quarta-feira, dezembro 12, 2007

O caseiro da chácara de Camaquã

Meu amigo João Falavigna jantou outro dia em minha casa. Há tempos que não nos víamos. Contou-me que o Rondinelli, caseiro de sua chácara, morrera há pouco. Simplesmente não acordou mais de seu derradeiro sono. Falavigna acredita, e eu concordo com ele, que a causa da morte não foi a parada cardíaca que consta do seu obituário, senão a falta de propósito para continuar vivendo. A sua história, a qual fiquei sabendo só agora, é extremamente curiosa e justifica plenamente nossa opinião. Aquele imperceptível Rondinelli ostentava um portentoso nome de policial ou de político, porém não passava de um discreto senhor de voz submissa e ombros encolhidos, de face circunspeta sob a inevitável calvície que ameaçava os cabelos nas entradas da testa. Na verdade, tamanha era sua discrição que sua figura só me tocou a memória em virtude de um estranho sotaque ítalo-castelhano que excedia, nessa estranheza, ao já extravagante modo de falar dos sul-rio-grandenses. Pareço descrever um mordomo vulgar, mas era isso que, no fundo, Rondinelli era. Essa peculiaridade arquivou-se em minha lembrança e foi suficiente para que eu pudesse associar toda a história ao seu protagonista.

Muito do que eu contar pode não ser a realidade, já que tudo que dele se sabe não veio de sua boca. Quem falou da vida do caseiro a Falavigna foi um dos filhos do Major Alcindo Garcez, um pica-pau da Revolução Federalista. Garcez parece ter salvado Rondinelli, maragato italiano que veio do Uruguai em busca de dinheiro, da sangüinária degola de Cherengue, e ainda ofertara ao mal-sucedido soldado o emprego de caseiro em sua chácara à beira do rio Camaquã. É o que se diz.

A gratidão – essa é a palavra-mestra – de Rondinelli foi infinita. A chácara em suas mãos estava seguramente nas melhores mãos em que poderiam estar. Há nela uma enorme casa, cheia de redes e camas, ornada com vários bibelôs cuja temática é a pescaria. Outra casa, mais modesta, é onde vivia Rondinelli com sua esposa, que conheceu em Camaquã mesmo. Um delicioso pomar, dois cavalos e o próprio rio a completavam. No princípio, Garcez ia de Porto Alegre ao sítio com assídua freqüência, muitas vezes acompanhado de amigos pescadores e da família para os churrascos de chão. Após a prematura morte da esposa de Rondinelli, suportada com singular indiferença pelo chacareiro, aliada à madureza alcançada pelos filhos do major, que trouxeram consigo o desinteresse pelas questões interioranas, a chácara passou a ser menos visitada. Passaram-se anos em que apenas Garcez, com rigorosa periodicidade quinzenal, ia à fazenda para matear com Rondinelli e pescar no rio Camaquã. E mesmo assim o afinco do caseiro era o mesmo, como se sempre esperasse as irrepetidas festas do passado. É que o seu trabalho era para o major, era a este que ele devia a própria vida. A ninguém mais. E não parecia fazer outra coisa: quando Garcez chegava o quarto estava arrumado, a geladeira cheia, o chimarrão pronto, a sela no cavalo, a linha no caniço, o anzol na linha, a grama cortada, as frutas colhidas, a lenha cortada e o fogo aceso contra a invernada. Rondinelli só não se dedicava à chácara quando ia a galope ao armazém na cidade jogar o truco ou o dominó e beber o mate com outros velhos senhores. Uma vez só, sob insistência do major, aceitou viajar ao Uruguai. Mas não achou ninguém de que pudesse se lembrar.

Num dia do ano de 1927, no entanto, Garcez, que tinha mais ou menos a mesma idade de Rondinelli, não veio. A realidade foi apenas pressentida pelo caseiro, mas solenemente denegada. Com uma semana de atraso do major, recebeu uma carta. Não a abriu: colocou-a sob a fruteira no centro da mesa de sua cozinha. Rondinelli não fugiu à rotina, tudo era detalhadamente realizado conforme sempre fora, com o cuidado que jamais faltou aos seus afazeres.

Falavigna, amigo também do major, convidado já das churrascadas que ele organizava, buscou comprar a chácara do espólio do ximango. Os herdeiros, dois filhos e uma filha, tinham já seus planos de vida, e o dinheiro valia mais que a propriedade. Marcos Garcez contou-lhe do caseiro, Rubens, seu irmão, levou-o ao sítio.

