domingo, março 25, 2007

Um Tales no meio de nós

Certas surpresas a vida nos reserva com tamanha discrição, desfeita daquele reverso da curiosidade que não raras vezes nos (me) ataca, aquela comichão que acomete o portador de prazeres inesperados que se atropela e surpreende seu alvo antes do tempo, que o timing da vida para nos espantar parece ser perfeito. Quero referir-me aqui a algo singular que me ocorreu anos após ter encontrado na Biblioteca Pública do Paraná um exemplar de um caderno meio tosco, não catalogado nos sistemas, com anotações de pensamentos não muito mais profundos que os que constam das prateleiras mais visíveis das livrarias, essas que escondem os melhores livros nos cantos menos visitados.
O caderno a que aludo era bem velho, muitas das páginas do seu interior estavam separadas da sua lombada, embora estivessem ali mantidas. Era de brochura costurada, com uma capa de papelão, todo manuscrito. Estava no setor da história das religiões, entre livros sobre o judaísmo. Vi-o não porque me interessasse nas questões hebraicas, mas porque as sobrenaturalidades do destino me alojaram na mesa que defrontava a estante onde se encontrava. Sua cor alaranjada sobressaía-se sobre as capas demasiadamente sóbrias dos livros vizinhos – não sei quais eram – e entre um e outro descanso da leitura que empreendia chamou-me a atenção.
Abri-o. Seus manuscritos eram os mais variados: a caneta – azuis, pretas e coloridas; esferográficas, hidrográficas, de pena; a lápis, lápis de cor e até giz de cera. Letras cursivas, bem desenhadas, infantis, da mais fina caligrafia, de fôrma, garranchos. Dizia a folha de rosto que aquele era um “Livro de Conselhos” (abaixo a inscrição “Passe adiante”), a iniciar pelo que dizia “só se vive uma vez, aproveite o máximo”. Não posso recordar agora do teor literal dos outros, não os li todos, e nem teria paciência. Afinal, como disse antes, os pensamentos eram reles como o citado, ocultos sob a comodidade de estarem todos os escreventes eximidos do dever da assinatura. Ali, sob o manto do anonimato, faces cujo semblante não sei nem imaginar devem ter passado horas se divertindo numa leitura rápida, fácil, às vezes frutífera, mas certamente ansiosa: penso que nem bem se chegaria à metade e logo vinha aquele ímpeto de marcar o próprio texto na última página escrita. O tal livro – um caderno, sabemos – já estava quase findando suas folhas em branco.
Maravilhei-me com a idéia: um livro de sabedorias anônimas e de contribuições plúrimas. O modelo formal que deu a luz àquela atitude material era perfeito, sem querer me demorar com a metafísica das formas eternas. Só que a matéria em si era medonha e enfadonha, pois o pessoal escrevia somente para “passar adiante”, para fazer parte, sem qualquer auto-exigência de criatividade. Também não tinha eu qualquer idéia para botar no papel, e não obstante ruminava alucinadamente – não muito além dos clichês – uma frase para colocar ali.
Por isso eu, como imaginei os demais, não me ative muito tempo e fui direto à última página. Ali estava o único conselho que trouxe na memória além do inaugural: “É da água que a vida, com tudo que existe, retirou seu princípio, nela a mantém, por ela morrerá. A quem disso souber com profundidade, o tempo será generoso e abundante.”
Em vista desse texto, animei-me a construir um igualmente ininteligível. Afinal, não pude atinar com o seu significado num primeiro momento. Que conselho era aquele? Que eu tinha que beber água? Tomar banho? Viver numa comunidade ribeirinha ou na beira do mar? Não havia um propósito claro, e assim devia ser o meu conselho, copiador barato que sou.
O que mesmo que escrevi? Era algo sobre fogo; sequer diversifiquei, em relação ao meu predecessor, o assunto dos elementos. É com sinceridade que relato o esquecimento de meu alvitre, mas é com igual lisura que garanto que se cá o transcrevesse, tê-lo-ia feito com um sentimento de autocomiseração acerca da minha própria futilidade. Olvidemos do detalhe; afinal, nem sei por que essa obsessão minha em sublinhar como fossem ninharias as mediocridades alheias, quando todos sabemos que é impossível não partilhar da mesma decadência, e tentar dela se esquivar como faço torna tudo mais ridículo ainda.
