e ilustríssima [...].
Um dia o Excelentíssimo deixou de ser tão excelente assim e teve de se contentar com o Vossa Senhoria. E como homem sem título, ousou dizer um "eu te amo" à Excelentíssima.

Mas ela não conseguia lhe ouvir.

Artigo Primeiro

As-Pessoas me disse que o céu era azul. Saí e vi o céu.
- Tens razão, o céu é azul.
As-Pessoas riu.
-Não, não, O-Ser. Agora o céu está cinza, não vês que as nuvens o cobrem?
-Aquilo são nuvens?
-Uhum.

[A positividade do direito passou a ser sinônimo de de certeza e segurança...]

E como eu quisesse dormir, As-Pessoas me levou à cama.
-Te cubras, eis que está frio.
E acomodei-me por sobre o cobertor macio.
-Não te cobres?
-Como não?
-Estás sobre a coberta.
-Acaso não estava o céu sobre as nuvens e estas não o cobriam? Não está o cobertor precisamente sob mim?

[Uma árvore cai na Amazônia e disso não se tem notícia. Para o direito, não se trata de um fato, simplesmente não ocorreu.]

As-Pessoas de novo riu.
-Eita, O-Ser! Tu tens idéias absurdas e inúteis. Cobrir é esconder-se. Esconda-te sob o cobertor como o céu se esconde além das nuvens.
-E isso me protegerá do frio?
-A ti sim. Ao céu não, que céu não sente frio.

[Artigo primeiro. O céu é azul
Artigo segundo. Toda rosa é rosa porque assim ela é chamada]

As-Pessoas saiu rindo. As-Pessoas sempre me ridicularizou. Eu tive medo.
-O que você quer ser quando crescer, O-Ser?
-Quero ser como As-Pessoas.
Foi o único momento em que As-Pessoas me deu razão. Senti-me bem com isso.

[Condeno tal com fundamento no artigo tal, parágrafo tal, inciso tal, alínea tal da lei tal.]
Um cadáver. Ah! Quantos e quais são os dias de horror e mediocracia não sentidos que me aguardam agora que te vejo cadavérica, lutando contra vermes? O que de mim destruirá o húmus que te consome e me condena? A mim antes de tudo, que mais te amo. Crueldade! Se pelo menos tudo desaparecesse, até mesmo o vil legado da boa lembrança, da tua boa lembrança, a possibilidade do que eu poderia ter sido se houvesse te protegido, meu bem. Como és linda, nem mesmo a Morte a separou da Beleza. Não mesmo, e, aliás, como de crueldade tudo entende, sua foice levou-te a ti e contigo tudo o que de belo há e poderia haver no planeta. Sim, os dias agora serão sempre cinza, porque o azul ninguém saberá ver. A música não será mais que o silêncio, e o silêncio nada mais que olhares impessoais e insuperáveis. Adeus, Transcendência!

Chora agora, homem! Chora também, mulher! Aproveitai, pois, as últimas horas de sentimento estocados em vós, que amanhã ninguém, ninguém há de se alegrar, ninguém há de chorar. Aliás todos seremos ninguém. Estamos condenados a beber dos venenos que levaram a minha linda que com os vermes jaz. E foram tantos, não é, meu bem? Vamos e bebamos, vamos perder nossa condição de homens e mulheres, de crianças e velhos, de casados e solteiros, de amantes e inimigos! Vamos todos sorver o trabalho, a petição, o poder, a posse, o requerimento em três vias com reconhecimento de firma, a produção, a curva de Philips, o superávit primário, o recurso extraordinário, a propaganda, o custo/benefí­cio, o dinheiro, a ginástica laboral, a gonorréia, a medida provisória que reajusta a alí­quota do imposto sobre a renda do prestador de serviço para 40%, a fábrica, a circuncisão, o cinto de eletrodos, a cópia autenticada, o reflorestamento, o beijo entre Gisele Bündchen e Leonardo de Caprio, a máquina digital de 456.98 megapixels, a.........

Hoje, eu vos declaro robôs e vos participo: a poesia morreu.

quinta-feira, junho 19, 2008

Só onde não há luz
sou bonito.
Onde não há ouvidos,
persuasivo.

Onde não há ninguém
sou heróico.
Na cama de solteiro,
erótico.

domingo, junho 15, 2008

protótipo para um soneto do perfume

primeiro
era uma paixão
de evocações:
sentia o seu perfume
e me vinha sua boca
e sua leve corcunda

depois,
as evocações eram
naturais;
me retinha na sua pele
e era eu os seus olhos
sentindo falta do seu perfume

por fim,
o cheiro me lembrava o perfume
e o perfume me lembrava o cheiro
sem dentes, lábios e garganta
sem você, inexpressiva,
que era só perfume, era só cheiro

comprei o frasco
e não a quero mais.