Meu amigo, devo dizê-lo, é uma pessoa extraordinária. Sua empatia é invejável, e essa deve ser a razão de ter conquistado tanta gente ao longo de sua vida. É um diplomata nato, embora seja apenas comerciante. Seu proceder para com o caseiro, como mostrarei a seguir, foi decisivo para a preservação dessa história, que pelo menos a mim impressionou muito.

Chegaram à chácara meu amigo e Rubens, homem exatamente oposto a Falavigna, bronco e de difícil lida, e o acesso foi de pronto franqueado por Rondinelli. Um pouco atordoado pela surpresa, o caseiro tratou de acomodá-los. Rubens praticamente dele não tomava conhecimento: falava ininterruptamente sobre o negócio que estava prestes a celebrar e mal ouvia as ofertas de mate ou café por parte de Rondinelli. À primeira trégua, o chacareiro fez a infeliz pergunta:

- Senhor, como bai seu papá?

Rubens ergueu-se com olhar ferino sobre o caseiro e bradou:

- Você só pode estar de brincadeira, uruguaio inútil!

E puxou meu amigo para fora para mostrar-lhe o rio. A cena bastante estranha foi geniosamente interpretada por Falavigna, que sabendo da história do caseiro a compreendeu sem maiores delongas. Então procurou não unir novamente Rubens e Rondinelli, para evitar outros mal-entendidos. Quem não a deve ter compreendido foi Rondinelli, que, imagino, deve ter ficado algum tempo paralisado para depois, como um bom servo, não fazer mais perguntas a si mesmo e voltar às suas ocupações.

A compra foi ultimada e o caseiro mantido na chácara, ainda submergido na pequena ilusão que guardara para si, a de que seu chefe, o major, ainda vivia. Falavigna nada fez para mudar esta convicção. Pelo contrário, viu-se obrigado a fingir-se, e a fazer todos os que visitavam a agora sua chácara fingirem-se igualmente, de convidado de Alcindo Garcez. O ardil arquitetado, admitamos, é um tanto quanto fácil de ser desmascarado. Mas antes de me acusarem de um fantasista que amarra mal os nós de suas mentiras, podemos ver também o porquê do sucesso dos atos de Falavigna: estamos aqui lidando com um homem cuja razão de viver é a quitação de uma impagável dívida. Obviamente que ele já sentia, nessas obscuridades da mente, a morte do seu chefe, porém simplesmente não acreditava nela. E era importante não acreditar: sua crença era deliberada. Qualquer coisa que a tornasse um pouco mais fundada seria preciosa para Rondinelli, e as dúvidas, como veremos, colocariam sua própria vida em risco.

O que fez o novo, mas secreto, patrão do nosso herói foi freqüentar a chácara sempre, inapelavelmente, munido de uma falsa autorização pretensamente assinada do próprio punho do falecido Garcez. Às eventuais perguntas de Rondinelli, Falavigna já preparara a desculpa de que o major estaria em uma longa viagem à América do Norte, em missão oficial.

O método não ficou isento de problemas: o caseiro não impunha nenhum empecilho a que meu amigo entrasse na chácara, andasse a cavalo, usasse o pomar e também os serviços de Rondinelli. Entretanto, ele jamais permitia que se dormisse no quarto do major ou que se utilizassem os equipamentos de pesca do finado. Uma vez apenas, após muita insistência, o caseiro permitiu que um dos visitantes usasse um dos puçás do major. Mas o puçá foi mal amarrado a uma raiz à beira do rio, e acabou sendo levado pela correnteza. Rondinelli suava copiosamente de nervoso, e chegou a erguer sua costumeiramente invariável voz com um discreto “jamais deveria ter deixado”.

O puçá foi encontrado pelo chacareiro alguns metros rio abaixo. Foi devolvido ao seu devido lugar e nunca ninguém mais ousou pedi-lo novamente.