Não sabia bem o procedimento a partir dali. O livro apenas dizia “passe adiante”. Pairava a dúvida: passar adiante deixando ele sempre ali onde o achei ou levando-o para outro lugar? Esta alternativa era mais crível que aquela, certamente, pois a instrução exige claramente uma postura ativa do escrevinhador. Mesmo assim, devolvi ao mesmo lugar onde o achei: era demandar demais da minha parca criatividade procurar algum outro para colocá-lo.
Nem voltei à leitura a que havia me lançado antes de encontrar o caderno. Eu reouve a bolsa que deixara no guarda-volumes e parti para beber café no Lucca ali perto. Por uns momentos, o pequeno acontecimento na biblioteca ficou esquecido e ocupei-me de tormentas outras que sempre rondam meu exausto cérebro. Bastou, entretanto, que uma senhora excessivamente ornada com uma pesada maquiagem, topetuda, e com um daqueles horrendos lenços de seda no pescoço, sentada à mesa à minha frente, pedisse uma garrafa de água que o conselho antecedente viesse a lume novamente.
Mas que diabos aquilo queria dizer?
A garçonete veio carregando o mistério em sua bandeja, todo o mistério do mundo pra mim naquele segundo. Na garrafa, a água sacolejava e mudava a cada passo o plano primeiro de sua superfície, ao sabor dos ângulos que formaria o encontro de uma bandeja idealmente distendida com o chão. O segredo de toda a mecânica em que se engendrou nosso planeta balançava sem autoconsciência nem sentimentos nem percepções. É da água que a vida e tudo que existe retiraram seu princípio e nela que inexoravelmente se renovam. A água segurou em seus hipotéticos ombros todo o motor da história e mesmo assim se deixa apreender numa mísera garrafa de plástico! Passiva, passa ao copo, e do copo ao corpo, e do corpo a sei lá quantos mil outros fenômenos com os quais nem posso atinar. É humilde herói, é o nosso começo, é de onde tudo parte e o porquê de tudo existir. É o princípio de Tales; são, pois, ela só, os deuses que ele inventou, do qual todas as coisas estão cheias!
Sejam o piche do asfalto e o concreto do pilar, sejam a nuvem, a terra e o vidro. O humor vítreo que conhece o espectro das cores: o arco-íris é água. Tudo se define pelo seco e pelo molhado, tudo é fluido solidificado ou gaseificado. Tales nos fez da mesma substância, e desde então todos os filósofos que o mundo teve enxugam gelo. Exsurge das teorias a incredulidade, e sempre uma revoga a anterior, e sempre se quedam em um encastelado clube a ponto de não alcançar interlocutores muito além de suas barbacãs.
Acreditar nesse princípio tão inverossímil hoje parece absurdo, e no entanto é tão fácil e atraente seu enunciado. A racionalidade extremada de nossas impassíveis ciências não nos fez mais do que nos atirar mais fundo no abismo das incógnitas que a simples palavra vida nos oferece. É preciso então nos agarrar na simplicidade daquela antiga Jônia, que atravessou todos os séculos e se imprimiu numa singela página de um Livro de Conselhos simplório, e que ali naquele café havia me convencido por completo da sua legitimidade. Restava agora esperar que o tempo me fosse generoso e abundante, como deveria ter sido a... Tales.
A reflexão me conduziu a uma mais fantástica. E se não foi o próprio filósofo que tivesse escrito o conselho naquele caderno? Ora, um tempo abundante poderia certamente significar vinte e seis séculos. Imagino Tales, um homem de bastas barbas e compleição forte e exuberante, vagando por toda a história da ocidentalidade, daquela esquecida Mileto que durante toda sua vida foi também de Roma, de Bizâncio, de Constantinopla, do Império Otomano e da Turquia. Tales nos deu a physis e foi além: conseguiu ser ele mesmo o deus cuja substância nos tenta impingir com frases obscuras em velhas prateleiras de bibliotecas ou em alguma pregação em praça pública, sem jamais ter se identificado.