De sacanagens. Ou meros erros.

Por vaidade, adoraríamos crer que somos maus naturalmente. Mas, na verdade, é bem pior: nós nos tornamos maus sem saber, sem mesmo nos darmos conta disso. É difícil ser herdeiro de alguém sem desejar inconscientemente sua morte por este ou aquele motivo. “Em tais situações, apesar de nos conduzir um sincero amor pela virtude, mais cedo ou mais tarde, sem que se perceba, fraquejamos, e nos tornamos injustos e maus ao agir, sem deixarmos de ser justos e bons na alma” (Rousseau)
Gilles Deleuze

Sou um maldito filhodaputa, ele disse. Esperava ser absolvido falando-o. Mas os outros simplesmente concordaram, e não houve saída. Ele era mesmo um crápula, tendo feito tudo sem querer.

Mas ninguém faz o que ele fez sem querer, pensavam os outros. Que eram filhosdaputa iguais... Só que quando um dedo se levanta para apontar, é só para uma direção que ele aponta.

sábado, junho 14, 2008

Giancarlo Rufatto

Tenho um amigo cheio de frases de efeito. A última: "tsc tsc tsc, homem é tudo igual, cara, por isso que a gente tem filhos."

Às vezes dá uma inveja!

PS: Não concordo nem um pouquinho com esse lugar-comum.

Sonetos a Orfeu

Sólo quien ya elevó la lira
también entre las sombras,
puede expresar, vislumbrando,
la alabanza infinita.

Sólo quien comió con los muertos
de sua adormidera, la de ellos,
no perderá nuevamente
el más leve sonido.

Puede que el reflejo en el estanque
se nos esfume a menudo, pero
conoce la imagen.

Sólo en un mundo duplicado
se tornan las voces
eternas y suaves.

Rainer Maria Rilke, de Sonetos a Orfeu, traduzido ao espanhol por Otto Dörr Zegers.

quinta-feira, junho 12, 2008

Segue abaixo uma cambada de poemas bem antigos. O mais novo é de 2005.

Verdades

Não consigo
Não entendo
Não sirvo e
Não tenho.

Dispenso o conselho,
Despeço o espelho,
Arremesso o processo.

Não penso
Não venço.

Não cesso.

escrevo
porque
escravo

extremo
porque
libertário

mas tremo
es-pas-mo-di-ca-men-te
porque
a palavra liberdade
liberdade
não é

e no entanto,
na dor do homem que não quer viver,
as letras e símbolos justapostos,
infrapostos os versos e estrebilhos,
a pele e os olhos palavreados
- "liberdade!" "liberdade!" "vida!" -
à vida me impelem.

Minha morte

No dia em que a Tal à porta vier
Trazer-me à vida o último estertor,
Que último não sei se é – vou supor
Que coisas após há – faz-se mister

Atinar o que, morto, devo ser:
Corpo inerte em necrópole enterrado;
Ou, qual suicida, em não santo prado;
Ou em quinhão alheio apodrecer.

Mantenho o suposto: na morte, existo.
Se posto embaixo da terra, malquisto
Por este que morre será o coveiro.


‘Quero minhas partes todas ao vento’
É a minha condição de testamento.
Quero a alforria como cativeiro.

Minhas palavras

se as ouvires
a responsabilidade
é toda tua!


se não as quiseres
que farei eu?
o azar é todo teu.

domingo, junho 08, 2008

de pace

pulchras uideo
non autem habeo
pulchrarum uolo
nihilum solum

aliarum quoque
nihilum uolo
alias autem
ne uideo quidem

penso, logo

penso o céu limpo
ele pesa toneladas
e eu existo

como uma poeira
que teve sua vez
no dedo do sol

e deitou-se ao chão
sem fazer a menor
diferença

quarta-feira, junho 04, 2008

Postagem retirada porque, pensando bem, estava um lixo.

terça-feira, junho 03, 2008

O crime de Septimus

Os homens não devem cortar as árvores. Há um Deus. (Anotava tais revelações nas costas de envelopes.) Mudar o mundo. Ninguém mata por ódio. Torná-lo conhecido (tomou nota). Esperava. Escutava. Um pardal, pousado na grade em frente, piou "Septimus, Septimus", quatro ou cinco vezes, e, cascateando as suas notas, continuou a cantar, alto, com frescor, em palavras gregas, que o crime não existe, e, tendo chegado um outro pardal, cantavam ambos, com voz prolongada e penetrante, em grego, dentre as árvores do prado da vida, à margem de um rio onde passeavam os mortos, que a morte não existe.
Em Mrs. Dalloway de Virginia Woolf


Os escritores podem dizer que o crime não existe. E dirão. Colocarão, porém, na boca de um louco uma conclusão assim criminosa; e lançarão a pulga evitando a culpa.