Ocorre que, no começo, Rondinelli era o mais cortês e solícito empregado. Não media esforços para bem acomodar e agradar Falavigna, ao seu ver um insigne convidado do major. Encanta-me essa idéia: um homem tão infinitamente grato que, numa íntima promessa de servidão absoluta, permanece preso a esse laço muito além da morte do seu credor. Não se trata, como pode parecer a um julgamento mais imediato, de uma medíocre subserviência. Pelo contrário, Rondinelli obteve o que a muitos de nós sempre faltou: um significado da vida. Claro, se o significado que escolheu é bom ou ruim, isso vai depender de nosso juízo e de nossa busca particular do próprio sentido de existir. Mas é extraordinária a inabdicável missão a que se entregou o caseiro. Entretanto, os dias passavam e o major nunca mais deu notícias. Sub-repticiamente, a convicção de Rondinelli esvanecia. Sua energia para o labor diminuía, aqui e ali apareciam falhas do seu trabalho, imperdonables erros no dizer do uruguaio. Começou a precisar da cidade mais amiúde, substituiu no armazém o chimarrão pela cachaça. Foi duas ou três vezes ao médico. Creio que já não conseguia mais fantasiar: o major morreu. A situação foi se agravando até que chegou o dia que já conhecemos: o da morte do caseiro em sua cama.

Quem achou o corpo foi o próprio Falavigna. Descansava, na cabeceira, aquela carta cujo envelope estava, enfim, violado.

segunda-feira, dezembro 03, 2007

Bicicleta

Sempre julguei que à medida que os anos se vão, menos inteligente fico. Do que se extrai, acertadamente, que quando as palavras eram-me desconexas seqüências de sons balbuciadas por aquela boca cuja voz possuía poderes mágicos contra os meus maus ânimos eu era mais esperto. É que tinha todas as possibilidades diante de mim. Enquanto vivo e escolho, reduzo seus números até uma mediocridade que hoje só me permite optar o prato do cardápio.

Não mudo de idéia: ano que vem mais burro serei. Isso é irretocável. E será assim até que só me restará esperar a morte, com a apática resignação de quem a negou desde o início. Hoje, porém, ao reviver os vestígios jogados na memória dos meus tempos idos, finalmente consigo datar com certa precisão a fundação da mais aguda ingremidade de meu abismo.

Tinha oito anos de idade. Os meus sucessos nas provas escolares, com os famigerados cartazezinhos que colocavam meu nome à frente de todos meus colegas, deram aos meus queridos pais um motivo para o exibicionismo. Alguma auto-afirmação de que talvez necessitassem encontrou em mim sua razão de existir. Era eu o brilhante aluno, comportado e de boas notas, xodó de todos na escola. Enfim, o prezável e enfadonho filho exemplar.

Alguém deve ter mencionado à minha mãe o lugar-comum da época: os testes de Q.I. Ora, estava aí mais uma possível prova do meu talento, que já não era desconhecido. E tudo estava à mão: minha tia, mulher do irmão de meu pai, era psicóloga de crianças. Pronto. Mais uma chance de mostrar minha genialidade, minha estéril genialidade moldada pelo bom-mocismo.

Arrancaram-me certa tarde do jogo de bola da Rua Desembargador Motta. Era para o teste. Fui com os pés grossos de sujeira à sala de limpos carpetes da minha tia. Deram-me chinelos, mas teimei por um banho antes. Não convenci.

Aquilo me deixou demasiadamente nervoso. Se não provasse, que seria de mim? Todo meu castelo de sólidas fortificações estava ali ameaçado por um capricho de meus pais. Mas sem desgastar-lhes com minhas frivolidades, já lhes digo que foi coisa que passou: o resultado não poderia ser melhor.

Quero, porém, me referir, voltando à introdução do assunto, ao que me desterrou das fartas terras da fertilidade imaginativa. Foi uma inocente pergunta feita no meio do teste. Tinha que definir o que eram as coisas do meu cotidiano. Disse minha tia:

- O que é uma bicicleta?

Respondi como o teria feito uma razão científica que se alija de toda forma de poesia:

- Um veículo não-motorizado de duas rodas que utiliza a força das nossas pernas, por meio de um pedal e de uma correia, para andar.

Meu Deus! Como eu me orgulhei dessa resposta! “Veículo”, “não-motorizado”: mas isso era genial! Quem de meus amigos diria tais palavras?

Antes tivesse sido qualquer um deles e não eu. Desde então, a bicicleta é um entulho de alumínio e rodas e aros e espias. Jamais minha nave, meu cavalo de cavaleiro, meu lugarzinho de namoro, meu vento a soprar uma suave melopéia em meus ouvidos.