Tales vivia, só podia ser. Segurava consigo toda a história, como a água. Como ele, imagino, uns outro quatro podem ter realizado a mesma descoberta, a que agora eu tentava descobrir a todo custo. Sabia que a água era o princípio, mas como aplicar esse conhecimento profundamente como me dizia o conselho? Criei a necessidade de domar o mistério e guardá-lo comigo por outros vinte e tantas centenas de anos. Só uma palestra com o mestre talvez poderia me auxiliar.
Fui passeando por associações infantis enquanto eu mesmo pedia uma garrafa de água para mim. Tales me trouxe a imagem do talo da flor, que vive pela água; e daí passei à tala que imobilizou meu braço há uns quinze anos e deu chance para que o sangue, esse fluido vermelho, revigorasse minha fratura. E da tala à tela, que ganha da tinta vida, e da tela ao cinema, que flui no projetor como um rio, bravio ou não, rumo à foz. Tudo pulsava seca ou umidamente, e era desse tudo que eu participava sem saber. Vi-me como uma gota em meio ao infinito oceano do universo, que, sem tê-lo em conta na exata medida, era dos seus torvelinhos um títere, de cujas cordas Tales há muito se livrou. Somos a gota, ele conseguiu ser o mar inteiro.
Ignorava, porém, como conseguir encontrar o homem. A única coisa que existia era aquele caderno, o único elo possível. Pensei: o conselho de Tales era tão apaixonado que talvez ele ficaria incomodado em ver o livro no mesmo lugar, incólume e ignorado. Fiz bem em deixá-lo onde o achei. O que me cabia fazer agora era vigiar, por uma semana, até que ele voltasse para colocá-lo em algum lugar mais popular.
Dito e feito. Já no dia seguinte, estava eu sentado no mesmo lugar quando um rapaz magrelo e cabeludo, ostentando um crachá da biblioteca, foi retirar o caderno da estante. Imaginei na hora que, como funcionário do lugar, ele teria estranhado e apenas retiraria o livro dali por não estar na seção correta. Mas não: abriu-o e conferiu o meu conselho. Resmungou alguma coisa quando percebeu que talvez sua sugestão tivesse sido só mais uma, dada a pouca atenção do seu sucessor, eu. Mal sabia ele que eu já tinha ciência de sua identidade. Mal sabia eu, por outro lado, que isso foi uma enorme alegoria da minha própria cabeça – como me iludi tanto? Óbvio que Tales já estava morto, óbvio que eu teria que cedo ou tarde voltar à razão desencantadora dos nossos tempos, que fui crédulo demais numa fantasia boba. Veja-se o que sucedeu: segui discretamente o rapaz, que escreveu uma outra frase e colocou o caderno entre os livros de José de Alencar. Não demorei muito e o retomei. A letra do mais novo conselho era a mesma do anterior, o que provou minha tese da paixão de que era eivado. A água era o mote recorrente, pois assim estava escrito: “Alguns renegam que estamos ao fim dos tempos, e que a água nos mutilará, porque jamais a respeitamos. O fogo – estava aludindo a mim, creio – trouxe um progresso frágil e falso demais”. Estava começando a compreender. Fui à mesa do rapaz e mostrei-lhe o livro.
- Foi você que escreveu isto?
Fui impolido e muito brusco, o que justifica uma pausa assustada da parte dele.
- Sim.
- Conhece Tales?
- Quem?
- Tales de Mileto.
- Não.
- Não mesmo? Aquele filósofo a quem a água é o princípio de tudo que existe.
- Ah, não lembrei.
- Eu escrevi do fogo.
Ele enrubesceu. Nessa hora vi um adesivo do Greenpeace na sua mesa. Entendi tudo.
- Você tá certo – comprazi-me em dizer.
- Obrigado. O pessoal não dá atenção, né, mas a água tá acabando, e o mundo também, não acha?
- Acho. Tenha uma boa tarde.
Deixei com ele o livro. Não escrevi nada de novo. Dali, fui pra casa. Esse rapaz foi o motivo de uma grande decepção. Esperava encontrar a grandiosidade que juvenilmente imaginei por horas, e deparei-me com um simples ecologista que quer salvar o mundo. Nada mais.